Estava em Bangui há cerca de uma semana, ainda era tudo
fresco e novidade para mim, quando todos recebemos a convocatória para as
celebrações do Dia Internacional da Mulher, na sede dos Médicos Sem Fronteiras
(MSF). Em primeira análise até me pareceu ridículo, que me tirassem uma tarde
de trabalho para assistir não sei bem a quê. Meio contrariado, mas de cara
alegre lá fui, mais que não seja pelo espírito de equipa que é fundamental...
A grande vantagem, é que é tudo ao ar livre e com um clima
maravilhoso... A enorme palhota onde se iam desenrolar os acontecimentos é
completamente aberta para todos os lados... só nos protege da chuva, que quando
cai é sempre um diluvio, e do sol que é abrasador... Mesmo que fosse aborrecido
a envolvência é agradável.
Os colaboradores dos Médicos Sem Fronteiras vão chegando...
São na sua grande maioria mulheres... Enfermeiras, enfermeiras-parteiras,
psicólogas, promotoras de saúde, e também de muitas áreas não médicas... E
neste desfile de entrada de gente eu estou maravilhado com a exposição a céu
aberto de alta costura... Diga-se que tenho uma sensibilidade para a moda de um
calhau. Mas aqui é diferente. As cores são vivas. E eu adoro cor. Os tecidos
são todos bem típicos, bem africanos. Há todas as cores do arco-íris, e todas
bem fortes, cheias de garra. E eu admiro que mantenham sempre a sua identidade.
As linhas do corpo são bem moldadas e as curvas são muitas. Os chapéus são
ousados, vistosos, espampanantes e de recorte fino... Não há como não ficar
encantado pela beleza deste espetáculo que começa a amarrar as minhas atenções
e aí vai crescendo um friozinho na barriga e um calor no coração... Não há
dúvida que são mulheres bem africanas, orgulhosas do que representam e
empenhadas por mostrar a tudo e todos o profundo simbolismo deste dia.
Não vou esconder que este dia sempre me passou um bocado ao
lado, assim como tantos outros “dias mundiais de”... O que faz de mim bastante
ignorante. E talvez a única vantagem de ser ignorante é o prazer de aprender e
abraçar emoções virgens com espírito aberto para nosso crescimento pessoal... A
nossa ignorância é a nossa zona mágica, para onde devemos viajar, para onde
devemos olhar com atenção... porque o que já sabemos interessa muito menos, já
não nos vai ensinar nada, apenas nos torna fechados, prepotentes e incapazes de
crescer... E aí estava eu a abrir a minha mente, disponível para ser
surpreendido, com vontade de aprender sobre o mundo e sobre as pessoas... mais
precisamente, sobre as mulheres.
Começam os discursos. Eu estava preparado para tudo e para
nada, mas não estava certamente à espera disto. São palavras vindas do fundo da
alma, nascidas no coração de África e de quem sabe o que fala e sente cada
palavra que diz. A audiência somos todos nós dos MSF, sem rádios ou televisões,
o dia é delas, mulheres centro-africanas... e eu derretia-me ao ouvir das
intervenções mais simples, sentidas, profundas, simbólicas e inspiradoras que
ouvi até hoje...
Abertamente se falou da vida da mulher africana... Da
fragilidade imposta pela sociedade, da forma como eram preteridas para ir à
escola, da forma como são exploradas em trabalhos árduos do acordar ao deitar,
da quantidade de mulheres que morre pelo país fora a dar à luz, do facto de
serem as principais vítimas desta guerra terrível, dos medos constantes de
serem violadas, das mortes por abortos clandestinos, das vítimas de violência extrema
por tiros e por machetes, e na forma e na quantidade brutal de mulheres que de
uma forma ou de outra já foi usada como objecto sexual à força... Palavras
vindas do fundo da alma, de quem fala em seu nome e por todas as mulheres de um
país e porque não dizer de uma grande fatia de um continente? Palavras vindas
de quem sente a dimensão e complexidade do problema, mas também dedica todos os
seus esforços e trabalho em prol da solução, ao acreditar com unhas e dentes na
importância do trabalho dos MSF que aqui em Bangui, salvam centenas e milhares de
mulheres do que seria a história natural desta gente, se não fosse todo o
esforço e dedicação dos que fazem os MSF acontecer.
Eu fiquei com os olhos vidrados e húmidos de comoção. Fiquei
paralisado nas minhas reflexões, ao viajar nas palavras destas mulheres, sobre
mulheres do seu país do seu continente que carregam às costas muito mais do que
crianças e fardos pesados... Carregam o estigma da fragilidade feminina que é
explorada pela crueldade do homem na sua ambição plena, que é recheada de
maldade, ignorância e total indiferença pelo sofrimento de cada mulher... Para
mim foi um banho de realidade, que faz sentir gratidão pelo privilégio de colaborar
numa missão tão nobre. E se dúvidas houvesse, nestes momentos em que o coração
tem via aberta para o cérebro, encontro a plenitude da motivação para fazer o
que faço e estar onde estou. “É por isto que deixo tudo para trás!” ... era a
frase que ressaltava nos meus pensamentos, ao absorver a pureza e a emoção das
palavras que se faziam ouvir naquela palhota...
E depois canta-se... para que o corpo, a alma e o coração
entrem em ebulição... E para quem nada percebe da língua, é hipnotizado pela
sua imaginação...
E depois partilha-se uma cerveja, que se tivermos sorte está
fresca... e dança-se forte à boa maneira africana... como se não houvesse
amanhã... porque por vezes, não há!
É uma honra enorme que não sei medir, ser companheiro de
trabalho de toda esta gente...
E que significado mais importante poderia ter o Dia
Internacional da Mulher?
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