Rep. Centro-Africana 7.0. - Se eu fosse Bilionário


Eu gostava que compreendessem a dimensão do problema. Eu gostava que tivessem a noção da dimensão da desigualdade, da profundidade das carências... Comparassem aquilo que sabem do mundo, o que sabem da pobreza, o que sabem do sofrimento humano, com a visão que vos vou transmitir.
O grande problema é a educação, mais concretamente a falta dela.

A Anestesia ou Anestesiologia é uma especialidade médica já há umas décadas. Começou por ser um anexo da cirurgia na tentativa de tirar a dor e/ou adormecer o doente a ser operado, para ser uma das especialidades que mais contribuiu para a diminuição da mortalidade nos actos em que está envolvida. “Aiii, eu tenho medo é da Anestesia!” ... Este tipo de lamúrias no nosso mundo já não tem razão para existir na quase totalidade das situações. É raríssimo acontecer uma fatalidade não previsível. Raríssimo. Quase zero. Porque esta especialidade cujos saberes e intervenções parecem invisíveis para o comum dos mortais, são anos e anos de estudo e preparação teórica e prática, para que ninguém nos morra nas mãos, e é importantíssima em várias áreas hospitalares... Mas isto é no nosso mundo. Onde felizmente alguém como eu, é apenas mais um. E não imaginam o privilégio de viver num lugar onde assim o é, porque a Rép. Centro-Africana não tem nenhum médico anestesista.

Sim, leram bem. Zero. Num país imenso, com 5 milhões de pessoas. Imaginem o privilégio e a responsabilidade de trabalhar num país como este. Não há medicina sem cirurgias, e não cirurgias seguras sem anestesistas. Imaginem a quantidade de gente que morre por tudo e por nada! É asfixiante pensar nisto.

Num país onde há zero médicos-anestesistas, eu diria que quem precisa destes saberes tem 4 destinos possíveis.

1)         Tem a sorte de encontrar uma ONG que tenha algum médico anestesista. É uma sorte, quase um milagre neste país.
2)         Cruzar-se com um hospital que tenha um enfermeiro de anestesia. Eu na maternidade de Bangui trabalhava com 5 enfermeiros de anestesia. Já há muitos anos que eram formados continuamente pelos MSF. São conscientes e competentes. Terão sempre lacunas nas situações mais difíceis, mas são cuidadosos, organizados e profissionais. Uma vez o David, que era um desses enfermeiros já com cerca de 60 anos, diz-me que é o presidente da associação de enfermeiros anestesistas da RCA, e dá-me um documento (que guardo até hoje com muito carinho) sobre a análise da anestesia neste país... Foi dos momentos em que fiquei mais sensibilizado e mais enternecido com papeis na minha mão... Pelo simplicidade, pelo carinho e pela sua análise cuidada da miséria que é este país. O David disse-me que não chegaria a 30 os enfermeiros anestesistas de todo o país, e que os conhecia a todos pelo nome... Se eu pudesse, naquele momento, dava-lhe o prémio Nobel da Paz e da Medicina... mas tudo o que eu tinha para lhe dar eram os meus olhos húmidos num pensamento profundo, do quão triste era a situação, e quão bonito e inspirador era este senhor. Pela primeira vez em todos os meus 35 anos de vida passou-me uma ideia na cabeça: “Eu se fosse um homem a sério, devia era ficar aqui a vida toda!”

3)         Algo parecido com a roleta russa. Uma vez fui fazer umas formações a uma cidade longínqua no norte do país, que se chama Kaga Bandoro. Deve ser a 4a ou 5a cidade da RCA. As formações eram mais na área do trauma, catástrofe, gestão de multi-vítimas pois era uma zona bastante perigosa. Mas entrei no bloco operatório só para dar uma “vista de olhos”... E fiquei incrédulo. Quem fazia a cirurgia era um estudante de medicina do último ano, sem nenhum médico formado ao lado, e quem fazia a anestesia era.... ninguém! Alguém ia dando Ketamina à sorte, e às vezes mediam as tensões arteriais e mais nada! Sem monitorização da frequência cardíaca, ou da saturação de oxigénio, sem conhecimentos nenhuns, a doente podia parar de respirar que ninguém notaria... Isto era o hospital principal da cidade, onde a vida das pessoas está entregue ao acaso...
4)         Simplesmente morrem.

Mas a área da anestesia é obviamente apenas uma representação de todas as outras. As deficiências de formação e conhecimento são tantas que é muito difícil encontrar recursos humanos válidos e capazes. Eu lembro-me uma vez no hospital principal da capital (Bangui), em que me chamaram para ver um doente que estava “a piorar”... Eu avalio o doente, analiso os registos e vejo ali discrepâncias graves no dossier do doente... Nomeadamente na frequência cardíaca... Um medi 130 batimentos por minuto, e nos registos há minutos atrás estava 70 bpm. Eu fico indignado e chamo o enfermeiro em questão. E pergunto-lhe qual é a frequência cardíaca do doente... Ele vê os registos e responde: “70”... E eu contraponho: “Eu já vi o que escreveste, mas quero que me digas qual é a frequência cardíaca deste doente.” ... Ele ficou atrapalhado e disse-me: “O oxímetro está avariado.”... O oxímetro, serve para medir a saturação de oxigénio no sangue, mas também nos dá a frequência cardíaca... Eu começo a ficar profundamente chocado, e digo-lhe: “Pegas num relógio/telemóvel e contas tu, por favor, a frequência cardíaca.” ... Ele esboçou que fazia qualquer coisa, mas tornou-se inevitável assumir o que eu nunca esperei que fosse possível: “Eu não sei fazer isso!” diz-me ele...
Isto é muito grave! Não saber sentir a pulsação, seja onde for e medir os batimentos por minuto, ou por 30 segundos e depois multiplicar por dois, é para além de escandaloso.... É gritante... E isto vindo de um enfermeiro que tem um diploma, e vive na capital do país... E casos como este são muitos... mas não todos felizmente...

Eu ensinei-lhe como se media a frequência cardíaca, expliquei-lhe também que não se mente nos registos, muito menos nos sinais vitais... porque tal como o nome indica, a vida dos doentes depende da avaliação correcta destes sinais...

E fui à minha vida a pensar que os desafios são muito maires do que eu pensava... Se ele não sabe contar a frequência cardíaca... quando é que chegará o momento em que eu lhe poderia explicar a interpretação dos diferentes valores da frequência cardíaca...

As vidas que eu salvo sabem-me muito bem a mim, e às pessoas envolvidas, mas estaticamente valem ZERO... Tudo o que interessa é o conhecimento que deixamos no local, é a formação, é a educação, são as ferramentas para ter mais e mais conhecimento e no caminho da autodeterminação... é a escola, no verdadeiro sentido da palavra...

Se eu fosse um Bilionário... criava uma ONG e espalhava escolas pelo mundo subdesenvolvido, assim como o MacDonalds espalha restaurantes pelo mundo. Um franchising contra a ignorância.

Dava tudo para a formação de quem não tem escola.

Era o que eu fazia, se fosse bilionário...

Rep. Centro-Africana 6.0 - Infinito


A maternidade de Bangui era muito agitada. Partos e mais partos, crianças por todo o lado, e uma equipa de profissionais fantástica que estava à altura do enorme desafio a que nos propúnhamos. Salvar as mães e se possível os bebés também. Eu passava o dia no meio de cesarianas, na formação contínua dos enfermeiros de anestesia centro-africanos, na gestão clínica dos casos mais complicados e ainda preparava formações sobre os temas que me pareciam mais pertinentes dentro da minha área de conhecimentos, claro está.

E numa manhã qualquer, entro no hospital para um dos casos clínicos que mais me marcou, na vida. Chegamos ao hospital, como sempre religiosamente às 7.15 e a rotina matinal era bem alegre, dizia um Olá no bloco operatório para ver quem estava a sair e quem estava a entrar, perguntava se a noite tinha corrido bem, e seguia para a reunião matinal na palhota para depois começar a ver as doentes/parturientes. Nesse dia foi diferente. Ao entrar no bloco operatório para dizer Olá, já não mais saí. Eu e o Rodolfo que era o meu colega e amigo ginecologista brasileiro.

Vou-lhe chamar Adelle. A Adelle tinha 30 e poucos anos, e chegou á maternidade durante a noite. Não me lembro bem dos pormenores que antecederam a nossa chegada. Mas sei que estava em trabalho de parto, com uma hemorragia importante e foi de imediato para cesariana onde os médicos centro-africanos constactaram que tinha uma pequena rutura uterina, e fizeram uma cesariana a um feto-morto. Até aqui é uma história como tantas e tantas outras. O problema é que todos os sinais clínicos dela invadem o meu cérebro com preocupações. Ela perdeu mesmo muito sangue, está em choque hemorrágico grave e tudo o que eu posso avaliar preocupa-me: frequência cardíaca e respiratória muito elevadas, praticamente inconsciente, e diurese quase nula... Esta mulher está às portas da morte. E ainda sem perceber na íntegra o que se estava a passar há um pensamento que parece um gongo na minha cabeça : “Mais uma?!?... mais uma ?!?” ... nunca é um dia bom para nos morrer mais uma nas mãos.

Eu canalizo todas as minhas forças para lhe inverter o destino, avalio e reavalio dos pés à cabeça o seu estado geral, preocupo-me em colocar-lhe cateteres para as transfusões que se advinham e fustigo o laboratório com pedidos de sangue.... Ponho muita gente a mexer. Voz cuidada, mas firme para que percebam que os minutos contam... Enquanto isto, o Rodolfo está também a transformar as suas preocupações em raciocínios clínicos conversando com os médicos que fizeram a cesariana durante a noite, para que lhe expliquem ao detalhe o que viram e o que fizeram, e depois avaliando do expectro obstétrico clinicamente e com o ecógrafo, construía a sua visão do momento... que era trágico. A nossa conclusão é simples: Ela está a sangrar... Um útero mal contraído, uma rutura uterina não controlada, e uma doente em choque num estado gravíssimo que tinha sido operada há 2 ou 3 horas, e já tinha recebido algumas transfusões de sangue...
E o Rodolfo pergunta-me: “Achas que ela aguenta a cirurgia?” Ao que eu lhe respondo de olhos humedecidos e o coração a bater: “Tem que aguentar!” Não há grande discussão, até nos pode morrer nas mãos... mas morre a fazermos o que tem de ser feito: Parar-lhe a hemorragia. A Adelle não está consciente para além de uns grunhidos quando estimulada com dor... não há grandes conversas a ter com ela, nem tempo de falar com a família... A cirurgia tem que ser feita, mas é uma agressão enorme numa mulher que já está às portas da morte... É estranho porque ali temos dificuldade em ver uma pessoa, quando o estado é tão grave... parece-me que acima de tudo é desafio clínico, com vontade que volte a ser uma pessoa que nós nunca vimos a ser pessoa...

É nestes momentos em que sinto o coração a bater que a missão faz todo o sentido, que me sinto bem e orgulhoso por estar ali... A dormir mal, sem liberdade, a morrer de calor, a fazer mal às pessoas de quem mais gosto e às vezes num confronto com a minha sanidade mental... Tudo vale a pena, nestes momentos...
A Adelle está no recobro e reencaminhamo-la para o bloco operatório... Ela não me ouve e por isso é mesmo em português que lhe digo : “Nós vamos-te salvar a vida!” enquanto lhe passo a mão pelo cabelo...
O início da anestesia de uma doente destas é como tentar levantar voo, só com um motor... É arrojado, é perigoso, é imprevisível... com uma enorme probabilidade de ir contra um penhasco... mas quando em ficar em terra não é uma opção, avançamos! Com as dificuldades expectáveis, o segredo está sempre na antecipação dos problemas e na prontidão total para os resolver... há decisões de segundos de vida e de morte, sem direito a ensaios, sem direito a segundas oportunidades...
Começa a cirurgia, abre-se a barriga que está cheia de sangue, tal como já sabíamos. Repetindo-me: útero mal contraído, ruptura uterina ainda a sangrar, doente quase a morrer... a decisão era só uma histerectomia (retirar o útero). É sempre dramático para uma mulher jovem, mais ainda em África onde a fertilidade é uma parte vital da posição e da importância da mulher na sociedade... Mas aqui, o raciocínio é simples: cada gota de sangue que ela perde está mais perto de chegar ao ponto sem retorno da sua vida... que nunca sabemos muito bem qual é. Porque a medicina é uma ciência, mas não é matemática.
Durante a cirurgia tal como era esperado, ela piora, os sinais vitais degradam-se, e aquilo que para mim é mensurável como sinais de choque está tudo a piorar... assusta, mas eu já sabia que ía ser assim...  A cirurgia é rápida, fecha-se a barriga e ela já vai na quinta transfusão de sangue, em poucas horas... são neste momento umas dez da manhã. Só neste momento é que começo a perceber que estamos todos a morrer de calor... O ar condicionado funciona aos soluços, e aquele bloco parece um forno... Eu estou transpirado da cabeça aos pés... e o Rodolfo no final da cirurgia, retira as galochas dos pés com um litro de suor cada uma... é uma barbaridade... Felizmente para a doente não é mau, pois a hipotermia para estes doentes em choque hemorrágico é o final da história...
A doente está claramente pior do que quando eu cheguei, mas agora com a convicção que já parou de sangrar. O sistema cardio-circulatório é bastante mais complexo do que a canalização de uma casa, mas ainda assim, quando há uma fuga o mais importante é corrigi-la para depois ver se vamos a tempo de recuperar os órgãos que durante muito tempo estiveram sem receber sangue suficiente...
A cirurgia acabou, mas o meu trabalho ainda nem tinha começado... Mais perfusões, mais transfusões, tentar que o rim rapidamente recupere a sua função para controlo do pH, controlar os iões, nomeadamente o cálcio, e esperar que a fisiologia faça o seu papel... “Adelle, aguenta-te!”... pensava eu. E dentro do seu estado gravíssimo a Adelle vai-se aguentando e vai melhorando aos poucos, numa fase em que não piorar já é bom. A diurese é sofrível mas vai acontecendo (o rim é o grande monitor da circulação), a frequência cardíaca e respiratória ainda elevadíssimas, vão descendo para valores que já não me cortam a respiração... e a consciência depois de duas anestesias gerais é difícil de avaliar...

A doente está no recobro, os enfermeiros de anestesia estão em sintonia com todos os meus raciocínios clínicos e o meu dia segue apreensivo, mas segue... há muitas outras doentes a precisar da minha atenção... Mas eu fico obcecado, fico hipnotizado com estes casos... a cada meia hora venho ver a Adelle, devoro e mastigo as tendências dos sinais vitais e de todos os sinais clínicos que consigo avaliar... Mas como é normal nestes casos muito graves, vai perdendo um bocado de sangue aqui e ali, e eu vou compensado com uma e outra transfusão... Sim, isto é medicina intensiva hardcore em condições de trabalho muito básicas, com muito poucos (ou nenhuns) meios de diagnóstico o que leva a alguma tentativa de adivinhação cientifica da minha parte...

Volta e meia, faço o ponto da situação em conjunto com o Rodolfo... A doente parece estar melhorzinha, mas há demasiados factores a ter em conta o que torna difícil responder à questão, se ela está melhor? E certo é, que ainda estamos muito longe de mandar foguetes! Aproximamo-nos das 5 da tarde que é a nossa hora de recolher obrigatório, e eu e o Rodolfo juntamente com os médicos centro-africanos, juntamo-nos para fazer o ponto da situação antes de deixarmos o hospital... Eu não estou super contente com a evolução, não consigo dizer que seja claramente positiva... Mas a hemorragia major parece controlada, os sinais vitais muito longe do normal, mas não pior... e agora parece-me uma questão em que o tempo é a única solução... Vamos para casa... mas não vamos muito felizes...

Eu já em casa por volta das 6.30, recebo um telefonema de um enfermeiro de Anestesia apreensivo. O meu francês está longe de ser perfeito, e a qualidade da chamada é péssima, cheia de interrupções. Eu percebo que ele me diz que a Adelle está pior. E eu levo logo ali um balde de água fria que me acordou todos os sentidos.
E eu pergunto: “Como estão os sinais vitais?” E ele vai me respondendo... mas eu só percebo meias palavras, e ele também não perceberá todas as minhas... E eu estou sempre a perguntar: “O quê? Quanto?? Repita, se faz favor!!” E vou construindo a imagem de que a doente está efectivamente pior... mas a explosão vem quando ele me diz: “Doutor, eles vão operá-la!”... e eu: “O quê?!?!?! Nãooooo!! Não a operem!! Não a abram!” tenho esta memória como se tivesse sido ontem.... eu aos berros em Francês... “Il ne faut pas la ouvrir!!!!!” (não a abram!) .... repeti umas quantas vezes, e acrescentei: “ Eu e o Rodolfo vamos já para aí!”

Eu tinha uma convicção forte que fosse o que fosse, a resolução não era cirúrgica... um passo em falso nesta doente era morte pela certa. Em circunstâncias excepcionais de vida ou de morte, podíamos ir ao hospital durante a noite (apenas até às 22.00) desde que os responsáveis pela nossa segurança confirmassem que ninguém está aos tiros a meio da noite naquela zona... E assim foi, liguei à minha chefe que deu o ok, liguei ao Rodolfo que estava noutra casa perto e liguei ao motorista em regime de urgência máxima. Este motorista era o meu treinador de futebol que me adorava e ao Rodolfo também... e estava habituado a ter com ele um registo descontraído na palhaçada a falar de futebol e da vida em geral... Mas quando ele chegou eu nem lhe mostrei os dentes: “Rápido. É urgente!” Ele percebeu a mensagem e foi a voar num percurso que pode demorar 20 minutos, chegou-nos 10 para atravessar uma cidade que anda sempre ao sabor do sol, e como tal a este horas já é bem noite e as ruas estão quase desertas porque quase não há electricidade em lado nenhum... Minutos que chegam para pôr o Rodolfo a par dos poucos dados que eu tinha, e para discutirmos no plano teórico as hipóteses do que poderia estar-se a passar... E assim vai, em Português transatlântico uma conversa que vale (ou não) a vida da Adelle, no coração do mágico continente africano.

Eu tenho o coração a bater cada vez mais rápido e imagino que o Rodolfo também... O carro ainda não parou e eu e o Rodolfo já saltamos em andamento literalmente a correr para o bloco operatório. A doente já estava deitada na marquesa do bloco operatório... Os meus berros, os meus gritos de alma serviram pelo menos para que não a abrissem sem que nós chegássemos. E agora vamos ver o que se passa. A doente está sem dúvida pior do que eu a deixei... dá-nos sinais que sangrou bastante... e com o ecógrafo vemos que o abdómen está com litros de sangue... E por isso o raciocínio do médico centro-africano, que por acaso até tinha muita experiência, não é descabido... Se a doente está a sangrar, temos que a abrir para parar... Mas eu tinha uma convicção muito forte que não era isso que se estava a passar... A minha primeira hipótese diagnóstica é que a doente tinha alterações da coagulação (coagulopatia) graves que lhe estavam a causar esta hemorragia, e cujo o tratamento é médico e não cirúrgico... Mas ficamos ali num impasse de confrontação honesta e construtiva... Em que o médico centro-africano dizia: “Está a sangrar, temos que a operar!” e eu tinha uma convicção muito forte: “Sim, ela está a sangrar, mas o que ela precisa é que tratemos a coagulação, se a operarmos ela morre!” ... O Rodolfo podia desempatar, mas não o fez... Um excelente médico ainda que muito novo, e muito diplomático, percebia que ambos os argumentos eram muito válidos... e eram... Eu não conseguia dizer que o médico centro-africano estava a dizer uma aberração... ele até podia ter razão. E se tivesse quem estava a matar a doente era eu... A Adelle neste momento é um pedaço de carne com o coração a bater mas com a vida a fugir-lhe... deitada num bloco operatório com 3 médicos a discutir literalmente à volta dela... Eu virei-me para o Rodolfo e perguntei-lhe... (e agora estão dois lusófonos a falar Francês): “Rodolfo, pensa bem. Achas que deixaste algum vasinho a sangrar na cirurgia?” E ele disse-me: “Eu acho que não!”... Certezas absolutas nenhuma pessoa inteligente tem... Ele tinha dúvidas e eu também... Mas eu tinha uma convicção muito forte... E apesar destas decisões não virem nos livros de medicina, eu argumentei, e argumentei... e ganhei a discussão. Mas quase que preferia ter perdido... porque pensava com os meus botões: “Se é por orgulho, e se por acaso estás errado.... mataste a doente!” ... e sinceramente o que me passava pela cabeça era que não me sentia forte o suficiente para sobreviver a esse trauma...

E o caminho escolhido por mim também não era simples... Tratar esta coagulopatia, neste fim do mundo, a estas horas da noite nunca seria fácil... Mas eu neste momento sentia-me capaz de virar o mundo ao contrário para que a Adelle voltasse a ser gente. No nosso mundo de medicina dos ricos, isto trata-se com os diferentes componentes de sangue responsáveis pela coagulação: Factores de coagulação, plaquetas, fibrinogénio, etc... Mas na medicina dos pobres, a única forma de tratar uma coagulopatia é com sangue total fresco... Ou seja, é o sangue que é recolhido do dador e dado ao doente, sem ir ao frigorífico... Isto porque o frio que serve para a conservação do sangue, inactiva todas as capacidades de agregação das plaquetas e funcionamento dos factores da coagulação... Mas quando eu peço ao técnico do laboratório sangue fresco, a resposta dele é pronta: “Não há!” ... Mas eu estava num estado de espírito qua jamais engoliria este Não.... E disse-lhe: “Eu não quero saber a quem vais ligar, se vais acordar a cidade toda, se vais ligar ao teu pai ou à tua mãe, ou se vais ligar ao Presidente da Rép. Centro-Africana... EU QUERO 2 UNIDADES DE SANGUE FRESCO COM URGÊNCIA!!!!” ...  Não sei bem como funcionou, mas funcionou a minha pressão quase ameaçadora... Ele veio com o recado que o Serviço Nacional de Transfusões ía trazer 2 unidades de sangue fresco dentro de 30-45 minutos... E eu agarrei-me a essa esperança enquanto pensava... “Tanta gente a morrer neste cidade em todas as esquinas, já para não falar em todo o resto do país que é ainda mais pobre... E estou eu a pôr o meu pescoço debaixo da guilhotina por uma doente que vai morrer de qualquer das formas... O que estou eu aqui a fazer?”...

Eu estava entre a doente e o laboratório, pois já não me adiantava muito agora olhar para a doente... eu só podia ser útil na pressão no laboratório... porque nestes sítios é mesmo assim... se queres alguma coisa bem feita, tens que ser tu!
Chega o sangue numa ambulância e seguem de imediato para as mãos do técnico para as testar.... E foi aí que o meu mundo caiu, quando ele me diz: “Doutor Gustavo, não podemos transfundir estas unidades, porque o crossmatch deu positivo!”.... Em bom português, o que me veio à cabeça foi: FUUOOODDAAAAA-SEEEE! Assim não. Morrer na praia assim não!... Ou seja, apesar do grupo ABO e do Rhesus (+ ou -) ser compatível... era O+ ... (ainda tenho os cartões comigo)... há outros antígenos que podem causar reacções transfusionais, que podem ser fatais, e estes testes rápidos servem para prevenir isto... Mas numa doente que já recebeu 9 transfusões de sangue... Sim, 9! Já não se sabe bem quais são os antigénios que são dela e os que não são... E é nestas alturas que dou graças a tudo, por ter estudado com muito afinco o livrinho das transfusões e dissecado o tema de trás para a frente... E disse-lhe: “ Eu assumo o risco, vamos transfundir!” ... e ele responde de seguida... “ Não podemos doutor, é contra as regras de segurança das transfusões, é ilegal!”.... Eu não levantei a voz... mas olhei para ele muito firme, fazendo bem transparecer que não ia ceder nem um milímetro: “Eu assumo a responsabilidade TODA! Vamos transfundir a doente!”

É difícil explicar o que se está a passar na minha cabeça neste momento... Eu senti que estava a carregar o mundo às costas sozinho... Mergulhado nas minhas convicções (que não são certezas)... cheio de medo de estar errado depois de ter feito “all-in” atrás de “all-in” nas minhas decisões... quando seria tão mais fácil fazer as coisas de outra maneira... Sabia que se a doente morresse fosse pelo que fosse ía ter o mundo a olhar para mim, e provavelmente um inquérito disciplinar... Mas muito pior do que isso, será que ía sobreviver à minha consciência? Até porque se estiver errado, nem sei se é por não termos tentado operar a doente ou se ela morrera de uma reacção transfusional em cima dum estado crítico...

Começamos as transfusões... ao mesmo tempo que chegamos às 22.00 que é o máximo dos máximos que eu e o Rodolfo podemos ficar no hospital por razões de segurança... e recolhemos a casa... Eu sentia que aquele pequeno telemóvel Nokia era uma extensão do meu corpo, era como se fizesse parte de mim... Telefonemas da minha parte para o hospital, consecutivos! Esta doente recebeu 11 transfusões de sangue. 11!!... em menos de 18 horas...  Cada unidade de sangue tem cerca de 500 mL, e um adulto de 70Kg tem cerca de 5 litros de sangue... A Adelle recebeu mais sangue do que todo o seu sangue... E tendo em conta que não ficou todo lá dentro... deve ter sangrado por esta altura mais de 7 litros de sangue... Não sei explicar isto em linguagem não médica... O desafio que isto é em condições tão precárias... é indescritível...


Dormi mais nervoso que nunca... E no dia a seguir de manhã, quase que partia as portas ao entrar pelo recobro a dentro, onde a tinha deixado na noite anterior... Olho para a Adelle e pela primeira vez desde que a minha vida se cruzou com a dela vejo gente... Parece que lhe passou um camião por cima... mas está viva J)) .... Está consciente com os sinais vitais francamente melhorados, e sem sinais de hemorragia activa...

“Adelle, ganhamos!!” 


Nunca ninguém compreenderá a solidão e angústia das minhas decisões... mas não é por ter razão que estou feliz. É porque ela está viva! E fora de perigo!

A Adelle perdeu o seu filho à nascença, mas saiu do hospital bem de saúde para cuidar dos filhos que tinha em casa, e mais ainda... vim a saber no final... a Adelle é enfermeira-parteira pelo que continuará a ajudar mães e crianças a vir ao mundo com saúde num país onde os recurso humanos são estrondosamente escassos...


Felicidade infinita... Se fizermos o bem, ele será Infinito, multiplicar-se-á para sempre, assim a vida da Adelle se multiplica em tantas e tantas outras...