A carga emotiva é
tão grande que parece que as ditas vivências da Síria nunca foram
suficientemente processadas… Mas chegou a hora de enfrentar o touro pelos
cornos, e começar a deitar cá para fora, como sempre sem saber muito o que dai
virá…
Foram muitas
noites sem dormir, cesarianas a meio das noites gélidas, várias situações de
grandes influxos de vítimas dos bombardeamentos, noites passadas com o coração
nas mãos a sentir a casa tremer com as bombas a cair…. Ainda assim terá sido
nos momentos da entrada e da saída que tive os momentos de maior intensidade
neste minha missão no norte da Síria, na província de Idlib, não muito longe de
Allepo, bem nas linhas da frente de combate, em finais de 2013 já a guerra
caminhava para o 3ºano, e num momento duma viragem catastrófica que nos enche
de calafrios até ao dia de hoje…. O aparecimento do Estado Islâmico.
A viagem começa
no processo de decisão, e até esse foi doloroso… O ano de 2013, foi o pior ano
da minha vida… Por problemas pessoais cuja responsabilidade só posso imputar em
mim, sofri horrores…bati muito tempo com a cabeça nas paredes em desespero e
tive que ir buscar forças que não sabia que tinha… E como quase sempre, na face
de grandes problemas a vontade instinctiva era de fugir… e eu tinha uma fuga
muito fácil e que adoro que se chama: Médicos Sem Fronteiras… A tentação de ir,
de fugir estava sempre ali tão perto, mas eu fiz-me homem, segurei-me e fiquei,
e consolidei a passagem pelo cabo das tormentas, o melhor que soube. Nada disto
passa, mas vai passando… E passado um ano, para ter a certeza que nenhuma
decisão era tomada a quente, decido mudar de vida… Sair do hospital que me
formou e viu crescer como pessoa e como médico durante 15 anos, e oferecer-me
para pela 4a vez trabalhar com os MSF… mal podia esperar voltar a sentir o
coração a bater na esperança de dar vida, e alimentar a minha…. Tinha chegado a
hora, e que alívio que era, sair um pouco da prisão que tinha criado dentro de
mim…
Lembro-me com
memorias de transparência cristalizada, de ler, e reler, e reler, e reler, e
reler outra vez, e quase como um robot automata reli para aí 100 vezes o email
que me propunha a próxima missão na Síria – Idlib… Sinto o corpo todo a tremer…
e não sei diferenciar ou dosear o enxurrilho de emoções que atravessam o corpo
como choques eléctricos, enquanto releio o email já sem o ler… Medo de morrer,
vontade de viver… Medo de magoar quem mais gosto, vontade de voltar a voar…
Medo de me voltar a perder, vontade de fazer a diferença… Medo que seja cedo,
vontade que seja agora… Penso no mal que tenho feito aos que mais gosto, mas
tenho que ser honesto com o meu coração… Vejo a minha vida toda em minutos e
depois em horas…. Mas a decisão estava tomada à partida… chegou a hora de
voltar a ser feliz: eu vou!
Tento sempre
estar atento ao que se passa no mundo e acompanhei bem de perto os momentos
principais de toda a primavera Àrabe… A história de vida simbólica do vendedor
ambulante tunisino que se imolou pelas injustiças de uma sociedade opressora,
criou em todos que acreditam na democracia e liberdade, uma força que ficará na
história como catalisadora de uma mudança... Ou pelo menos uma tentativa...
Vários regimes ditatoriais do mundo árabe abanaram e caíram perante um povo que
exigia uma vida mais digna e um mundo melhor... Túnisia, Líbia, Egipto,
expulsaram os respectivos líderes e ditadores.... E na Síria um grupo de
adolescentes em Março de 2011, escreveu um graffiti na parede da escola : “o
próximo és tu, doutor!” (referindo-se a Bashar Al Assad que é médico) ....
Estes jovens foram presos, torturados, electrocutados durante semanas.... O
povo saiu à rua exigindo que os libertassem.... e a resposta foi à lei da bala
por parte do exército Sírio.... estava instalada a revolução, a guerra civil....
das mais mortíferas e maquiavélicas que há memória...
A minha vontade de ir vinha na mesma proporção dos apertos no coração, que as imagens e relatos de
sofrimento deste povo me faziam sentir... Já tinha estado em 3 guerras, mas
esta adivinhava-se como muito mais impactante na minha história de vida e
despertava em mim, um medo que me congelava os pensamentos.... mas que teimei
em resistir...
Marcou em mim, um
antes e um depois.... a importância desta missão enche-me de orgulho... pois
mais do que nunca o propósito dos MSF fazia sentido... Muito mais do que os
feridos de guerra, que são muitos, é toda uma população que ficou despida de
cuidados de saúde básicos e diferenciados, tornando a mortalidade
exponencialmente superior à causada pelas bombas...
Às vezes perguntam-me:
“Porque é que vais?” .... eu não digo nada, sorriu em silêncio e respondo para
mim: “Como é possível não ir?”
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Chegou a hora de
começar a escrever sobre a Síria....
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