Iraque 1.0 - De Férias


Eu já, uma vez, tinha ido nas minhas férias... Foi 8 anos antes. Foi a minha primeira, e foi para Moçambique. Muitas vezes nas minhas “contas” nem conto com esta, porque sinto que fui apenas dar uma ajudinha, e talvez por isso ainda não tenha escrito sobre isso, mas tenho muito bem guardado tudo no meu coração, e na verdade foi onde tudo começou, e foi nas minhas férias e com o meu dinheiro. A vontade era tanta de seguir o meu sonho humanitário que estava disposto a tudo, de que forma fosse, eu só queria era ir... e assim foi... e assim fui. Espero um dia escrever sobre isso, sobre a primeira de todas as missões...
Desta vez foi bem diferente. Tudo começa num email. Estava no meu hospital a trabalhar e cometi o erro de abrir este email. Dizia qualquer coisa como: “Precisam-se com urgência de várias equipas cirúrgicas para Mosul”, e vinha acompanhado com relatos na primeira pessoa de médicos estrangeiros e iraquianos que descreviam os terrores da guerra do ponto de vista médico... Isso comigo é fazer batota. Eu já estava atento a Mosul há muito tempo, mas tinha uma missão prevista mais para a frente, e como quase todos os mortais, gosto de férias. Mas este email tocou-me nos botões certos, e tocou com muita força. “Não devias ter lido isto” dizia eu para mim, enquanto procurava no meu horário a forma para me libertar do hospital nas datas propostas. O coração volta a bater. Bate forte, bate fundo, até ecoa na minha cabeça o bater do coração ao ponto que empurra para fora todo e qualquer pensamento inteligível... Cria-se um campo de atração electromagnética que não tem antídoto.
Ainda tenho o email à minha frente, leio e releio o que já sei de cor. Sinto-me a tremer e nem sei bem explicar porquê. Porque eu já sabia do que se passava em Mosul, eu já sabia que os MSF lá estavam em força... Mas quando me batem à porta e me falam ao coração... até parece batota... Caiem-me as lágrimas, e nem sei bem porquê... Talvez porque sei que vou. Porque quero muito ir, porque me vai custar horrores dizer à minha mãe com a “publicidade” que Mosul tem tido nas notícias, porque não sei como vou dizer à minha namorada, porque deveria ter férias antes da outra missão já prometida, porque sei que vou. Meti todas as férias e respondi: “contem comigo”. E é aqui que começa a missão.

Fazer as malas é fácil, preparar-me para ir para a pior batalha desde que há memória é bem mais difícil. Leio todos os documentos, procuro documentários e vídeos todos os dias para melhor perceber o que se passa em Mosul, e os relatos são assustadores. São assustadores, são aterrorizadores, são desesperantes, são inumanos, são nunca vistos, são a página mais negra da história desde há muito tempo, choram-se lágrimas de sangue como nunca antes, na terra que é o berço das civilizações... Depois da guerra Irão-Iraque (80 a 88) e da guerra com os EUA nos 90s, e depois da guerra de 2003, o Iraque não precisava de mais uma catástrofe apocalíptica.

Mosul e uma enorme parte do norte do Iraque (e uma grande fatia da Síria) foi ocupada e controlada pelo mais maléfico grupo terrorista que há memória, o Estado Islâmico. Os milhões de Iraquianos que foram subjugados pelo Estado Islâmico, sofreram durante 3 anos a terrível, opressão, sufoco e castração a todos os níveis que possamos imaginar. Agora era o momento do exército Iraquiano, fortemente apoiado pela pujança militar do ocidente, com os EUA à cabeça, para a reconquista e libertação de Mosul, de longe a cidade maior e mais importante sob o domínio do EI.

Sem qualquer espécie de capacidade de igualar o poderio militar que os ameaçava, a estratégia do EI estava sustentada na loucura e determinação fanática dos seus combatentes que não hesitam em oferecer a sua vida pela causa que acreditam, juntamente com a declarada utilização da população como escudos humanos, que se encontravam encurralados e sequestrados pelas armas dos Jihadistas, que não pestanejavam ao disparar sob homens, mulheres ou crianças que tentassem fugir ao seu controlo. 

Imaginem-se na pele desta gente. Estiveram 3 anos esganados pelo fanatismo destes homens de negro que lhes cortaram a liberdade e o oxigénio para respirar, e agora com a decisão que ninguém quer ter de tomar perante as diferentes ameaças de morte... A fome, a sede, as doenças oportunistas da pobreza, as bombas do fogo amigo, ou um tiro nas costas com extensão para a execução de toda a família de quem tentasse fugir do reduto do Estado Islâmico. O que escolher?
Deveria ser escrita a sangue fresco, este pedaço da nossa história, para que a humanidade se envergonhasse para todo o sempre. A guerra foi muito dura, e cada história de vida muito mais...

Depois de ter aceite a missão em Mosul, passava parte dos meus dias a ver e sentir o que lá se passava, e a mensagem que dominava os gritos de alma que me chegavam ao coração era: “o mundo esqueceu-se de nós”, era o que eu ouvia em cada criança a chorar, em cada desespero de uma mãe, em cada poça de sangue, em cada bairro arrasado pela destruição moderna... Eu nunca tinha estado tão emocionalmente envolvido, tão sensibilizado e também tão motivado antes de uma missão, como desta vez... A minha vontade de fazer algo por aquele povo, pelo seu sofrimento transbordava nos meus pensamentos... Numa noite do início de Abril, quando fechei os olhos para tentar adormecer, só vejo e ouço os gritos daquela gente sincronizados com as bombas a cair... “Pensa, pensa, pensa!!! O que eu que eu posso fazer?” era tudo o que eu pensava... Tinha as ideias e reflexões a girar em rodopio dentro do meu crânio que parecia vazio... Gosto muito do que faço, é inquestionável que salvar vidas de quem não merecia morrer é importante, mas não chega. Eu sinto que não chega. “O que é que eu posso levar para Mosul, para além dos meus saberes, e do meu trabalho?” ... fui invadido por uma ideia. Escrevi uma nota no telemóvel para não me esquecer: MENSAGENS PARA MOSUL. Esta ideia aliviou a minha inquietude, adormeci mais em paz, por ter alternado o foco da minha atenção do problema, para o que nos meus sonhos prometia ser algo mais próximo da solução. 

Foi uma boa ideia, mas não foi uma boa altura para ter uma boa ideia. Quase que morri no processo de cumprir a minha palavra e de materializar as minhas promessas. Mas foi a coisa mais bonita que fiz até hoje, o livro “1001 Cartas para Mosul”. Um projecto 100% voluntário, com palavras de uma profundidade emotiva que amolecem o mais duro dos corações, tudo traduzido para Inglês e para Árabe. Quase que morri, de tanto stress, de tanto trabalho, de tanta pressão que crescia á medida que via este projecto/livro a agigantar-se. Ainda não tinha partido em missão para a pior guerra dos últimos tempos, e já estava exausto. Mas também ainda sem sair de Portugal, já tinha feito algo de bonito... Pôr Portugal e o mundo a olhar os Iraquianos nos olhos e unidos no sentido de pura humanidade...
A apresentação do livro foi um hino às paixões humanitárias. Gente importante, televisões, mas acima de tudo muita gente boa... Saiu-me um peso enorme das costas, a partir do momento em que em Portugal o livro agora podia voar sozinho... Eu fiz as malas, onde consegui que coubessem 28 livros à custa de ter levado pouco mais do que isso, despedi-me dos meus e fui para Mosul, agora já concentrado na única coisa que sei fazer na vida... Ser médico, salvar vidas.

Vou começar a escrever sobre a minha missão em Mosul. Não vai ser fácil.


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