República Democrática do Congo



(Atenção, este texto pode conter palavras chocantes para as pessoas mais sensíveis)

Se escrevesse sobre uma qualquer aldeia de Portugal, teria outra atenção. Se escrevesse sobre o SNS teria outra atenção. Se escrevesse sobre este ou aquele ministro, esta ou aquela greve, este ou aquele jogo de futebol, teria outra atenção. Porque é tão difícil chamar a atenção para a nossa humanidade? Porque é que o nosso sentido de humanidade é como um relógio avariado que acerta nas horas, duas vezes por dia?
Eu acredito que todos precisamos de ocupar algum do nosso espaço mental e de acção na realidade mundial. Compreendo e não julgo/critico, que temos de ir à praia, pensar nos casamentos, na roupa da moda, no último telemóvel, nas séries do momento, nos carros que nos encantam, no novo restaurante que abriu, nas notícias cor-de-rosa, nos casamentos de reis que não nos dizem respeito. Compreendo e não julgo/critico. Mas não encontraremos espaço... algum espaço... qualquer espaço, para pensar e eventualmente ajudar pessoas que estão a sofrer o inimaginável?
É difícil chamar a atenção para a República Democrática do Congo (RDC), mas é esse o objectivo a que me proponho!
A RDC está em guerra. Está em guerra há 24 anos. Estima-se, porque ninguém conta que já terão morrido cerca de 6 milhões de pessoas. 6.000.000 de seres humanos. Cada um com a sua história, triste por sinal. E mais são ainda, os que têm a história dos traumas de quem perdeu os seus.

E como sabemos tão pouco ou nada da pior guerra desde que somos gente? Porque é que estes factos de hoje, aparecem apenas em meia dúzia de documentários pouco vistos, notícias pouco lidas, ou num pequeno rodapé? A dimensão da notícia, somos todos nós que a fazemos. E nós fazemos questão de que a maior notícia do mundo, não seja notícia. Porque somos egoístas, porque somos hipócritas. Porque até a tomada de consciência nos parece um esforço fora do nosso alcance. Viramos a cara para o lado quando nos mostram o seu sofrimento. Porque são pretos, porque estão longe, porque não nos dizem nada. São apenas animais parecidos connosco. Ainda que muitos animais consigam ter mais atenção.

Quando vemos uma mulher grávida no hospital, perguntamos se foi violada. É estranho que esta pergunta salte da nossa boca para fora com “naturalidade”. Mas a verdade é que tem que ser feita, pois 70% das mulheres no leste da RCD já foram violadas. Muitas mais que uma vez. Muitas por vários homens.

No hospital vemos muita gente com sorte. Sorte de terem uma perna desfeita e inútil para a vida, por fracturas causadas por balas. Sorte por terem perdido um olho numa bala de raspão. Sorte de terem os ombros, os braços cortados à machete. Sorte por nos chegarem com as tripas a sair pelos buracos que as AK47 fizeram. Sorte têm porque estão vivos, e porque há quem trate deles. Mas é triste falarmos de sorte, naquilo que mais parece um festival de muletas, cadeiras de rodas e incapacitados.

As balas perdidas parecem ter uma predileção pelas crianças. Talvez porque a uma criança ninguém aponta uma arma. Mas as balas chegam-lhes na mesma. Não seria capaz de dizer quantas crianças já vi, com as vidas estragadas, por sabe-se lá quem e sabe-se lá porquê premiu o gatilho. Vidas perdidas num hospital, numa reabilitação, que nunca terá fim. E estas são as que tiveram sorte.

E é este o dia de hoje da RDC com ondas de milhões de deslocados e refugiados, que deixam a todo o momento mortos, feridos, violados, incapacitados, famintos, doentes de tudo e mais alguma coisa. São milhões no dia de hoje.

Claro que os alarmes do Ébola abrem as atenções de todos. Porque o Ébola pode nos tocar, a guerra não. Nem sequer os seus refugiados porque estão demasiado longe, ou são demasiado pobres para chegar ao Mediterrâneo e ser notícia.

Um enfermeiro que trabalha comigo disse-me que o Congo era amaldiçoado. Deus deu-lhes um clima maravilhoso, uma natureza de uma beleza sem paralelo. Um solo onde cresce tudo, e o sub-solo mais rico do mundo. Mas com isto veio também o Diabo que lhes trouxe a guerra.

Quem será este Diabo?


Empatia e os Números


O mediatismo da gruta da Tailândia fez-nos a todos pensar, sobre o que é que é notícia ou não e com que dimensão. Ao contrário do que muitas vezes ouvimos, não são os media que decidem o que é notícia, somos todos nós. As notícias assim como os políticos são escolhidos por nós e são um espelho do que nós somos... como tal, cada vez mais o queixume do que é ou não importante deve acima de tudo ser transformado numa mudança dentro de cada um de nós.
Apesar de vivermos num mundo onde o enfoque é muitas vezes “a lei do mais forte”, algo egoísta, algo interesseiro, e muito desigual, onde quem faz melhor, ou é mais bonito é recompensado com dinheiro e reconhecimento.... Neste mesmo mundo o colectivo e os seus feitos sustentados pela empatia que sentimos uns pelos outros é também um sentimento poderosíssimo.
Empatia, é um dos sentimentos que nos leva a fazer coisas mais extraordinárias.
E porquê então tanta atenção nesta equipa de futebol das montanhas da Tailândia? Porque são crianças, porque é uma situação com contornos inéditos, porque até simpatizamos com a Tailândia e o Budismo, porque a solução era de fácil compreensão e alcançável, porque é uma história espetacular, e porque nos ilumina com esperança e porque empatizamos com os miúdos e as suas famílias.

Porque se formos honestos e acreditarmos que todas as vidas têm o mesmo valor, concordamos que as nossas atenções deveriam ser atraídas por outros focos.
No Japão morreram 150 pessoas em dias, pelas cheias. Conseguimos empatizar? Não. Estão mortos, não podemos fazer nada muito menos por desastre natural.
No Mediterrâneo, morreram 600 pessoas afogadas em apenas 4 semanas. Conseguimos empatizar? Não. Apesar de serem mulheres e crianças incluídas numa morte aterrorizadora, são milhares todos os anos e não sentimos capacidade de alterar o rumo. Ficamos furiosos pela imagem icónica da criança síria que veio dar à praia na Turquia. Enraivecemo-nos, mas foi-se diluído no tempo, ainda que as mortes continuem.
As zonas de conflito são de longe as maiores tragédias humanitárias, mas a nossa empatia insiste em dirigir-se para outro lado. A Síria é uma gruta que encurralou milhões de pessoas nos últimos anos, mas não há mergulhadores que queiram ir lá salvá-los. E quantas grutas mais há?
Segundo a “Save da Children” 1,2 biliões de crianças, estão em risco de pobreza extrema, ou guerra, ou descriminação de género. Que empatia nos causam estes factos? Nenhuma.

Ficamos agarrados à gruta da Tailândia, porque sentimos empatia mas muito mais porque gostamos de entretenimento. E se formos honestos ao olhar para dentro, mais honestidade encontraremos na busca do “salvamento” de questões infinitamente maiores.

Quando decidimos que uma vida é importante, somos capazes de ir resgatá-la à Lua. Ainda que com os mesmos recursos fossemos capazes de salvar milhões. Mas não o fazemos.