Quando há Sol, não é para todos!

Quando há Sol, não é para todos.

Estava com medo. Não sou diferente dos demais, uma guerra assusta. E os contornos que esta guerra civil atingiu, com uma enorme exposição mediática, faziam-me crer que seria diferente das outras... Esta foi a minha 4a guerra, enquanto médico a trabalhar para os Médicos Sem Fronteiras, depois de Congo, Paquistão e Afeganistão. A experiência ajuda a lidar com as emoções, pois esta missão não seria claramente para principiantes. No entanto, é doloroso entrar no avião, deixar a sofrer as pessoas de quem mais gosto, e ao olhar para baixo pela janela do avião, despeço-me da minha querida cidade do Porto, com uma lágrima no canto do olho, não sabendo se não será a última vez que vejo este meu grande amor, e tudo o que ele representa para mim... Tenho medo, mas nem hesitei, quando me foi proposto ir para a Síria. As minhas motivações superam largamente os meus medos...talvez ao ler este texto compreenderão porquê.

Por vezes perguntam-me: “ Como é possível arriscares a tua vida?” Normalmente sorrio, enquanto respondo para dentro em silêncio: “Como é possível não o fazer?”

Fui sozinho, directo para a Turquia, com o meu cachecol do FCPorto, que tem super poderes, porque representa os que levo comigo, enche-me o coração, e faz-me sentir mais forte. Aterrei na cidade de Hatay, já bem perto da fronteira com a Síria, onde se reunia esta equipa, que iria reabrir o hospital no norte da Síria, que fui evacuado pela crescente ameaça do Estado Islâmico. Não há tempo a perder, fui directo para uma reunião, onde nos explicavam o plano, de como iríamos entrar na Síria, esmiuçando todos os cuidados a ter, assim como, todas as regras de segurança... O coração aperta, e sinto um nó na garganta, quanto vemos no mapa os cerca de 250 Kms, que teremos que fazer de estradas na Síria, com diversas zonas, onde os bombardeamentos são frequentes....e começo aqui a sentir a guerra.

Nessa noite, achei ouvir bombardeamentos, pois já estava muito perto da Síria, mas provavelmente era o meu imaginário.

No dia seguinte viajamos até à cidade Killis, pois embora longe seria o único ponto de fronteira em que a Turquia nos permitia entrar. Killis, fica já colado à fronteira com a Síria, e nas imediações o nosso campo de visão, é invadido por campos de refugiados sírios, e vemos nas suas caras a dor de um povo, órfão de um pais, com uma alma sofrida e massacrada. Nessa noite, a última antes de passar a fronteira, vamos beber a última cerveja, porque na Síria estamos proibidos, e nesse que era o único bar de Killis, um grupo de homens Sírios, bebem e dançam uns com os outros como se não houvesse amanhã....leio no seu desprendimento uma mistura explosiva de alegria por terem fugido à guerra, com a tristeza profunda de quem abandonou a sua amada pátria...muito intenso. Fez-me pensar...

Bem de manhãzinha, atravessamos a fronteira....a pé! Pois não são permitidos veículos. A policia turca carimba o nosso passaporte, e depois fazemos uns Kms a pé bem carregados, em sentido contrario ao dos refugiados... e do lado de lá, na Síria, não há ninguém para nos carimbar o passaporte, mas sim, uma série de homens armados, de aspecto duvidoso, mas são do Free Syrian Army (moderados), a oposição ao regime que luta pela democracia, contra o ditador Bashar Al Assad. Aqui temos 2 carrinhas à espera, e partimos em direcção ao nosso destino, perto de Idlib, bem próximo das linhas da frente do conflicto... As nossas 2 carrinhas, têm o logo dos MSF, assim como escrito em árabe “Médicos Sem Fronteiras”, e é apenas isto que nos protege... Atravessamos uma boa parte do norte da Síria, e eu vinha colado à janela a absorver esta paisagem, absolutamente lunática, com vilas e aldeias abandonadas, onde as marcas de guerra, com casas bombardeadas, não deixam dúvidas dos porquês de quem largou tudo... Em alguns momentos passamos por 4x4s de caixa aberta com metralhadoras enormes, que nos dão um friozinho na barriga, bastante desconfortável, mas vamos nos habituando....torna-se normal a presença da máquina de guerra....

Talvez o momento que guardo com mais carinho até hoje, terá sido a nossa chegada à vila que seria a minha casa e onde se encontrava o pequeno hospital... Os locais sabiam da nossa chegada, e celebraram este momento...de uma forma que até dói na alma tentar descrever...não consigo segurar as lágrimas ao transmitir-vos isto... Gritos de alegria, olhos húmidos de emoção, palavras e abraços quentes a pessoas (nós) que não conheciam....o excitamento daquele povo transbordava em cada respiro: Os Médicos Sem Fronteiras voltaram! Isto significa que a ausência total de cuidados de saúde num raio de dezenas ou centenas de Kms, acabou...mas muito mais do que isso...sentem que nem todos os abandonaram...a nossa presença personifica a esperança, de quem já não sabe a que se agarrar...e só ai sem ter salvo (ainda) nenhuma vida, já clarifiquei na minha cabeça, que valeu a pena, ter deixado os meus queridos a sofrer em Portugal. Percebem agora?

Os MSF, tinham evacuado este hospital, pela transformação do contexto cultural, devido à pressão da radicalização de grupos extremistas, que cada dia mais condicionavam todos em seu redor... As pessoas viviam com medo duplo: do sanguinário ditador, que não hesita em matar quantos pode, e este oportunismo de grupos radicais islâmicos, que moldavam e aterrorizavam, todo um povo bastante moderado e humanamente fantástico...

Numa gelada manhã de inverno, na minha inocência apreciava um bonito nascer do sol, num céu azul até perder de vista, e comentei com os locais que trabalhavam comigo: “Que lindo dia de sol!” ...mas a resposta foi pronta e muito clara....”Está um dia horrível....o céu está limpo...eles vão voar!” Engoli em seco, e congelei em silêncio, e não tardou muito a avistar um MIG, da força aérea Síria, a sobrevoar a zona, a escolher os alvos a bombardear.... É no mínimo estranho sentirmo-nos um alvo, só porque sim.... E ai, dei por mim a desconstruir, uma verdade universal, da minha visão mágica e holística da vida e da sua verdadeira essência: “Quando há Sol é para todos!” .... Não! Para alguns, um dia lindo, significa temer pela vida, e olhar os céus, à mercê de maldades atrozes, e impotentes perante a força da ganância pelo poder....

“Quando há Sol, NÃO é para todos!”

Várias vezes nos refugiávamos num bunker do hospital quando éramos sobrevoados, por aviões ou pior ainda pelos helicópteros... Assim como passei noites no bunker da casa, quando os rockets aleatórios, faziam tremer o chão estrondosamente....mas senti-me bem, pela magnitude do significado que dava à presença dos MSF, num cenário tão complicado.

Sou médico, fico feliz quando sinto que fiz a diferença, quando salvo vidas....e salvamos muitas, crianças, mulheres, velhos e novos, inclusive homens de grupos extremistas, que se calhar noutra circunstância nos poderiam querer fazer mal, mas nós não julgamos....nós salvamos vidas! E guardo com um prazer indescritível, momentos de horas e horas de trabalho, para cumprir a missão a que me propus, e que define todos aqueles que acreditam nos mesmos ideais que eu! E será essa a minha grande conquista pessoal...as vidas que eu salvei, e que no imediato me fazem sentir especial, e me motivam para continuar....mas esta é apenas uma das razões que faz tanto querer ir.... A outra é bem maior! A outra é por ti que me estás a ler... É por todos que sei que os MSF representam, por este mundo fora... É pelos milhares que não se conseguem fazer ouvir, que não querem mais guerras...que preferem mandar ajuda ou invés do ridiculamente estúpido contra-senso de mandar mais bombas.

Eu, Tu, Nós, os Médicos Sem Fronteiras, e muitos mais, levam à letra a premissa que sustenta a humanidade: Todos os Seres Humanos são Iguais!

E o meu convívio de grande proximidade com o povo Sírio, em que nas suas histórias de vida, me imaginava, vezes sem conta, no exercício, que embora doloroso é onde eu encontro a minha alma mais bonita e acima de tudo mais honesta! E se fosse a minha família? E se fosse a minha casa? E se fosse o meu pais? Que pensaria eu de uma inteira humanidade que (n)os abandonou?

“Quando há Sol, não é para todos!”

Lá passei o meu Natal. Tive saudades, mas não me custou muito. Custou-me sim, o dia, em que me fui embora, e um dos nossos tradutores, agora amigo Faut, me foi levar à fronteira por questões de segurança. Odeio despedidas... são demasiadas emoções. Mas esta foi claramente a pior! Eu vinha embora, a caminho da minha segurança e conforto, e assim virava costas a pessoas que sei porque o provaram, que davam a vida por mim, e foi neste turbilhão de emoções, que o Faut de sorriso na cara à medida que me afasto de mochila às costas me diz: “ Dont forget about us, Gustavo!”, e de rajada respondi: “Never, my dear friend, Never!” bati no coração com muita força e sorri... rapidamente virando as costas, para que ele não visse, que me ia desfazer em lágrimas...

E com isto, podia contar-vos mais mil e uma histórias, para que exercitassem, algo que tem tanto de difícil como de importante... a capacidade de empatizarmos com vidas que nos parecem longínquas, e depois apenas e só agir, como gostaríamos que agissem connosco.

Honestidade e Justiça....porque,

“Quando há Sol, Não é para todos!”



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