São os meus anos,
não trabalho, e está uma magnífica manhã de Outono. Tenho a sorte de poder dar
a mim próprio o presente que eu quero. E acordo de manhã, numa longa conversa
comigo próprio na tentativa de responder da melhor forma : O que é queres
fazer, Gustavo ? O que é que gostas de fazer, Gustavo ?
Não é fácil,
gosto de tanta coisa, há tanta coisa que me apaixona.... Mas como vêem, decido
escrever . Sento-me em frente ao mar, a grande janela do meu mundo, o meu carregador
universal de baterias, o sítio onde tudo começou, o início de todas as minhas
histórias , este mar que me viu crescer a quem eu peço que um dia me veja
partir.....e penso, vivo e revivo, lanço a corda para dentro das minhas
memorias de forma a resgatar os acontecimentos que vos quero contar hoje e para
sempre.
Um dia magnífico,
no conforto do meu mar, viajo no tempo e no espaço, para Março de 2011,
Timergara, Província do Noroeste, Paquistão.
(Interrompo a
minha escrita, não tinha a paz de espírito necessária no meu dia de anos, para
voar na minha mente.....continuo 4 dias depois a minha viagem ao meu
passado....)
Aqui vamos
nós......
O ar é pesado, há
uma pressão no ar, as proibições sufocam-me, e o sentimento de o que é ser um
prisioneiro cresce dentro de mim. A motivação é grande, pois os MSF, não
desiludem, se lá estamos é porque é mesmo preciso..... A região é pobre, pobre,
pobre.... o inverno é rigoroso e as condições de vida são miseráveis....
Entenda-se que
quando me refiro ao Paquistão, falo apenas desta zona, pois é um pais imenso
muito heterogéneo e com realidades muito dispares.... Pois, o Paquistão que eu
vivi é hardcore, é forte, é perigoso e intenso, faz-nos amar e odiar o mundo no
mesmo dia, mas apesar de ter levado das maiores pancadas emocionais da minha
vida, saí de lá com a alma quente e cheia de esperança num mundo melhor....
A Província do
Noroeste, é brutal, a beleza das montanhas que a rodeia, esconde um dos maiores
problemas que certamente o Séc. XXI enfrentará.... O Islão radical. Esta zona
do planeta, parece esquecida, a sensação é que a Terra, não é redonda e que
aqui é o fim do mundo... Pois ninguém chega aqui e muito pouco de aqui sai....
Dos povos mais
afáveis que eu já conheci, pelo menos no que aos homens diz respeito, pois as
mulheres ...... não as conheci. Todos os dias, à medida que ia criando laços de
amizade e confiança e por que não dizê-lo admiração mutua, o cumprimento local
fazia mais sentido. Explicaram-me muita coisa nos briefings culturais, mas esta
foi uma surpresa para o tereno.... Vinham de braços abertos, eu pensava que era
um abraço, mas surpreendiam-me com um "quase abraço", em que descoordenadamente não
percebia, em que a sua mão direita vinha ao meu peito e esquerda ao meu ombro
direito.... Os guardas, os cozinheiros, os enfermeiros e os médicos, não são
indiferentes ao nosso esforço, às noites sem dormir, ao trabalho até à
exaustão, ao prazer de dar o exemplo e liderar pela inspiração..... E assim eu
começava a perceber o que significava......., o toque , a energia, o olhar
fraterno e agradecido.... ao aproximarem-se de braços abertos para mostrar que vêem
em paz, sem armas, e o primeiro contacto é a mão direita directa ao nosso
coração, furando a nossa guarda, tocam, sentem e avaliam, como está a nossa
saudade e os nossos sentimentos, deixando que este rápido momento, este
manómetro de vida, preceda um “Asalam aleikum” ( que a paz esteja contigo)....
ao mesmo tempo que completam o cumprimento com um firme aperto de mão.... E
isto sente-se, não se explica, é boa gente, o povo mais hospitaleiro que já
conheci... Era com muita honra que nos convidavam para suas casas, onde
tristemente não podíamos ir, os convites para “Xai” eram horários e as
perguntas pela nossa saúde, pelas nossas famílias eram genuínas, nunca um
pro-forma.... Quando me perguntaram se precisava de alguma coisa, pedi uma bola
de futebol, para que pudesse descontrair e esticar as pernas no pátio da minha
prisão.... provavelmente no único pais onde já estive, onde o futebol não
existe !!! e a minha apresentação como português cai na insignificância, pois
nunca tinham ouvido falar do Cristiano Ronaldo..... lá me conseguiram arranjar
uma bola num Bazar.... era uma boa bola e sei que não foi barata.... mas não me
deixaram pagar, e tinha eu nesta altura apenas acabado de chegar..... Adorei o
gesto...... Adorei este povo, ou metade dele, pois a outra metade como vos
disse.... não conheci..... As mulheres são sombras, não existem..... vi as suas
dores, salvei algumas vidas, reanimei os seus recém-nascidos..... mas não as
conheci..... Não sei quem são, ou o que pensam...... Eram seres, dentro de
burqas impenetráveis, que não deveriam existir aos meus olhos, e não existiram
mesmo!
A pressão de que
vos escrevo, sente-se no ar... o ar é pesado, as proibições são de quase tudo,
e vivemos num estado permanente de observação por parte da comunidade, que nos
avalia de uma forma desconfiada, este grupo de “estrangeiros e infiéis” que
aparece nesta terra perdida..... E
as mulheres transparecem essa prisão interior, transparecem na sua conduta,
toda uma sociedade repressora em que a burqa é muito mais que uma capa, é uma
amarra a toda uma série de acções que para nós nos parecem inatas.... Uma
mulher, não ri, não fala alto, não olha um homem nos olhos, não corre, não
salta, não fuma, não fala com um homem, não lê, não escreve, não nada !!! Nada
!!! Casa aos 12-14 anos, com quem tiver dinheiro para este “amor”, e depois
fica em casa, fechada, toma conta dos filhos e fala com as outras mulheres da
família..... larga a sua família após o casamento para nunca mais voltar....
Corta o seu cordão umbilical biológico, para nunca mais voltar, e passa a ser
propriedade do seu marido, em que este faz o que bem entender que esta sua
posse, e se for um homem bem sucedido, terá certamente as mulheres que o
dinheiro lhe der para pagar....
A mulher
legalmente vale 50% do que vale um homem, por exemplo, no que trata a uma indemnização
ou uma opinião em tribunal..... Mas na prática, sabemos que nem isso..... uma
mulher vale muito menos..... vale o que o homem que a comprou quiser que ela
valha..... e por mais que eu saiba que, não me cabe a mim julgar uma cultura, o
impacto das histórias que tenho para vos contar marcaram em mim, como pessoa e
como médico um ponto sem retorno....
Há certos
momentos da nossa vida, em que um dito juramento de Hipócrates, transcende a
nossa pessoa, pois ser médico, vai crescendo dentro de nós, e em certos
momentos é muito mais de que uma profissão, um ganha-pão, é a essência do nosso
ser, e fui obrigado a aceitar certas regras que contrariam a minha própria
razão de existir.... mas como qualquer peão no seu xadrez, eu sabia os meus
movimentos, até onde podia ir e onde nunca podia ir ...... Nunca, mas nuna...... NUNCA, NUNCA, NUNCA...... discutir as regras do jogo. E as regras são,
as mulheres valem o que os homens quiserem, e se o marido não está é o irmão
do marido, ou a mãe do marido, ou o pai do marido..... que decidirá o que eu
posso fazer ou não como médico.... e elas as mulheres, sabem disso..... a sua
vida, não é delas..... a sua vida é de quem o pai delas quis que ela fosse.....
Eu, como qualquer
médico, dependo em tudo, do consentimento do marido, no que diz respeito aos
mais simples actos médicos, relativos à saúde de uma mulher.... e se ele ou um
legitimo substituto, não estiver, nada faremos, nem que a consequência, seja a
vida dessa mulher..... E assim foi , mais vezes do que me gostaria de
lembrar.....
À minha frente,
sabendo o que tinha que fazer, mas sem autorização para tal..... várias vidas
vi eu se perderem..... Não me lembro de todas, mas lembro-me de algumas e é isso que vos vou contar !
Women with no
names !!!!
(continua....)
Muito forte... "janela do nosso mundo"... obrigado pela partilha.
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