(Se voltasse a escrever a primeira parte agora certamente seria diferente.
A distância temporal leva-me alguns pormenores, mas sedimenta quase 5 anos, em
que a memória e as memórias de África vão amadurecendo e ganhando novos
sabores. Tenho saudades e apetece-me escrever. E enquanto ganho forças para
escrever sobre o Afeganistão para mais tarde se tudo correr bem, escrever sobre
a Síria, viajo na minha mente para completar esta história que me marcou pela
beleza de um ser humano, condimentada por aquela que até hoje foi a viagem da
minha vida.)
Após 4 meses no Congo, a trabalhar arduamente, a minha intenção era
trabalhar mais 2 meses para os Médicos Sem Fronteiras, se possível num lugar
bem diferente, estava com ganância de viver, de conhecer, de compreender, de
dar o meu trabalho em troca de obrigados e lições de vida.... Passaram-me
hipóteses de Paquistão e Iraque, que não se concretizaram, para grande tristeza
minha, estive quase, quase de bússola apontada para a Libéria, e muito
entusiasmado por tal, mas entraves burocráticos na altura ditaram o fim dos
meus serviços para os Médicos Sem Fronteiras, em 2009. Alternativa?? Viajar 2
meses por África! Que chatice ;) !
Não tinha medo de nada a não ser da minha ignorância e queria engolir o
mundo..... Não tinha planos, nem livro-guia, nem internet..... Tinha a mochila
às costas e voo marcado de regresso de Kigali para Europa, e 2 meses pela
frente. Atravessar a fronteira do Congo para o Ruanda é como sair de uma prisão
e ver as gigantes portas a bater atrás de nós, deixando um enchurrilho de
emoções para trás..... e agora à aventura, a respirar ar livre, sem guerra.....
Igreja de Saint George em Lalibela
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Depois do jantar, em que quebrei as minha regras de viajante de “pé descalço”
e me presentiei com um bom jantar num bom hotel com a Gobegnu, porque se eu
achava que merecia, tinha a certeza que ela muito mais. Fui deixá-la a casa era
ainda muito cedo.... Procurei um barzinho a ver se animava e lembro-me que bebi
uma espécie de licor local a saber a mel, bastante estranho, mas eu estou por
tudo.... O barzinho estava animado, mas eu não estava com cabeça para aquilo,
sentia que não podia ter um tecto, as minha ideias precisavam de respirar.... e
fui como quase sempre nesta viagem; sozinho e sem rumo.... À noite em África o
silêncio assombra-nos e ouvimos o nosso coração a bater como se fosse o pulsar
do centro da terra, ecoando num céu escuro e infinito..... E assim eu vou pelas
ruas de Lalibela.... quando ouço uns cânticos bizarros vindos de uma das
igrejas, todas elas abaixo do nível do chão, dando a sensação que há vida no
sub-solo..... Claro, ávido pela descoberta, aproximo-me e os cânticos vão
ganhando forma, há muitos uivos e danças com contornos tribais..... Aproximo-me
com algum receio, pois a intensidade do momento, faz transparecer alguma
exclusividade, e a minha presença estranha, não merece por parte dos locais
qualquer reacção como se estivessem num estado de transe.... Subo a um muro da
Igreja para ganhar na perspectiva, e timidamente tiro a minha câmara
fotográfica.... mas percebo que está muito escuro, e das fotos não há qualquer
esperança que possam retratar o que estou a ver muito menos a sentir..... Uma
cerimónia nocturna cheia, cheia de gente, vestidos todos de branco envoltos na
escuridão e algumas torchas na parede.... dava-me jeito ter um guia que
explicasse, mas a espectacularidade da incompreensão aguça a minha atenção....
A espiritualidade sente-se no ar, e percebo facilmente que aqueles cânticos,
gritos, uivos, pretendem chegar ao céu.... Contemplo os batuques a alternância
de intensidades, e arrepio-me nos momentos mais altos da noite..... Era a
celebração de uma santa, com significado importante para a cidade e estes
rituais nocturnos dos mais importantes desta cidade que respira crenças e
devoções de um povo, todo ele cegamente devoto a Cristo..... muito intenso.
Vou para casa, contente e relaxado, e a pensar como é possível viver tanto
e tão intensamente, quebrando tantos paradigmas da minha cabeça. E ainda tenho
mais dois dias de Lalibela pela frente.
Igreja construida na escarpa da montanha
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A Bíblia colorida
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De volta a Lalibela, de janela bem aberta, como se fosse um cão, para que
não houvesse nada entre os meus olhos e as maravilhas que me rodeavam.... E
como já tinha saudades daquela fonte de energia que era a Gobegnu, e queria
também ver os meus emails de parabéns fui à loja da internet..... Até hoje me
perco naquela magia só de lembrar, aquele sorriso com a alma, aquele olhar
dócil e profundo que esconde uma guerreira que corre dia e noite nas estradas
africanas sem ouvir os carros.... e que reagiu a todos os infortúnios
transformando-os em ouro. Um coração que parece ter íman, que ilumina em seu
redor..... que me inspira só por existir..... É incompreensível como é que de
uma barreira linguística tão grande resulta uma comunicação tão agradável.... A
internet, como sempre leeeennnntttaaaaaa! Cada click dá para 5 minutos de
conversa, e só não desisto de me conectar com o meu mundo porque a companhia é
única..... A Gobegnu, super hospitaleira, prepara tudo para fazer uma cerimónia
do café, que tanto caracteriza aquele país..... .café fresquíssimo e
maravilhoso, ervas e flores no chão e surpreendentemente pipocas!!! E o tempo
passa, alguns amigos dela vão entrando e saindo.... e eu vou contando o meu dia,
contando aquilo que vi..... ela parece perceber, pelo menos continua a sorrir e
nunca se inibe de tentar comunicar....
O dia está a chegar ao fim, e ela convida-me para conhecer a casa dela, a
amabilidade com que espontaneamente ela faz os convites, desarma qualquer um,
torna-os irrecusáveis..... e eu vou sem pensar muito. Eu já suspeitava, mas
tornou-se evidente..... uma família muito pobre, em que tudo o que estava
naquela casa valia menos que a minha televisão, e todas as divisões onde viviam
6 ou 7 pessoas cabiam na pequena sala do meu apartamento.... Mas está tudo muito
limpo e bem arrumado, e de imediato me oferecem o pouco que têm.... A avó muito
humilde, olha-me fixamente como se fosse um extraterrestre e ri-se.... e eu riu-me
também.... O que mais me marcou foi quando a mãe foi buscar um álbum de
fotografias, que era uma espécie de "hall off fame" da carreira desportiva da
Gobegnu, onde ela aparecia a competir, em estágios da selecção da Etiópia, e no
pódio a receber medalhas... .que depois também me mostravam.... A Gobegnu,
sentada ao meu lado enquanto eu folheava o álbum, emitia muitos sons na
tentativa de me explicar o que se estava a passar naquelas fotos.... pouco
percebia, apenas reconhecia quando ela dizia algo como “ abeba!”.... que estaria
a referir a Adis Abeba...... envolvência comovente, brilhos de olhares que substituíam
as melhores das conversas que já tive...... Havia uma pormenor que me intrigava,
enquanto me apercebia do quão pobre era esta família..... Como é que a Gobegnu
tinha umas sapatilhas Nike? Na Etiópia uma refeição num sítio turístico pode
custar 2 euros, mas umas sapatilhas Nike, são mais caras do que na Europa.....
Várias vezes, os miúdos na rua me pediam as minhas sapatilhas, porque a estes
sítios pouco ou nada chega.... Perguntei à mãe, como tinha ela encontrado umas
sapatilhas tão boas? E a mãe sorriu e disse-me que foi um turista que a viu a
correr descalça e depois lhe enviou por correio as sapatilhas..... A Gobegnu
sorri quando a mãe lhe explica por gestos do que estávamos a
falar..... Uaaaauuuu...... que pequenino que eu me sinto: Surda, pobre, grande
campeã, a correr descalça...... e com tanta alegria a cada suspiro. Volto para o
hotel, na escuridão de África, radiante pela sorte que me tinha calhado nestes
dias em Lalibela com a Gobegnu....
E ainda faltava um dia... Era Domingo, e a Gobegnu não trabalhava na sua
Lojinha, e como tal fomos os dois subir ao pico mais alto de Lalibela. Fica a
mais de 3500 metros de altura e destaca-se entre todos os outros picos que se
vêem no horizonte.... e como não poderia deixar de ser, também lá em cima há uma
Igreja, santuários e outros símbolos religiosos.... São 2 a 3 horas de subida
de caminhos bem complicados com algumas partes até assustadoras..... A maioria
das pessoas vão de burro e com guia, para poupar as pernas..... Mas eu tinha a
minha guia privada..... diferente do guia ideal, mas eu não trocava por
ninguém....
A meio da subida
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Gobegnu, com o topo da montanha já à vista
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Finalmente chegamos à Igreja que bem lá de cima, vê uma dimensão de terreno
lindo até perder de vista..... Mais uma vez, Igrejas já tinha visto muitas e
mais interessantes, mas todas têm uma história, e é fantástico imaginar como
terá sido feita esta construção neste local tão difícil de aceder e tão longe
de toda a civilização..... Tenho sorte e sento-me ao lado de um simpático casal
de americanos que claro subiu de burro e com guia, que num inglês perfeito,
lhes explica todas as nuances do local onde nos encontrávamos..... e eu sem
pressas, parasito estas explicações enquanto observo a Gobegnu, e a forma tão
espiritual e religiosa de todos os seus movimentos, neste que é um símbolo tão
importante da sua impenetrável fé! Os americanos, bem ao seu estilo com meia
dúzia de perguntas e com as minhas respostas ficam imediatamente apaixonados pela
Gobegnu, e saíram a ganhar nesta curta troca de experiências...... seguimos
caminho e fico seguramente alguns minutos, parado, paralisado, maravilhado com
o que estou a ver...... Como se a beleza da paisagem não fosse suficiente, há
um grupo de monges de vestes brancas sentados numa gigante pedra arredondada
que parece estar pendurada numa das arestas do cume da montanha, que em rezas
permanentes, completam aquele que terá sido um dos frames mentais da minha
vida..... Que mundo é este??? Que sorte a minha de o poder ver e tocar de tão
perto.....
Monges de vestes brancas no topo da montanha |
Calmamente descemos esta magnífica montanha até Lalibela, sempre a
“conversar”..... Já não faltava muito tempo de sol, quando chegamos à cidade, e
depois de um grande sumo de fruta, a Gobegnu, levou-me a um sítio para ver o
pôr-do-sol, pois também Lalibela está por si só pendurada numa
montanha..... todo este relevo, não é facilmente imaginável.... E aí estávamos a
olhar para um gigante vale, com uma longínqua linha de montanhas na nossa
frente, onde este super forte, quente, intenso e ardente sol africano se põe
para delícia dos meus olhos.... .não há terra, nem céu, nem sol como em África e
eu estava certamente num dos seus pontos mais mágicos..... com alguém que me
inspirava como poucos me inspiraram na vida.... Pôr-do-Sol inesquecível....
Gobegnu
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E ai vou eu, sozinho nos meus pensamentos, a contemplar as minha memórias
enquanto a estrada serpenteava o caminho até ao aeroporto....
Que ser humano tão bonito, que força, que doçura, que magia, que energia,
que sorriso, que garra, que pureza, que determinação, que genuinidade e
transparência...... um hino à vida!!
A minha ex-namorada foi 2 anos mais tarde à Etiópia e a Lalibela, e sem
pensar muito comprei-lhe o mais que podia, para que pelo menos pudesse poder
continuar a correr pela vida como tanto gosta..... e claro dei-lhe umas boas
sapatilhas.... A descrição foi que se desfez em sorrisos, e claro hipnotizou
quem os viu..... em troca enviou-me uma miniatura de espectacular Igreja de
Saint George de Lalibela que com muito carinho guardarei para sempre....... para
que nunca me esqueça da.....
.....bonita história de Gobegnu.....
adorei ler:)
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