Nesta história
que me marcou de sobre maneira, simbolizo também o reforçar de uma das
primeiras conclusões humanitárias se assim lhe posso chamar... A intensidade de
viver não só o problema, mas viver no problema, para alem do meu trabalho
clínico e de formação, leva-me obviamente a uma reflexão diária dos “porquês”,
destas catástrofes humanitárias que tenho vivido de bem perto...
Se nos países
ditos desenvolvidos, a esperança média de vida anda à volta dos 80 anos, numa
série de países em África principalmente mas também outros ou outras zonas, dos
quais o Afeganistão é também a cara desse paradigma, em que este numero anda
perto dos 40 anos... Dá que pensar...é uma vida pela metade das nossas! E como
podemos de uma forma muito simples dissecar este número trágico? Se a guerra
que aqui dura desde início dos anos 70s, de uma forma quase ininterrupta, tem
morto muita gente... é em mortes ainda mais estúpidas e evitáveis, que teremos
que concentrar o nosso foco... A falta de cuidados de saúde é que explica na
quase totalidade esta discrepância catastrófica nesta e noutras zonas do
planeta.. que entenda-se é sem dúvida de uma forma indirecta imputável ao
perpetuar da guerra... E não é por não se fazer cirurgias muito diferenciadas,
ou por falta daquele último medicamento ultra caro, que este número cai para
metade... É pelas crianças que morrem por tudo e por nada, pelas infinitas
mortes durante o parto... basicamente pela ausência, ou falta de qualidade total
dos cuidados de saúde mais básicos.... e por isso o orgulho de trabalhar para
os Médicos Sem Fronteiras, não cabe sequer dentro de mim...
Salvamos vidas,
que mais ninguém salvaria, de uma forma totalmente gratuita, indiscriminada, e
imparcial... A canalização das nossas forças é apenas e só proporcional às
necessidades...e isso é lindo! Deixamos um legado de boas intenções, de paz e
sementes de esperança do ocidente.... assim, como boas doses de conhecimento a
profissionais de saúde, e não só. E talvez nesta perspectiva formativa, não
imediata, que revejo as minhas maiores motivações principalmente a longo
prazo... porque as milhares e milhares de vidas que nós salvamos, não chegam,
temos que deixar um legado de continuidade...
Porque a dita
conclusão “brilhante”, a que cheguei no fim da minha 1a missão e que
reforcei em todas as outras, é que a Ignorância é a “doença”, que mais mata nos
países subdesenvolvidos... O que me leva a concluir também que embora eu ache
que ser médico é a profissão mais bonita do mundo... não seja talvez a mais
importante... daí que bem mais difícil, mas mais relevante seria ter uma rede
fortíssima de Professores Sem Fronteiras... difícil, eu sei... mas deixem me
sonhar! Embora, os Médicos Sem Fronteiras, façam também um trabalho incrível,
fora dos hospitais com “Promotores de Saúde”, que andam de porta em porta de
comunidade em comunidade, a explicar coisas básicas e essenciais, sobre
cuidados de saúde primários, e a importância de recorrer aos nossos hospitais
antes que seja tarde, isto muitas vezes em povos cuja a ignorância é de tal
ordem, que negam ou desconhecem a medicina como nós a vemos...
E já vi um sem
número de vezes, doentes ou as suas famílias a recusarem tratamentos
“life-saving”, por ignorância, descrença, desconfiança... E quando eu estive no
Noroeste do Paquistão, havia para mim um “bicho-papão”, chamado Peshawar!
Cidade linda e maravilhosa (onde eu adorava ir e nunca fui), capital de
província do Noroeste do Paquistão, de uma importância estratégica brutal, pela
ligação “directa” a Kabul, e uma das cidades mais intensas e “bombástica”, da
resistência Taliban e da Alqaeda... E eu estava a cerca de 5 horas a norte de
Peshawar, num hospital pequeno mas de enorme qualidade dos Médicos Sem
Fronteiras... E este “bicho-papão” chamado Pesahwar, engoliu-me logo no
primeiro dia em que cheguei, numa história que já escrevi e chamei, “Benvindo
ao Paquistão!”...
E aqui no sul do
Afeganistão, o “bicho-papão”, chamava-se Paquistão! Na cabeça daquela população
que vivia em cenário de guerra desde “sempre”, onde os cuidados de saúde eram
paupérrimos, o Paquistão parecia ser o El Dorado, a cura para todos os males,
mais concretamente a cidade de Quetta, capital de província, e que ficava a
cerca de 6 horas de viagem, por esta terra de Pashtuns, cuja fronteira politica
pouca interessava... Nos casos clínicos mais complicados, para a população era
a tentativa de procurar “algo mais”, e talvez para os médicos locais fosse um
alivio, que estes doentes fossem pelos seus meios, para fora da sua vista... para
mim era uma dor de alma, saber que este Paquistão pouco mais poderia oferecer
aos doentes, e em muitas situações certamente com muito menos qualidade que o
standart fantástico dos MSF... E tudo isto por ignorância e pela dificuldade de
quebrar este mito que me assombrava... este pais que eu adoro, agora ao ser
mencionado “Paquistão”, fazia com que eu ficasse irritado, enervado e
revoltado...por alguns casos que me passaram nas mãos...
Os nossos Cuidados Intensivos |
Lembro-me bem
numa manhã como as outras, chegou ao hospital um rapaz novo, previamente
saudável forte e robusto, nos seus 20 anos, chegou à urgência e depois ao que
se chamava de Cuidados Intensivos (que de intensivo tinha muito pouco!) em
coma... Ou seja, inconsciente, rijo como uma barra de ferro, numa respiração de
stress e a espumar-se pela boca... Família em pânico, e não era para menos, e
os médicos afegãos, num rodopio de pensamentos médicos que pareciam fazer pouco
sentido... Tentei saber o que se passou, que era sempre o mais difícil para
mim, não ficar “lost in translation” de Inglês-Pashtun... E então o rapaz estava
a trabalhar, a rachar lenha e subitamente sentiu uma dor de cabeça muito forte
e depois caiu para o lado, ficando neste estado de coma... Isto obviamente
acendeu várias luzes na minha cabeça... e o facto de ter já uma boa experiência
em doentes neuro-críticos em cuidados intensivos.... fez me pensar que
provavelmente teve uma hemorragia cerebral espontânea, mais concretamente uma
rotura de aneurisma cerebral, ou malformação arterio-venosa... E claro, com
toda a humildade o digo, que a partir deste momento nenhum dos locais está
capaz de seguir o meu raciocínio...e olham para mim, com um mistura de
descrença e admiração... Na ausência de TAC cerebral, só me restava uma
alternativa para lhe fazer o diagnóstico, fazer uma punção lombar na procura de
sangue no liquido cefalo-raquidiano... E assim foi, com alguma dificuldade em posiciona-lo
lateralmente, pico-lhe as costas, e supresa não tive, quando com o liquido
cefalo-raquidiano sai também sangue numa quantidade impressionante... até
repeti o procedimento na dúvida se não lhe tinha picado uma veia.... mas não,
era mesmo liquido cefalo-raquidiano cheio de sangue... E na minha mente está
feito o diagnóstico e resignadamente também o prognóstico... Não há nada a
fazer... pela história clínica, pela profundidade do coma, pela quantidade de
sangue que tem no cérebro.... este rapaz vai morrer... e mesmo no 1º mundo com
acesso a Cuidados Intensivos, Neurocirurgia, Neuroradiologia de intervenção,
provavelmente morreria ou ficava um vegetal... É triste, é frio, é
terrivelmente doloroso para a família deste rapaz, mas enfrentei-os e com a
tradução de um médico afegão, expliquei-lhes o sucedido detalhadamente e
oferecendo a possibilidade de fazer cuidados paliativos a este rapaz
oferecendo-lhe uma morte digna e em paz... dando-lhes a hipótese, de me
interrogarem para qualquer esclarecimento, a única pergunta que me fizeram foi
“Podemos levá-lo para o Paquistão?” É difícil de travar o ímpeto de quem quer
fazer tudo pelos seus.... mas esta família pobre, iria ter que vender tudo, endividar-se,
passar por zonas de conflicto aberto, atravessar a perigosa cidade de Kandahar,
pagar a fronteira, e ainda pagar rios de dinheiro por sabe-se lá o quê no
hospital em Quetta, no Paquistão... transportando num carro banal, este rapaz
em coma, com uma hemorragia cerebral, estando eu absolutamente seguro que seria
em vão... Não consegui dissuadi-los... dei o meu melhor por este rapaz, que
neste caso tristemente era apenas deixá-lo morrer em paz... Nem quis olhar ou
imaginar o transporte e o trajecto, todo este cenário mórbido de um triste fim
de vida... A Ignorância ganhou mais uma vez... e eu acumulei, mais uma pesada
derrota...
Mas dos casos
clínicos que mais me marcou, mais intrigou.... foi o de uma rapariga nova, com
20 e poucos anos, que num certo dia nos apareceu no hospital... O que ela tinha
até hoje não sei ao certo.... e a sua história clínica já arrastada há
meses/anos não tornava a leitura nada fácil... Esta doente tinha uma espécie de
infecção crónica que envolvia a pele e os tecidos moles de todo o
abdómen/pelve, raiz das coxas e zona perineal.... O aspecto era assustador, com
um misto de carne viva e crostas... e as consequências ainda mais dramáticas...
Estava totalmente acamada há muito tempo, completamente desnutrida, sem massa
muscular nenhuma, com escaras de pressão e anérgica... Sem expressão, sem
sentimentos.... até aparentemente demasiado fraca para ter sofrimento... ou
seja, se o tinha, não o expressava... Dramático! Admirei muito o Dr. Nasrullah
director da cirurgia que teve a coragem de a tentar tratar... e assumi com um
misto de perplexidade e entusiasmo o desafio de a tentar manter viva, durante
as cirurgias que aí viriam, e o internamento prolongado, que foi um dos maiores
desafios médicos que já tive... O plano era complexo, e as perspectivas muito
realistas... Lavagens cirúrgicas, antibióticos, transfusões sanguíneas pela
anemia, e uma nutrição adequada, e com objectivos de fisioterapia.... A família,
estava super preocupada, e já tinha tentado vários tipos de tratamentos... sabe-se
lá onde ou em que condições e com que medicamentos....num pais, onde existia
uma enorme força de uma pseudo-medicina e mercado negro de medicamentos de
qualidade muito duvidosa ou mesmos falsos...por todo lado. E assim foi, levá-la
ao bloco sem saber se ela aguentava a intensidade da anestesia/cirurgia....
fazendo lavagens do que parecia infectado... hidratá-la, alimentá-la... quase
dia sim dia não, uma transfusão sanguínea, antibióticos sem fazer ideia que
tipo de microorganismo poderia ser responsável por esta infecção, ou que
antibióticos já teria feito antes... Foi uma duríssima batalha, mas parecia
muito lentamente estarmos a dar alguns passos positivos, nomeadamente na
reabilitação e no seu estado geral... Agarrei-me aos livros à noite, a tentar
estudar várias coisas e nem sei bem o quê... tudo o que me pudesse orientar a
contribuir para a evolução deste caso dramático....numa rapariga tão nova...
Passava por ela, 2 ou 3 vezes ao dia, para me certificar da sua evolução e na
tentativa de orientar os enfermeiros motivando-os para a sua
reabilitação/recuperação... Perdi a conta às vezes que ela foi ao bloco
operatório nas 2-3 semanas que esteve connosco... E estava a melhorar...mas
claro ainda num espectro de gravidade e complexidade muito elevados.... Sabendo
que depois de lhe tratar a infecção, iria precisar de meses ou anos para
recuperar da caquexia e da sua limitação funcional.... Até que numa manhã, em
que chego ao hospital me deparo com a cama dela vazia! “Onde está a doente?”
....e um enfermeiro responde-me prontamente: “Foi para o Paquistão!”
Foddaaassssssseeeeeeee!!
Que merda! Dediquei juntamente com o Cirurgião, horas e horas, fomos exaustivos
nos cuidados e até nas explicações à família e levam a doente sem sequer nos
dizer nada?!?! O Dr. Nasrullah, apesar de todo o seu esforço... mostra-se mais
resignado por certamente já ter vivido tantas e tantas vezes isto.... Mas eu
revolto-me! Na ingenuidade utópica de quem não quer aceitar que mais uma vez a
Ignorância me tenha derrotado outra vez... Estávamos no caminho certo... longo
e penoso, mas o certo... mas a família não compreendeu... queria uma cirurgia
ou um medicamento mágico que lhe salvasse a vida... e assim renunciou os nossos
cuidados de qualidade e grátis... para transportá-la em condições inimagináveis
e perigosas, gastando todo o seu dinheiro... para um hospital onde lhes iriam
cobrar a peso de ouro, sem nada mais que nós para lhe oferecer...
E a rapariga até
estava a melhorar... mas mais uma vez perdi para a Ignorância...
Para alem de
profissionais de saúde, a solução para estas catástrofes humanitárias, passa
pela formação... pela educação, pela luta contra esta terrível doença que mata
mais que todas as outras... a Ignorância!
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