A primeira mensagem que eu gostava de deixar é que uma guerra, não passa
apenas porque deixamos de ouvir falar nela... simplesmente deixa de ser
interessante para os media e seus consumidores, ouvir/ler/ver mais do mesmo...
A guerra do Afeganistão não pára de piorar, a cada ano há mais ataques, há
mais vítimas, mais dor e sofrimento...
Em Kabul, os próprios Afegãos tremiam ao ouvir falar da província de
Helmand, pois é sem dúvida um dos pontos mais “quentes” do Afeganistão... A
cidade de Kandahar (bastião máximo dos Taliban), foi rapidamente controlada
pelas forças aliadas, fazendo com que a resistência Taliban, se refugiasse na
província de Helmand logo ao lado, e zona esta que tem cerca de 90% da produção
de ópio do planeta.... Guerra, Droga, Pobreza extrema.... todos os condimentos
para se tornar um local “fantástico” para se viver...
(produção de ópio no Afeganistão)) |
A cidade de Lashkar Gah, onde eu vivi, 2,5 meses é a capital da província
de Helmand. A cidade está “controlada”, pelo exército Afegão, e pelas forças
dos aliados, mas toda a cidade está rodeada por kilómetros e kilómetros de
território controlado pelas forças de oposição Taliban, e que faz desta zona um
terreno muito hostil, e sem dúvida das zonas mais perigosas do Afeganistão....
O dia-a-dia, não me deixa dúvidas de que estou numa zona de guerra. Entre a
casa onde vivemos e o hospital, fazemos sempre caminhos diferentes para que a
nossa trajectória não seja previsível, e assim alvos-fáceis... frequentemente
passam caravanas de 4x4 do exército Afegão e/ou Britânicos (que era a força
internacional da zona) a uma velocidade inacreditável, para que um ataque à
bomba seja mais difícil de acontecer.... e somos sobrevoados frequentemente por
máquinas de guerra de todo o tipo, aviões, helicópteros, drones.... tudo o que
voa e deixa cair bombas passa por cima das nossas cabeças frequentemente.... é
uma zona de guerra! Não há dúvidas....
(Lashkar Gah, e o rio que nunca vi) |
Mas a vida contínua, para quem lá vive... a cidade é grande e com uma área
muito dispersa de casas térreas, feitas na sua maioria de construção em terra,
num terreno muito plano e com uma grande amplitude térmica, extremamente frio
no inverno, e um calor infernal no verão (-20 aos +50º)... A vida da cidade é
agitada, com muito comércio de rua, muitos pequenos Bazars,... e ao que consta
a beira-rio da cidade é super bonita, com um parque simples, mas charmoso, mas
onde eu nunca fui.... proibido, por regras de segurança dos MSF... Em nenhum
momento, pus os meus pés na rua.... A minha vida era: casa-carro-hospital.... hospital-carro-casa....e
assim foi sem excepções... sustentados no lema de que o nosso maior perigo é
estar à hora errada no sítio errado, e como tal havia que jogar com as
probabilidades, para nos mantermos longe dos perigos.... e é desses perigos que
vos escrevo aqui...
O Afeganistão foi a minha 3a missão com os Médicos Sem
Fronteiras, e a minha 3a guerra, depois de Congo e Paquistão. Todas
têm contornos muito diferentes; na guerra do Congo, a guerrilha de
metralhadora, no meio das montanhas da selva, muito volátil, onde as fronteiras
do conflicto variavam a cada dia, na guerra que mais gente matou desde a 2a
guerra mundial, vivi situações in extremis... No Paquistão, a pressão e tensão
cultural/religiosa sufocava-me como nunca pensei ser possível, e a proximidade
a grandes atentados, mexeu na profundidade dos meus medos... mas nunca tinha
vivido/sentido/ouvido uma bomba a rebentar estrondosamente, como senti em
Lashkar Gah, sul do Afeganistão.
Nos briefings que todos temos e várias vezes, sobre segurança,
repetidamente foi falado, o número de atentados que ocorria por época, e eu
sabia que ia acontecer... mais tarde ou mais cedo uma bomba ia rebentar...
estas conversas causam-nos medo e calafrios, mas tento ser optimista e
pragmático.... estatisticamente a probabilidade de me atingir a mim é muito
baixa, e juntamente com a rotina do dia-a-dia, e a pressão imensa do meu
trabalho que tanto me absorve, passamos a viver com essa “estatística”, com uma
enorme tranquilidade... E por isso sentia-me preparado para o que aí viesse... mas
claro que nunca estamos.... como outras coisas na vida.... há a primeira.... e
depois todas as outras...
A minha primeira bomba marcou-me imenso até hoje (mais ou menos 4 anos
depois escrevo, o que na altura senti), muitas vezes me lembro desse dia... e
vou tentar vos explicar porquê!
Eram 10-11 da manhã, estava a beber chá no bloco operatório com 3
enfermeiros, quando ouvi um estrondo, intenso e seco.... gelei e olhei-os nos
olhos.... e um deles, diz com apreensão mas naturalidade: “it´s a bomb!” , senti
o corpo todo a tremer ao imaginar que a centenas de metros de mim acabava de
testemunhar um ataque suicida à bomba.... tantas vezes tinha ouvido falar, mas
senti-lo é bem diferente.... Primeiro gelei, sem saber bem o que havia de
fazer, considerei até continuar a trabalhar... mas revi na minha cabeça as
regras de segurança e achei melhor juntar-me à minha equipa no edifício dos
escritórios do hospital... Os enfermeiros reagiram com uma frieza que me
pareceu estranha, (mas depois de 40 anos de guerra, compreendo), mas também se
começaram a preocupar à medida que tentavam contactar os seus familiares e as
redes de telemóveis foram todas a baixo... Ao deslocar-me ao encontro
dos meus colegas, vários pensamentos começam a assombrar a minha cabeça: “E se
é a primeira de muitas bombas?” (muito frequente, a 2a ser ainda
mais forte).... “E se isto é um ataque à cidade?”.... nisto ao caminhar no
espaço em torno do hospital a céu aberto, avisto a não mais do que 300-400
metros de mim bem alto no céu e ainda a subir, o famoso cogumelo de fumo.... e
é assustador ver a dimensão desta gigante massa de fumo.... cada vez fico mais
assustado, e quando me junto à minha equipa no escritório a apreensão é brutal
e colectiva! Quem foi? Onde foi? Quantos mortos? Quantos feridos? Alguém da
nossa equipa? Algum familiar da nossa equipa? Todo o staff local que trabalha
connosco está nervosíssimo ao saber do local da explosão e a tentar imaginar
se a esta hora algum dos seus queridos por algum motivo poderia estar a passar
ali.... são momentos de grande tensão.... e fico cada vez mais fragilizado pela
emotividade e sofrimento que começo a ver nos olhos de cada um....
Há uma fase de medo, e logo se segue a fase de acção.... há que tratar dos
feridos, afinal é para isso que nós viemos e é isso que sabemos fazer
melhor.... temos um “Mass Casualty Plan”, e todos na teoria sabemos o que fazer,
e aí vamos em direcção ao edifício do Serviço de Urgência, com um rádio na mão para algum alerta de segurança..... nunca se sabe, é tudo imprevisível.... Ainda
tenho uns segundos para levantar a cabeça e ver que o cogumelo de fumo, mesmo
passados alguns minutos, ainda cresceu bem mais e parece estanque e imóvel nos
céus... e foi logo após que avistei o que mais me marcou.... os portões do
hospital que se aproximavam da minha visão à medida que caminhava no sentido do
Serviço de Urgência... Toda a cidade estava em alvoroço.... milhares de pessoas aglomeradas
nos portões do hospital, os feridos trazidos em ambulâncias, ou em carros, ou
em motos, ou em macas, ou em ombros.... e toda a cidade que queria saber se os
seus estavam ou não mortos ou feridos.... até hoje parece que ouço os gritos de
um povo em desespero de quem nada sabe sobre os seus entes queridos.... Os
guardas do hospital, que mais não eram do que 3 ou 4 senhores (sem armas) com o
colete dos MSF, com a tarefa herculeana de deixar entrar os feridos e quem os
carregue sem deixar entrar a população em alvoroço, para que nós possamos
trabalhar... imagens “à filme” com pessoas espezinhadas nos portões do hospital
que eu via através dos ferros, aos gritos, pelos seus familiares feridos ou
mortos.... enquanto os feridos entram a conta gotas pelo meio da população em
fúria....
(foi algo assim que eu vi) |
Já tinha estado em alguns cenários multi-vítimas e sinto-me bem preparado
para tal.... mas é impossível conter a adrenalina que nos sobe pelo corpo e nos
domina por completo as emoções quando entramos no serviço de urgência e o caos
é a palavra que me salta à cabeça.... gritos de dor e desespero, cheiro a sangue
e a queimado, médicos e enfermeiros nervosos a correr de um lado para o outro
meios desnorteados.... há feridos em todos os cantos, e não há macas para todos,
muitos ficam no chão.... a triagem é tudo o que mais interessa, mas que é um
desafio enorme.... estabelecer prioridades, no meio de tantos gritos, detectar
os que têm lesões ameaçadoras à vida, e todos os outros que podem esperar....
Há um primeiro segundo em que o medo e pânico me dominam, sinto um friozinho na
barriga, mas não é tempo de deixar entrar as emoções.... é tempo de agir como
uma máquina fria, treinada e formatada para salvar vidas, não só mas também em
cenários como este.... e arregaço literalmente as mangas para pôr mãos à obra...
Certifico-me de que a triagem está a ser bem feita nos doentes que mais me
preocupam.... pois para os feridos graves todos os minutos contam....
Morreram logo no local mais de 30 pessoas, e houve cerca de 20 feridos
graves (em que alguns vieram a morrer), mas que foram direccionados para o
hospital militar dos Britânicos, e outros para a Emergency (ONG Italiana),
ambos só tratam feridos de guerra, enquanto o hospital onde eu estava era o
hospital generalista da cidade que tratava tudo a todos... e assim recebemos
mais de 30 feridos em que nenhum corria risco de vida... queimaduras, e muitos, muitos estilhaços, e alguns membros partidos....
Quando o ponto da situação estava feito e parecia certo, não entrar mais
nenhum ferido, começamos a “arrumar” a casa, e não sei bem porquê, virei-me
para um miúdo que estava deitado numa maca.... Magro e aloirado de 10-11 anos, de
olhos claros, molhados, mas sem chorar ou berrar.... estava cheio de
estilhaços.... ajudei a tirar a roupa que ainda tinha, e em alguns locais vem a
pele queimada que estava colada à roupa.... e com a ajuda dele que por gestos,
me vai orientado, para as zonas que mais lhe doem, vou inspeccionando todas as áreas
de estilhaços que tem pelo corpo todo.... adorava poder falar com ele, mas
resta-me pousar a mão no seu ombro em sinal de amizade e sorrir, para quebrar o
gelo.... Ele tem estilhaços no couro cabeludo, nas costas por todo o lado, e
por isso está semi-sentado apoiado nos cotovelos, e alguns nos braços e nas
pernas.... apanhou-o de costas....menos mal! Vou-lhe limpando as feridas e as
queimaduras, retirando pedaços de pedra, ferro, madeira e sei lá mais o quê do
seu corpo.... Mas não o consigo fazer, sem lhe causar alguma dor... no entanto,
apesar de ser uma criança, sinto-o agradecido, enquanto lhe caiem lágrimas
pelos olhos.... mas não chora alto, não grita, pouco se manifesta..... apenas lhe
caiem as lágrimas.... Quando caio na tentação de parar para pensar... também
fico com os olhos húmidos, mas retraio as emoções.... estou a li é para
trabalhar...
Depois desta já vivi muitas mais bombas, mas nunca mais me vou esquecer da
minha primeira bomba e da resiliência desta criança...
No dia a seguir, percorri todos os sites internacionais possíveis, a ver o
que diziam, sobre este ataque suicida à bomba, que foi numa rua que era um dos
caminhos que nós fazíamos e fizemos centenas de vezes entre a casa e o hospital...
mas não encontrei notícia nenhuma em lado nenhum....
Para todo o mundo foi apenas mais uma bomba no Afeganistão.... para mim, foi
viver bem de perto a dor de um povo no local onde eu naqueles meses chamei
casa....
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