Foi num Domingo à tarde… muito poucas vezes tinha um Domingo livre para relaxar…
era mesmo assim… não havia mais ninguém para fazer o meu trabalho… e tínhamos
que estar prontos para quando fosse necessário…
Sou chamado pelo rádio com a informação que acabam de chegar ao hospital
feridos de guerra... Era frequente aos domingos... Demasiadas Kalashnikovs...
Os militares embebedavam-se e por uma razão estúpida qualquer começavam aos
tiros...
Quando cheguei ao hospital, os enfermeiros locais disseram-me que os
feridos eram crianças!! Merda!! Fosse o que fosse, já era muito mau à
partida... O meu coração começa a bater mais depressa, ainda antes de entrar no
quarto onde elas estavam...
E ali estavam elas, 2 meninas muito queridas... muito assustadas, aos
gritos com dores... e muito sangue por todos os lados...
Noemie, tem 10 anos, e levou um tiro na parte superior do
braço, o que causou uma enorme ferida com fractura do úmero.
A Tuliza tem 4 anos e levou um tiro no pé, o que causou uma explosão de inúmeros ossos do seu pé, com um buraco tão grande que até dava para ver através dele.
Porquê?? Como é possível que alguém consiga fazer isto a
estas duas meninas maravilhosas? Como é que alguém pode ser tão cruel?
Noemia e Tuliza são irmãs e a sua mãe trabalha num bar da
cidade, e foi aí que dois militares bêbados entraram em discussões e confusões,
e por uma razão qualquer começaram aos tiros... Mas por motivos que desconheço
as únicas balas que fizeram estragos foram as que atingiram estas meninas... A
vida é mesmo injusta para alguns...
As Kalashnikovs são armas de alta energia, uma vez que a
bala entra no corpo começa a girar numa direcção aleatória causando uma
destruição inacreditável dos tecidos do corpo humano... Vou vos poupar a ver as
fotos das feridas mas acreditem em mim... são mesmo impressionantes...
Tivemos que levar uma e depois a outra para o bloco
operatório. Elas perderam bastante sangue, mas as cirurgias decorreram são
grandes complicações. A Tuliza foi primeiro, bastante assustada não querendo
largar a sua mãe que ficou ao seu lado, até que a anestesia fizesse efeito. Foi
uma caso complicado, sem Raio-X, é difícil saber ao certo a gravidade de cada
uma das fracturas dos ossos do pé. Lavagem, desinfeção, remoção dos tecidos
mortos e em vias de, e tentar imobilizar o pé numa posição em que as fracturas
consolidassem de forma a que ela pudesse voltar a andar... tem apenas 4 anos! A
Noemie foi logo depois. O buraco que tinha era tão grande quanto o seu braço
magricelas, com uma fractura total do seu úmero e uma falha de osso de 10 cm,
por explosão no impacto... Cenário horrível até para quem já viu muita coisa...
Não teve destruição de qualquer artéria ou nervo
importante, o que em teoria dava alguma esperança para que um dia o seu braço
pudesse ter alguma utilidade... Mas poderá usar o braço faltando-lhe uma parte
do osso importante? Eu não sei responder a esta pergunta, ou não sabíamos com
os meios que tínhamos à disposição... Ela não segura o braço, apesar de ser
capaz de usar a mão... Talvez um dia, num programa de reabilitação
especializado alguém possa melhorar a mobilidade do seu membro... Pensar sempre
positivo!! Fazemos o que podemos, passo a passo... mas nem sempre é
suficiente...
Tal como era de esperar, ficar muito tempo no hospital
com idas extremamente frequentes ao bloco operatório. Desinfectar, desbridar,
mudar o penso vezes e vezes sem conta, pois o grande risco reside no potencial de
infecção que pode ser fatal. E então todo o cuidado era pouco para que isso não
acontecesse... e felizmente conseguimos evitar que estas duas meninas
maravilhosas tivesse qualquer complicação infeciosa.
Todos os dias as via... mesmo sem falar a língua, mas
comunicando sem se saber muito bem como... brincava com elas imensas vezes e
conquistei a minha importância na vida delas (e de outras crianças), enchendo
vários balões que eram luvas de hospital transformadas em sorrisos voadores...
Ao encher balões, o meu coração enchia-se de felicidade por conseguir dar-lhes
um motivo para sorrir...
Noemie, era sensata e calma... nunca a vi triste ou a
queixar-se, e tinha sorriso tímido lindo com os seus olhos negros, grandes e
profundos... Pura, humilde e genuína... O que mais gostamos nas crianças em
geral é o facto de serem tão puras e inocentes, mas estas crianças africanas
levam esse paradigma ao seu expoente máximo... São tão cheias de vida e de desejo de viver
que nos seduzem a cada olhar, a cada sorriso... é impossível não sentir que o
centro do mundo está ali, naqueles pequenos seres que pairam à nossa volta...
A Tuliza como podem ver, é mais para o “rechunchudinha”...
E um dia ela estava muito rabugenta, a tentar bater na irmã e na mãe... e eu fiquei
algo surpreendido porque não era normal...
Tentei perguntar à mãe, com algumas palavras e sinais
para perceber o que se estava a passar. E a mãe apontou-me para o sinal que
estava colado à cama onde se lia em Francês e Swahili: “ Não comer e beber: dia
da cirurgia.” Era bastante difícil explicar aos doentes que não podiam comer e
beber antes da cirurgia para segurança da anestesia, e esta mãe muitas vezes
não resistia à tentação de dar comida às suas filhas, mesmo depois de eu ter
explicado várias vezes, com a tradução dos locais, o que nos levava a ter que
adiar e atrasar o tratamento crucial para estas meninas... E depois eu
percebi!! Ahhh, Ahhh!! A Tuliza não estava de mau humor porque tinha de ir ao
bloco operatório nesse dia, porque já o tinha feito várias vezes com ela ao meu
colo bastante tranquila e calma a aceitando os tratamentos com serenidade...
Ela estava a bater em toda a gente porque tinha fome!! E sobre isso, eu não
podia fazer nada! Ou tentar arrancar-lhe um sorriso!
E este foi o único momento em que vi a Tuliza sem o seu
sorriso enorme e encantador que animava até os mais deprimidos, e que a mim me
deu um lição para a vida! O seu sorriso era malandro, cheio de energia,
dizendo-me o quanto amava a vida mesmo quando passava por esta situação
terrível... Ela fez-me prometer a mim mesmo que nunca mais na vida voltaria a
estar triste. É surreal, claro... mas como podemos nós estar infelizes? Quais
são essas razões tão fortes que nos levam à tristeza? Quando esta menina de 4
anos que tem o seu pé completamente destruído por uma Kalashnikov por um
militar bêbado, que talvez nunca mais volte a andar normalmente, e ainda assim
mantem este sorriso que é capaz de conquistar o mundo?! Com que direito é que
podemos estar tristes? Eu vou sempre “usá-la” para recuperar o meu sorriso cada
vez que estiver triste...
Eu dei o meu melhor para o tratamento destas meninas, mas
digo com toda a honestidade que elas deram-me muito mais que eu lhes dei a
elas... Elas deram-me uma lição de vida sem preço, e para sempre...
Nunca serei suficientemente capaz de lhes agradecer...
mas com estas palavras simples, tento dedicar-lhes esta história, a elas e a
tantas outras crianças que sofrem por esta guerra estúpida...
Obrigado Noemie e Tuliza, estarão no meu coração para
sempre!
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