Afeganistão 1.0 - Quem é que não se lembra onde estava no 11/9/2001?



Eu lembro-me como se fosse hoje...

Um dia que só não marcou a vida dos mais desatentos...

Tinha 20 anos, estava numa casa temporária, pois o apartamento dos meus pais estava em obras. Estava numa fase fantástica da minha vida, como sempre fui um rapaz muito lutador e cumpridor, tinha feito todos os exames direitinho do 3º ano da Faculdade de Medicina, sem nunca deixar nada para a época de Setembro, desfrutava dumas férias fantásticas, de muita festa, muito surf, muito desporto e poucas chatices ou responsabilidades...

Era por volta das 2 das tarde em Portugal, estava um dia de sol magnífico, e eu acordei tarde e “cansado” da noite anterior... A minha irmã chamou-me quando estava a ver televisão e anunciaram o embate do 1º avião na primeira torre.... e eu fui a correr para a sala, e aconteceu-me aquilo que muitos de nós bem se lembram..... Assistir em directo pela tv, ao embate do 2º avião na segunda torre... quando achávamos que era a repetição do 1º....... Chocante, Impressionante, Cativante... Era impossível, largar a televisão.... Fiquei boquiaberto, “atraído” pelo “espectáculo”, como quem fica maravilhado pela espectacularidade dos grandes desastres naturais.... Triste, desesperante, assolador, o espectáculo de fogo e destruição que se viu e reviu na televisão enquanto as Torres Gémeas caiam perante a impotência da nação mais poderosa do mundo...

Quem foi? Lembro-me bem dos dedos acusadores, terem corrido várias caras, vários países, vários grupos, num curtíssimo espaço de tempo...

É triste, mas festejava-se em algumas partes do mundo, lembro-me por exemplo da Palestina, onde milhares saíram à rua, por verem de joelhos, aquele país que tanto mal lhes fazia.... mas nada tinham a ver com a história dos ataques.

De repente, o nome Alqaeda, era como sempre tivesse existido nas nossas cabeças..... Quem são? O que querem? Porque fizeram isto? Onde estão? Quem é o Líder? Osaba Bin Laden.... Onde está este Saudita/Iemeni? No Afeganistão! Então vamos lá!

Poucas vozes, ou pouco audíveis do mundo ocidental se mostraram contra... Parecia tão óbvio e legítimo, aos olhos de todos uma “Guerra Justa”, embora se saiba lá o que isso quer dizer....

Antes até das Nações Unidas se pronunciarem já as forças especiais dos EUA, entravam no território do Afeganistão....

E claro, os Taliban..... esses estudantes do Islão, que controlam quase todo o pais desde 1996 à custa de barbáries, faziam parecer ainda mais óbvio o interesse mundial!!!!! da invasão deste pais....

Ficamos a saber pouco mais sobre este fantástico e maravilhoso pais, ainda menos sobre o seu povo que tem tanto para nos contar, mas muito ficamos a saber sobre Alqaeda e Taliban, ao ponto de que muita gente ainda acha que é mais ou menos a mesma coisa..... mas não tem nada a ver.

E foi assim que eu tomei conhecimento deste pais..... GUERRA, e mais guerra e mais guerra. Penso que posso dizer que é o maior espectáculo bélico, desde que eu sou gente, aquele que fez correr mais tinta, fotos e filmes....

Afeganistão=Guerra . Dias, meses e anos, a falar da guerra do Afeganistão, em que era bastante óbvio para toda a gente que havia bons e maus.... Quase que aplaudíamos as explosões, bombas, etc.... O Afeganistão era guerra, sangue, burqas, sofrimento, miséria, extremismo Islâmico e pouco mais....

E eu nunca mais me esqueço de como a nossa vida mudou a partir do 11/9, da mesma forma que, 10 anos depois, nunca me esquecerei do momento em que disse à minha mãe: “Mãe, gostava de ir trabalhar para o Afeganistão!”

Ão, ão, ão.... Afeganistão.... o nome assusta, porque nos fizeram ficar assustados com este nome... e pouco tempo fica para verdadeiramente saber o que se passa no terreno, pouco tempo fica para se saber o que é o Afeganistão e os Afegãos, e ainda menos tempo fica para a verdade.....

Na minha estadia apaixonante no Paquistão, em que muito já foi escrito, o meu estudo, compreensão sobre o local onde estava, cruzava-se muito com a história do Afeganistão, a compreensão da guerra, e a compreensão destes bichos papões que co-habitam nestes países, a Alqaeda e os Taliban.... e como tal, 10 anos depois do 11/9, já muito sabia sobre o Afeganistão e o seu povo.... e muito mais queria saber...

Guerra injusta, país interessantíssimo, povo paupérrimo, e um sofrimento transversal a todo o país, com uma carência de cuidados de saúde abismal, levou-me a ficar super motivado quando os Médicos Sem Fronteiras, me propuseram ir trabalhar para o Afeganistão, os meus olhos brilhavam e o meu coração encheu-se de alegria.... mas as minhas pernas tremiam quando vi, o meu nome no bilhete de avião para Kabul, depois de ter visto tanta guerra e tanto sofrimento associados a estes nomes, aos quais eu ia agora ao encontro.....

Foi há 13 anos o 9/11, e foi há 3 anos quando me preparava para correr atrás de um sonho, mas que ao mesmo tempo era um monstro assustador.... salvar vidas no Afeganistão e perceber quem é esta gente que vive neste bicho-papão...

E por isso gostava de vos contar umas histórias, desta viagem que me mudou para sempre....


Afeganistão 2.0 - A Partida... para a Guerra.

De volta ao Afeganistão….. fecho os olhos e regresso ao Afeganistão... ou talvez um bocado antes.... à Partida, à preparação, literalmente para a Guerra.

Neste momento tenho imensa vontade de escrever, fico na dúvida se tenho vontade de ser lido (que é sempre um ânimo), ou se simplesmente preciso de escrever e reviver vivências que são tão importantes para mim....

É difícil de explicar, sendo muito honesto comigo e com a minha escrita, encontro verdades diferentes, ou se calhar uma verdade que se complementa..... na tentativa de (me) explicar o porquê de ir para um cenário de guerra.... outra vez.... a 3a vez!

É tão egoísta! É tão egoísta esta vontade de ir.... vontade de viajar, vontade de conhecer, vontade de compreender o mundo, vontade de ver a história com os meus próprios olhos, vontade de salvar vidas, vontade de incandescer a minha vida, vontade de sentir o coração a bater mais forte, vontade de sentir o medo outra vez, vontade de me desafiar, vontade de orgulhar os que gostam de mim, vontade de gostar de mim, vontade de dar um sentido mais nobre à minha vida, vontade de sentir que sou parte da solução..... vontade de ir! Vontade de voltar a morrer de saudades para voltar....

E foi há 3 anos, que o meu Natal, ficou marcado, pela viagem iminente para o sul do Afeganistão. A consciência de que magoo muita gente ao satisfazer este egoísmo, faz me também a mim sofrer.... mas a minha motivação egoistamente ultrapassa tudo. Sei que nenhuma mãe merece aquilo que eu fiz passar a minha, sei que todos que gostam de mim sentem um friozinho na barriga, pelos perigos que se sentem ao ligar a televisão.... e sei que não foi justo eu magoar tanto a minha ex, com o egoísmo do meu sonho humanitário.... mas eu fui! E por isso dedico todos os meus esforços, todas as minhas palavras, na proporção exacta às pessoas que magoei por querer tanto ir..... para uma guerra que não é minha, salvar gente que nunca vi, dar uma palavra a quem a quiser ouvir, que este é o caminho.... que em consciência, dou a minha vida por qualquer outra.... porque quando respiro fundo e fecho os olhos.... nos momentos em que gosto mais de mim, é nisso que acredito! E por isso eu vou....

Foi um Natal, especial, em que todos os momentos são mais “intensos”, sou muito optimista, mas a cada desejo de “Bom Natal”, está implícito no meu subconsciente que poderá ser o último.... Estou mais sensível, e gosto. Gosto desse medo do que aí vem, que faz sentir cada toque ainda mais especial... Valorizo mais os “momentos”, congelo o pensamento em lugares comuns, fotografo situações no meu pensamento, de família, amigos, de amor.... para levar comigo.... Despeço-me de cada canto da minha cidade... .o como ao Porto, eu digo tudo sem vergonha.... Só lhe digo: “Espero que não seja a última vez que nos vemos!”.... Há muitas situações de lágrimas nos olhos, que guardo para mim.... Eu tenho medo, mas adoro esse medo.... que simboliza o amor que tenho à vida, e adoro ainda mais a força que me faz ultrapassar esse medo....

E o que dizer da passagem de ano! Aquele marco inventado por nós que nos leva incontornavelmente a pensar nos antes e nos depois..... Em que cada vez que num abraço eu ouço “Bom Ano”....o meu cérebro traduz de imediato para “Eu vou para o Afeganistão!”

E logo depois começa a viagem....

Porto-Bruxelas-Dubai-Kabul-Lashkar Gah .

A saída do Porto é sempre a que custa mais.... nesta altura já não dá para aguentar... a experiência ajuda, mas o coração quase que explode.... Mochila às costas, cachecol do FCPorto, a representar todo o meu mundo.... e entro no aeroporto num turbilhão de emoções.... sozinho, bem sozinho contra o mundo, e cheio de vontade de viver.... Limpo as lágrimas que ninguém viu, e sinto que começa a “missão”. Há muito trabalho a fazer.... muitos documentos a ler e reler, sobre tudo o que vou ver, viver e fazer.... Ultra motivado e cheio de vontade de começar a trabalhar, na única coisa que sei fazer... mas já a morrer de saudades.

Adoro ir ao “headquarter” dos Médicos Sem Fronteiras, em Bruxelas.... cheira a mundo! Sente-se um bocadinho de todos os pontos longínquos do planeta onde os MSF estão a trabalhar, para que o mundo seja um bocado mais justo... Sou metralhado de informação sobre o projecto em que vou trabalhar, o stress aumenta, mas é banalizado..... porque há tanta gente ali que já foi, veio, e voltou ali e a tantos outros lugares, que relativizam toda aquela carga emotiva de quem vai entrar num dos locais mais perigosos do planeta...

Conheci o Tom, um rapaz belga, engenheiro, que iria fazer a viagem até Kabul comigo.... é fantástico ter companhia.... porque nas outras vezes fiz tudo muito sozinho.... Juntos vamos à embaixada Afegã em Bruxelas tratar de papelada.... provavelmente é preconceito, mas ao falar com as autoridades Afegãs já parece que estamos em guerra.... e aquela ingenuidade de quem acha que é obvio que vamos lá para ajudar é desfeita numa série de olhares e perguntas desconfiadas e desconcertantes.

E com uma fantástica cerveja belga e um bom conjunto de pessoas improváveis, me despeço do mundo dito civilizado, e faço os últimos telefonemas aos que me fazem querer tanto voltar inteiro, não sabendo quando e como iria poder voltar a falar com o meu mundo....

Ao chegar ao aeroporto de Bruxelas, revisito intensas memorias da minha partida para o Congo em 2009..... acho graça me lembrar tão bem de certos lugares do aeroporto e de emoções tão ou mais fortes das que ali sentia 2,5 anos antes.... viagens dentro da viagem. Sento-me exactamente no mesmo banco no exterior do aeroporto, que me tinha sentado antes de ir para o Congo, e vivo e revivo, aquele presente e o passado, antevendo o futuro que estava quase a chegar.... Momentos de reflexão, de uma solidão intensa, que eu não me canso de amar sentir. Avisto a chegada do Tom, com o seu pai, observo aquele filme de despedida “agarrado ao ecrã”, imaginando e transpondo o que aquele pai estaria a sentir ao abraçar o seu querido filho antes de ele partir para esta guerra destruidora, que assusta só de ouvir falar.... Adorei ver aquele momento que para mim era de uma enorme intensidade emotiva, e mais ninguém da multidão incógnita se apercebia do que se estava a passar.... Mais tarde o Tom, disse-me que a sua mãe, nem aguentava ir ao aeroporto.....é muito forte! Acho que nem eu sei muito bem explicar....


E ai fomos nós rumo a Kabul.... de coração aberto, medos e motivações na equação certa.... com um nervosismo saudável, cheios de sonhos e vontade de ser felizes....

Afeganistão 3.0 - Chegar a Kabul


Aterrar em Kabul, é no mínimo lindo de morrer. Após sobrevoar uma enorme parte do Afeganistão a contemplar a incrível beleza da cordilheira do Hindu Kush, com montanhas lindas cheias de neve, enquanto tentava imaginar àquela enorme distancia o terrível sofrimento que aquele pais tem estado sujeito... Uma guerra é algo horrível..... a sensação de, a existência desta guerra estar assumida nas nossas mentes, por um processo de habituação, após 11 anos de guerra bem dura (agora a caminho dos 14 anos), ultrapassa tudo! Estar em guerra não pode ser normal!!

De dentro do avião, contemplo a beleza das montanhas e de olhos colados à janela imagino a quantidade de sangue e sofrimento que aquela terra já viu... O coração aperta e bate mais forte, viajo dentro da viagem....começo a sentir aquilo que não se explica.... vive-se quando a realidade nos bate de frente.... e ainda nem tinha chegado.... só a aproximação arrepia, e a antecipação invade-me o corpo já muito cansado da viagem.... Kabul, cidade de importância histórica intocável, é rodeada de altas montanhas a 360º, quase como de uma cratera se tratasse.... A aproximação à cidade de avião é espectacular, com as montanhas totalmente cobertas de neve, prova de um inverno rigorosíssimo, onde os -20ºC são a temperatura  mínima espectável.... Vivo um misto de admiração e agradecimento, pelos incríveis momentos, com um friozinho na barriga por estar prestes a entrar num dos países mais perigosos do mundo....

O que esperar de uma cidade tão fustigada pela guerra?! Tão mediatizada pelo terror?! Ao sair do avião as pessoas transformam-se, para uma versão mais conservadora, mais fechada, comparativamente ao que transpareciam no aeroporto do Dubai.... Os véus fecham mais as caras, caem algumas burqas pelo corpo abaixo, e os vestígios de algum toque de ocidentalização parecem desaparecer nos homens e mulheres..... Sinto-me logo, mais e mais em destaque ao destoar de todos que me rodeiam ainda no avião! Sinto-me diferente, exposto, e isso claro, causa algum desconforto....

À saída do avião, estigmas de um país subdesenvolvido, apresentam-me o que me esperava..... confusão e desorganização brutais! Olho com espanto para o carimbo do meu passaporte que agora diz Afeganistão! O ritual de espera das malas, marca bem a diferença civilizacional..... tudo em cima uns dos outros, anarquia total, e a probabilidade de ser roubado parece altíssima.... e não me parece que os perdidos e achados sejam de confiança ;). Mas acho piada a este caos que funciona.... ou vai funcionando. Respiro de alivio quando pego na minha mochila.... e fico encantado por ver uma prancha de snowboard a chegar no tapete!! Depois li algures que alguns jornalistas mais aventureiros, fazem snowboard algures nessas montanhas.... infelizmente não será por aí a minha ventura ;). 
(estádio de Kabul onde 
se faziam execuções públicas)

Ao passar as malas no Raio-X, com a presença de muita segurança/militares, perguntam-me se me podem abrir a mochila pequena e que garrafas trazia lá dentro.... Eram 6 cervejas, pois é legal entrar com uma quantidade de álcool até aos 2 Litros, e todos os estrangeiros trazem do duty free do Dubai, porque em Kabul é muito difícil beber uma cerveja, e quem aqui fica algum tempo, sofre de desejos de um copinho para descontrair... Então um militar, abre-me a mochila, contempla as cervejas, tira uma, e diz-me com a maior das latas a rir-se para mim “taxa de aeroporto”, e mete a cerveja debaixo da mesa! Ou seja, fui roubado, “in your face”, mesmo.... mas restam-me poucas alternativas do que rir de volta fechar a mochila e seguir caminho! Cabrão! Engulo a minha pequena revolta, pois não me pareceu sensato estar a discutir ali, cheio de gente com armas.... apenas pelo meu orgulho.... o cansaço ajudou-me também a aceitar o acontecimento com mais passividade...

Tenho ainda fresca, a memória de quando fiquei “esquecido” no aeroporto de Islamabad, sozinho de madrugada.... o que não foi nada agradável.... E não me apetecia nada que me voltasse a acontecer o mesmo em Kabul! Passo vários checkpoints de segurança, de controlo de passaportes e detectores de metais, até sair do aeroporto, e só no parque de estacionamento, é que nos podem esperar.... E lá está o clássico 4x4 Toyota dos MSF, cá fora! E quando vejo aquele logótipo sinto-me logo seguro e mais tranquilo! É família! Estão ali à minha espera.... Um motorista Afegão que nunca vi, mas apetece-me logo abraçá-lo! Bem tudo isto é acima de tudo medo do desconhecido, mas Kabul impõe respeito!

Depois de um Asalam Aleikum, que fica sempre bem, entro para o carro.... e ainda há aquela tentativa infrutífera de falar.... mas inglês que é bom, Nada! Mas confio, ele deve saber onde me levar.... e encosto-me para trás a curtir a cidade.... Uma mistura enorme de emoções, com um cansaço tremendo da longa viagem, mas uma vontade enorme de gravar todas as imagens que os meus olhos vêem.... As famosas crianças de Kabul que vivem na rua com temperaturas negativas e agora que o sol vai levantando ganham uma vida mágica.... Sinais de guerra por todo lado.... tanques enormes em cima das rotundas, foi a 1a coisa que eu vi quando saí do aeroporto, a presença de militares e armas é constante, e são muitos os edifícios que estão parcialmente destruídos por bombas, e outros com “desenhos” de rajadas de metralhadora nas fachadas.... Mas ao mesmo tempo, à medida que o coração vai abrandando é a sensação de uma cidade com uma vida “banal” que cresce em mim.....e com isso o medo vai-se dissipando, e vou mergulhando nesta cidade de uma forma mais tranquila...

Chego a casa dos MSF, após breves apresentações, caio inanimado de cansaço, e durmo para me preparar para o que aí vem.... a missão que abracei, numa das zonas mais perigosas do mundo, onde o conflicto está bem activo, no sul do Afeganistão....

Ainda falta um bocado, e só descanso quando estiver a fazer o que gosto e sei.... salvar vidas!

Mal posso esperar!


Afeganistão 4.0 - No meio da Guerra

Em Kabul, tenho muito pouco tempo para me preparar para ir para o meu destino final: província de Helmand, no sul do Afeganistão, cidade: Lashkar Gah, capital da pronvíncia mais sangrenta e problemática de toda a guerra do Afeganistão. No cerne da resistência Taliban, e rodeada da maior produção de ópio do pais e do planeta....região pobrérrima, com carências a nível de cuidados de saúde ao nível do pior que o nosso mundo conhece.

Em Kabul, tenho de tratar de papeladas e mais papeladas, e também tenho de fazer os briefings sobre tudo o que me espera no meu próximo local de trabalho. Do ponto de vista médico, não terei nenhum médico Anestesista antes de mim, o que implica que terei muito trabalho pela frente, para além de salvar vidas terei que organizar muita coisa em várias áreas do hospital. Adoro os briefings culturais, de segurança, e sobre o ponto da situação da guerra, em particular da zona para onde vou. Absorvo o mais que posso toda a informação, e fico encantado à medida que vou sabendo mais e mais sobre o que me espera.... apesar de nesta fase já ter lido muito sobre este país que durante uns meses vou chamar “casa”... Perceber a dimensão, e a complexidade de um conflito de um país que está em guerra há mais de 40 anos, leva-nos de imediato a concluir, que seguir a história na televisão é muito redutor e dá-nos uma ideia insignificante do que realmente se passa no terreno... A realidade é esmagadora, a dimensão do problema engole-nos.... e apesar de ter bem presente que sou apenas um médico, grande parte da minha motivação humanitária, passa pela espectacular compreensão destes mundos dentro do mundo, que contemporâneos às nossas calmas vidas, fazem o meu sangue ficar mais quente... e gosto de acreditar que daqui levo lições de vida, para a vida, impagáveis... Sinto-me um privilegiado,  no entanto apenas por me ter voluntariado, a arriscar a minha vida para cumprir a missão de fazer o que sei, onde é mais preciso...

Quanto mais absorvo o Afeganistão, mais quero ir.... já não posso esperar por começar a trabalhar.... mais ainda quando penso que a ausência de alguém como eu é traduzida em mortes evitáveis diariamente.... Quero muito conhecer a minha nova equipa, fazer a única coisa que sei e tanto gosto, ser médico!

O meu voo para Lashkar Gah é no dia a seguir, e ainda tenho tempo para beber umas cervejinhas e conhecer boa gente dos MSF antes de ir. Será o último copo dos próximos meses, pois onde estarei o conservadorismo islâmico e a consequente repressão cultural, levam a uma tolerância absolutamente ZERO ao álcool, e muito mais. É zona de guerra aberta..... não se brinca...


Depois de novamente me deliciar com mais uns pedacinhos de Kabul, ao cruzar a cidade e no descolar do avião, continua o meu encanto imensurável pelas montanhas e a beleza natural do Afeganistão. Agora num avião muito pequeno, que pertence à Cruz Vermelha, com quem os Médicos Sem Fronteiras, dividem os lugares para as entradas e saídas do staff para os inúmeros projectos por este pais fora.... viajamos a uma altitude bem menor, bem mais perto do cume das montanhas e delicio-me com a robustez dos contornos agressivos desta paisagem montanhosa, completamente coberta de neve.... É um voo directo para Lashkar Gah, o que me causa um desgosto enorme.... pois muitas vezes este avião faz a viagem passando por Kunduz, ou Herat, ou Mazar-e-Sharif (ou Kandahar que tive a sorte de ver no meu regresso a Kabul), cidades lindas, mágicas que eu dava tudo para ver nem que fosse por uns segundos, e que me dariam um enquadramento ainda maior, deste país que apesar de recém-chegado já me tinha conquistado o coração... Então o voo foi directo ao Sul, e das incríveis montanhas nevadas e geladas onde por vezes se viam pequenas aldeias perdidas, em alguns vales, passei a ver montanhas mais baixas, com menos neve, era o fim da “cauda” da cordilheira do Hindu Kush, para dar origem a uma zona completamente plana imensa do sul do Afeganistão.... à medida que o avião se aproximava da cidade, comecei a ver campos e campos de papoilas (para a produção de ópio) até perder de vista, com algumas casas típicas em tijolos de lama..... Por mim dava voltas e voltas no avião, mas quando me apercebo que a viagem está a chegar ao fim, sinto um friozinho na barriga... estou a chegar! A chegar a uma cidade rodeada pela resistência Taliban, com conflictos frequentes e ataques com bombistas suicidas extremamente frequentes. Kabul é uma cidade com alguns ataques, mas com uma presença internacional a diversos níveis imensa... Agora estou numa cidade e numa província que viu os confrontos mais sangrentos da história desta guerra, zona santa dos Taliban, no meio do quase deserto, onde a presença de um não-Afegão é uma raridade, pouco mais do que os 10-15 elementos dos Médicos Sem Fronteiras...

Saio do avião, e respiro fundo!

Agora estou literalmente no meio da guerra!

Mas feliz e motivado ;)

Afeganistão 5.0 - My First Bomb

A primeira mensagem que eu gostava de deixar é que uma guerra, não passa apenas porque deixamos de ouvir falar nela... simplesmente deixa de ser interessante para os media e seus consumidores, ouvir/ler/ver mais do mesmo...

A guerra do Afeganistão não pára de piorar, a cada ano há mais ataques, há mais vítimas, mais dor e sofrimento...

Em Kabul, os próprios Afegãos tremiam ao ouvir falar da província de Helmand, pois é sem dúvida um dos pontos mais “quentes” do Afeganistão... A cidade de Kandahar (bastião máximo dos Taliban), foi rapidamente controlada pelas forças aliadas, fazendo com que a resistência Taliban, se refugiasse na província de Helmand logo ao lado, e zona esta que tem cerca de 90% da produção de ópio do planeta.... Guerra, Droga, Pobreza extrema.... todos os condimentos para se tornar um local “fantástico” para se viver...

(produção de ópio no Afeganistão))
A cidade de Lashkar Gah, onde eu vivi, 2,5 meses é a capital da província de Helmand. A cidade está “controlada”, pelo exército Afegão, e pelas forças dos aliados, mas toda a cidade está rodeada por kilómetros e kilómetros de território controlado pelas forças de oposição Taliban, e que faz desta zona um terreno muito hostil, e sem dúvida das zonas mais perigosas do Afeganistão.... O dia-a-dia, não me deixa dúvidas de que estou numa zona de guerra. Entre a casa onde vivemos e o hospital, fazemos sempre caminhos diferentes para que a nossa trajectória não seja previsível, e assim alvos-fáceis... frequentemente passam caravanas de 4x4 do exército Afegão e/ou Britânicos (que era a força internacional da zona) a uma velocidade inacreditável, para que um ataque à bomba seja mais difícil de acontecer.... e somos sobrevoados frequentemente por máquinas de guerra de todo o tipo, aviões, helicópteros, drones.... tudo o que voa e deixa cair bombas passa por cima das nossas cabeças frequentemente.... é uma zona de guerra! Não há dúvidas....

(Lashkar Gah, e o rio que nunca vi)
Mas a vida contínua, para quem lá vive... a cidade é grande e com uma área muito dispersa de casas térreas, feitas na sua maioria de construção em terra, num terreno muito plano e com uma grande amplitude térmica, extremamente frio no inverno, e um calor infernal no verão (-20 aos +50º)... A vida da cidade é agitada, com muito comércio de rua, muitos pequenos Bazars,... e ao que consta a beira-rio da cidade é super bonita, com um parque simples, mas charmoso, mas onde eu nunca fui.... proibido, por regras de segurança dos MSF... Em nenhum momento, pus os meus pés na rua.... A minha vida era: casa-carro-hospital.... hospital-carro-casa....e assim foi sem excepções... sustentados no lema de que o nosso maior perigo é estar à hora errada no sítio errado, e como tal havia que jogar com as probabilidades, para nos mantermos longe dos perigos.... e é desses perigos que vos escrevo aqui...

O Afeganistão foi a minha 3a missão com os Médicos Sem Fronteiras, e a minha 3a guerra, depois de Congo e Paquistão. Todas têm contornos muito diferentes; na guerra do Congo, a guerrilha de metralhadora, no meio das montanhas da selva, muito volátil, onde as fronteiras do conflicto variavam a cada dia, na guerra que mais gente matou desde a 2a guerra mundial, vivi situações in extremis... No Paquistão, a pressão e tensão cultural/religiosa sufocava-me como nunca pensei ser possível, e a proximidade a grandes atentados, mexeu na profundidade dos meus medos... mas nunca tinha vivido/sentido/ouvido uma bomba a rebentar estrondosamente, como senti em Lashkar Gah, sul do Afeganistão.
 
Nos briefings que todos temos e várias vezes, sobre segurança, repetidamente foi falado, o número de atentados que ocorria por época, e eu sabia que ia acontecer... mais tarde ou mais cedo uma bomba ia rebentar... estas conversas causam-nos medo e calafrios, mas tento ser optimista e pragmático.... estatisticamente a probabilidade de me atingir a mim é muito baixa, e juntamente com a rotina do dia-a-dia, e a pressão imensa do meu trabalho que tanto me absorve, passamos a viver com essa “estatística”, com uma enorme tranquilidade... E por isso sentia-me preparado para o que aí viesse... mas claro que nunca estamos.... como outras coisas na vida.... há a primeira.... e depois todas as outras...

A minha primeira bomba marcou-me imenso até hoje (mais ou menos 4 anos depois escrevo, o que na altura senti), muitas vezes me lembro desse dia... e vou tentar vos explicar porquê!

Eram 10-11 da manhã, estava a beber chá no bloco operatório com 3 enfermeiros, quando ouvi um estrondo, intenso e seco.... gelei e olhei-os nos olhos.... e um deles, diz com apreensão mas naturalidade: “it´s a bomb!” , senti o corpo todo a tremer ao imaginar que a centenas de metros de mim acabava de testemunhar um ataque suicida à bomba.... tantas vezes tinha ouvido falar, mas senti-lo é bem diferente.... Primeiro gelei, sem saber bem o que havia de fazer, considerei até continuar a trabalhar... mas revi na minha cabeça as regras de segurança e achei melhor juntar-me à minha equipa no edifício dos escritórios do hospital... Os enfermeiros reagiram com uma frieza que me pareceu estranha, (mas depois de 40 anos de guerra, compreendo), mas também se começaram a preocupar à medida que tentavam contactar os seus familiares e as redes de telemóveis foram todas a baixo... Ao deslocar-me ao encontro dos meus colegas, vários pensamentos começam a assombrar a minha cabeça: “E se é a primeira de muitas bombas?” (muito frequente, a 2a ser ainda mais forte).... “E se isto é um ataque à cidade?”.... nisto ao caminhar no espaço em torno do hospital a céu aberto, avisto a não mais do que 300-400 metros de mim bem alto no céu e ainda a subir, o famoso cogumelo de fumo.... e é assustador ver a dimensão desta gigante massa de fumo.... cada vez fico mais assustado, e quando me junto à minha equipa no escritório a apreensão é brutal e colectiva! Quem foi? Onde foi? Quantos mortos? Quantos feridos? Alguém da nossa equipa? Algum familiar da nossa equipa? Todo o staff local que trabalha connosco está nervosíssimo ao saber do local da explosão e a tentar imaginar se a esta hora algum dos seus queridos por algum motivo poderia estar a passar ali.... são momentos de grande tensão.... e fico cada vez mais fragilizado pela emotividade e sofrimento que começo a ver nos olhos de cada um....

Há uma fase de medo, e logo se segue a fase de acção.... há que tratar dos feridos, afinal é para isso que nós viemos e é isso que sabemos fazer melhor.... temos um “Mass Casualty Plan”, e todos na teoria sabemos o que fazer, e aí vamos em direcção ao edifício do Serviço de Urgência, com um rádio na mão para algum alerta de segurança..... nunca se sabe, é tudo imprevisível.... Ainda tenho uns segundos para levantar a cabeça e ver que o cogumelo de fumo, mesmo passados alguns minutos, ainda cresceu bem mais e parece estanque e imóvel nos céus... e foi logo após que avistei o que mais me marcou.... os portões do hospital que se aproximavam da minha visão à medida que caminhava no sentido do Serviço de Urgência... Toda a cidade estava em alvoroço.... milhares de pessoas aglomeradas nos portões do hospital, os feridos trazidos em ambulâncias, ou em carros, ou em motos, ou em macas, ou em ombros.... e toda a cidade que queria saber se os seus estavam ou não mortos ou feridos.... até hoje parece que ouço os gritos de um povo em desespero de quem nada sabe sobre os seus entes queridos.... Os guardas do hospital, que mais não eram do que 3 ou 4 senhores (sem armas) com o colete dos MSF, com a tarefa herculeana de deixar entrar os feridos e quem os carregue sem deixar entrar a população em alvoroço, para que nós possamos trabalhar... imagens “à filme” com pessoas espezinhadas nos portões do hospital que eu via através dos ferros, aos gritos, pelos seus familiares feridos ou mortos.... enquanto os feridos entram a conta gotas pelo meio da população em fúria....

(foi algo assim que eu vi)
Já tinha estado em alguns cenários multi-vítimas e sinto-me bem preparado para tal.... mas é impossível conter a adrenalina que nos sobe pelo corpo e nos domina por completo as emoções quando entramos no serviço de urgência e o caos é a palavra que me salta à cabeça.... gritos de dor e desespero, cheiro a sangue e a queimado, médicos e enfermeiros nervosos a correr de um lado para o outro meios desnorteados.... há feridos em todos os cantos, e não há macas para todos, muitos ficam no chão.... a triagem é tudo o que mais interessa, mas que é um desafio enorme.... estabelecer prioridades, no meio de tantos gritos, detectar os que têm lesões ameaçadoras à vida, e todos os outros que podem esperar.... Há um primeiro segundo em que o medo e pânico me dominam, sinto um friozinho na barriga, mas não é tempo de deixar entrar as emoções.... é tempo de agir como uma máquina fria, treinada e formatada para salvar vidas, não só mas também em cenários como este....  e arregaço literalmente as mangas para pôr mãos à obra... Certifico-me de que a triagem está a ser bem feita nos doentes que mais me preocupam.... pois para os feridos graves todos os minutos contam....

Morreram logo no local mais de 30 pessoas, e houve cerca de 20 feridos graves (em que alguns vieram a morrer), mas que foram direccionados para o hospital militar dos Britânicos, e outros para a Emergency (ONG Italiana), ambos só tratam feridos de guerra, enquanto o hospital onde eu estava era o hospital generalista da cidade que tratava tudo a todos... e assim recebemos mais de 30 feridos em que nenhum corria risco de vida... queimaduras, e muitos, muitos estilhaços, e alguns membros partidos....

Quando o ponto da situação estava feito e parecia certo, não entrar mais nenhum ferido, começamos a “arrumar” a casa, e não sei bem porquê, virei-me para um miúdo que estava deitado numa maca.... Magro e aloirado de 10-11 anos, de olhos claros, molhados, mas sem chorar ou berrar.... estava cheio de estilhaços.... ajudei a tirar a roupa que ainda tinha, e em alguns locais vem a pele queimada que estava colada à roupa.... e com a ajuda dele que por gestos, me vai orientado, para as zonas que mais lhe doem, vou inspeccionando todas as áreas de estilhaços que tem pelo corpo todo.... adorava poder falar com ele, mas resta-me pousar a mão no seu ombro em sinal de amizade e sorrir, para quebrar o gelo....  Ele tem estilhaços no couro cabeludo, nas costas por todo o lado, e por isso está semi-sentado apoiado nos cotovelos, e alguns nos braços e nas pernas.... apanhou-o de costas....menos mal! Vou-lhe limpando as feridas e as queimaduras, retirando pedaços de pedra, ferro, madeira e sei lá mais o quê do seu corpo.... Mas não o consigo fazer, sem lhe causar alguma dor... no entanto, apesar de ser uma criança, sinto-o agradecido, enquanto lhe caiem lágrimas pelos olhos.... mas não chora alto, não grita, pouco se manifesta..... apenas lhe caiem as lágrimas.... Quando caio na tentação de parar para pensar... também fico com os olhos húmidos, mas retraio as emoções.... estou a li é para trabalhar...

Depois desta já vivi muitas mais bombas, mas nunca mais me vou esquecer da minha primeira bomba e da resiliência desta criança...

No dia a seguir, percorri todos os sites internacionais possíveis, a ver o que diziam, sobre este ataque suicida à bomba, que foi numa rua que era um dos caminhos que nós fazíamos e fizemos centenas de vezes entre a casa e o hospital... mas não encontrei notícia nenhuma em lado nenhum....

Para todo o mundo foi apenas mais uma bomba no Afeganistão.... para mim, foi viver bem de perto a dor de um povo no local onde eu naqueles meses chamei casa....

Afeganistão 6.1 - De Mãe para Mãe

Desistir ou Lutar com Mais Força – De Mãe para Mãe

Foram 10 minutos que mudaram a minha vida… Entre o amor e ódio, entre o desistir ou lutar com mais força… uma lição de vida…. uma inspiração sustentada em tristes e felizes circunstâncias do acaso... porque a vida é mesmo assim, cabe-nos a nós aprender a (melhor possível) lição...

Talvez a história mais forte da minha vida, mais que não seja porque dediquei e dedico à minha mãe...

Espero ter a arte de deixar o meu coração falar, uma linguagem que transpareça o que me vai na alma...

Foi há 4 anos, em 2012, que tive o privilégio de viver uns meses no Afeganistão... já a guerra tinha quase 11 anos, se começarmos a contar desde a invasão dos Aliados... mas para este povo Afegão, a vivência de guerra vem desde o início dos anos 70, altura em que o rei Sah foi deposto e forçado ao exílio, em 1973. Várias influências externas, tentaram controlar o futuro do Afeganistão, alimentando disputas sangrentas, deste incrível povo e país, cujo carácter sempre me impressionou, e nunca se deixou verdadeiramente dominar... Uma viragem à esquerda do poder em 1978, levou a um apoio que de dissimulado passou a controlo no terreno por parte da União Soviética. O controlo/ocupação soviética conveniente para quem os convidou, nunca foi aceite por grande parte do povo Afegão, que não se deixa vergar... e assim guerrearam até 1992.....vários grupos de Mujahideen (guerreiros da Jihad), contra os super poderosos da União Soviética.

A guerra contra a ocupação soviética é dos períodos da nossa história recente que mais influência tem na compreensão de grandes problemáticas actuais. Pois estes vários e diferentes grupos de Mujahideen, legitimamente (digo eu), queriam ver-se livres da ocupação externa de um povo imperialista e opressor, os Soviéticos... e para isso foram buscar forças a quem estava disposto a ajudá-los na sua causa... E assim em jeito de guerra fria planetária, receberam o “patrocínio”, dos USA, que injectavam dinheiro, por intermédio dos ISI (serviços secretos Paquistaneses), com o propósito apenas e só de tornar os Soviéticos mais fracos na luta pelo controlo do planeta.... Mas mais importante ainda foi o apoio de países Islâmicos Sunitas, essencialmente da península arábica, à causa afegã. Numa atitude conhecida como “ a dollar for a dollar”, a defesa por solo Islâmico, por parte destes países cobria “no mínimo” o apoio dos USA, a cada dollar, quase por uma questão de orgulho, na luta para que o solo Islâmico permanecesse Islâmico.... dinheiro este entregue a pessoas como Osama Bin Laden, e muitos outros, que faziam questão de o “aplicar” bem no terreno na guerra contra os soviéticos... e assim nasce aquilo a que nós hoje chamamos de Islão radical, ou politico, ou armado, etc... Al Qaeda!

O Afeganistão, país com um património cultural e histórico de uma riqueza inimaginável, um país lindo de morrer, feito de pessoas de um carácter impar, nunca se deixou dominar... e a história podia servir para aprendermos qualquer coisa... mas não aprendemos! No sec. XIX foi a zona tampão no “Great Game”, entre império Britânico e Soviético, em que nem um nem outro super-Impérios os conseguiu dominar, assim como não o conseguiram os super-poderosos Soviéticos no fim do séc. XX, e como também não conseguiram, nem conseguirão os USA e seus aliados controlar este povo que não se deixa vergar.... E com isto, são mais de 40 anos de guerra, o que é mais ou menos a esperança média de vida deste país. É triste pensarmos que na sua esmagadora maioria, o povo afegão não sabe o que é viver sem guerra... O que eu vivi, quase 3 meses e me destruiu o coração.... é a “vida” para esta nobre gente...
 
Como sempre, tenho mais perguntas que respostas, mas fico triste e sinto-me culpado e envergonhado, por ser ocidental e português, e nessas condições ter fomentado esta guerra pós-9/11, que só veio deixar mais morte e sofrimento, a um povo que já tinha a sua dose... A obsessão, ao jeito de “western americano” pela morte de Bin Laden, era e foi obviamente um enorme erro, que só veio exponenciar ódios, alimentar as fontes de discórdia, e tornar o extremismo e o terrorismo (das duas partes) mais vincado e violento...

Desde 2001:
-100.000 vitimas de guerra (30.000 civis)
-360.000 mortos por causas indirectas à guerra (fome, doenças, etc)

Quase meio milhão de pessoas morreram, desde que o mundo assistiu em concordância à invasão do Afeganistão.... porquê??....para quê??

Mas o que é que eu sei? Sou apenas um médico, que gosta de olhar para o mundo, tentando ser imparcial na valorização da vida humana...

O que me leva à minha história...

Dia após dia, a tentar fazer o melhor que posso e sei, ia para o hospital, na esperança de fazer o que um médico faz: salvar vidas, e/ou melhorar a qualidade de vida das pessoas... Nas minhas funções de anestesista e intensivista, tinha como funções, formar os enfermeiros do bloco que faziam anestesia, assim como gerir a unidade de cuidados intensivos, que ficava com os doentes médicos, cirúrgicos e obstétricos em estado critico... O que me levou a ter o desprazer de comprar inúmeras guerras com diversas áreas do hospital... A minha formação e experiência por esta altura, levava-me a estar bastante confortável e qualificado, na gestão de diferentes tipos de doentes, com diferentes tipos de doenças, e isso é sem dúvida o que me dá mais prazer... sentir-me útil a tratar doentes... no entanto, nem tudo funciona num cenário romântico que nós imaginamos...

Este hospital, no sul do Afeganistão, na província de Helmand, era o hospital principal da zona, num raio de centenas de Kms.... e funcionava numa parceria Médicos Sem Fronteiras – Ministério da Saúde Afegão... e este bonito casamento, tem tanto de necessário, como de complicado... e no meu caso o que mais me condicionava e asfixiava, na busca dos objectivos a que me propus (salvar vidas), era a relação complicada que por vezes tinha com os médicos afegãos deste hospital... A qualidade da medicina praticada por eles era péssima, sustentada numa medicina da idade da pedra, cheia de dogmas ridículos sem fundamento cientifico, e com uma arrogância e orgulho na sua sabedoria (ignorância) assustadores... que várias vezes me levavam à loucura e raiva, que eu tinha que digerir em silêncio, se tinha esperança de poder contribuir para melhorar alguma coisa, naquele hospital e no (pouco) saber daqueles médicos... Não os condeno pela ignorância, pois alguns estudaram medicina no tempo dos Taliban, onde não se podia ter imagens do corpo humano nos livros de medicina, e estavam perdidos no meio da pobreza e da guerra, com muito pouco acesso a informação e formação... mas a arrogância, sustentada num orgulho cego, era próprios das características de um povo que para o melhor para o pior, tem na sua honra e carácter, características muito difíceis de contornar...

O facto de ser um rapaz novo, não me dava muita credibilidade, e juntamente com a incompreensão do que é um médico anestesista e intensivista, algo que não existe naquelas bandas, levava a que principalmente os médicos mais velhos desprezassem por completo as minhas mais valias e conhecimento... e foi ai, que eu quase, quase encontrei o meu limite...


Todas as manhãs, antes de ir para o bloco operatório passava visita com os médicos, cirurgiões, internistas, e obstetras, no que diz respeito aos respectivos doentes que estavam nos Cuidados Intensivos... diga-se que eram cuidados intensivos muito, muito básicos, que apenas ofereciam cuidados de enfermagem num melhor ratio, e com monitorização dos sinais vitais mais cuidada. E foi numa dessas manhãs, em que assistia/participava na observação de um doente bastante grave... que eu explodi! Era um homem novo, que estava em coma de etiologia desconhecida... E aqui começa o caminho para o meu abismo...

Deixem-me apresentar o vilão desta história, o Professor de Medicina Interna.... um homem magro, de cabelo e barba longa completamente brancos, nos seus 60-70 anos, e que de professor nada tinha, e ao que se diz nem a especialidade de medicina interna teria, mas aqui, a idade é um posto, e do alto da sua arrogância ela podia dizer o que quisesse que ninguém o questionava.... nunca tinha visto um pensamento médico tão desconexo, sustentado em montagens de conhecimentos mal compreendidas, e perigosamente utilizados... Atirava diagnósticos pior do que ao acaso, e tratáva-os em (des)conformidade... Aquilo que nunca fazia era assumir que não sabe... de resto valia tudo! E se no mundo da medicina moderna, com tudo à disposição há tanta coisa que não sabemos, ou não compreendemos em primeira análise, imaginem no meio da guerra do Afeganistão.... Já sabia da sua arrogância e prepotência, mas nunca pensei que me afectasse de tal forma...

Este doente estava inconsciente, tinha cerca de 30 anos, e do pouco que eu sabia da história clínica, quer porque ninguém sabia explicar, e /ou “lost in translation” , juntamente com a clínica do doente, levava-me a várias hipóteses diagnósticas mas sem nenhuma certeza aproximada do que se estava a passar: Epilepsia, Hemorragia Cerebral, Meningo-Encefalite.... era o que pairava nos meus pensamentos... mas o Professor em poucos segundos de profunda reflexão fez um diagnóstico brilhante: Intoxicação por Organofosforados (que é um veneno, pesticida, herbicida).... e relativamente frequente por estas bandas... Mas este diagnóstico, não fazia qualquer sentido, porque o doente estava bastante taquicárdico (FC 140 bpm) e com as pupilas midriáticas (grandes) .... e os Organofosforados fazem exactamente o oposto...

Por isso quando o Professor “atira” o diagnóstico, com os médicos mais novos todos a acenar a cabeça, eu vejo-me obrigado a opinar.... e muito educadamente com o máximo de diplomacia possível, digo:
“Desculpe Professor, mas a Intoxicação por Organofosforados, provoca bradicardia e pupilas mióticas.”
E ele, que não está habituado a sequer ser questionado, responde-me curto e grosso, com um sorrisinho irónico e ar de ofendido: “Provoca TAQUICARDIA” .... e eu no auge da minha ingenuidade achei que a ciência poderia ser unificadora, e expliquei:
”Os Organofosforados inibem as acetilcolinesterases, e levam a acumulação de acetilcolina que provoca BRADICARDIA” .... mas a ciência não chegou, para iniciar qualquer diálogo... o respeitado Professor, desprezou-me, não respondeu, virou-me literalmente as costas, e disse qualquer coisa em Pashtun, que fez rir os seus discípulos da ignorância e prescreveu o tratamento (atropina)!) para um diagnóstico sem nexo, que poderia até matar o doente...

Fiquei revoltado! Senti-me humilhado por um homem mau, orgulhoso da sua ignorância... e senti-me completamente impotente! Impotente para tentar salvar a vida a este homem, mas que provavelmente também não poderia fazer nada por ele, mas acima de tudo frustrado, pela sensação de inutilidade e incapacidade de lutar pelos objectivos a que me propus: salvar vidas...

E por motivos que jamais pensei que fossem ser os grandes limitadores, de fazer com que este sofrido povo tivesse uma medicina com um pouco mais de qualidade... via que o meu esforço era completamente em vão... Que ignorância! Que arrogância! Que imbecil! Que assassino! Estupor! Tudo! Apetecia-me esganá-lo, pelo que me estava a fazer sentir.... e o que me veio à cabeça foi; se não sou útil, vou-me embora para Portugal. Se deixei a minha querida mãe com lágrimas no aeroporto, é para fazer a diferença.... não é para estar aqui a passar o tempo.... Num minuto, estava decidido, também eu fui derrotado pelo Afeganistão:

Quero-me ir embora!

Incrível quando olho para trás e no meio de uma guerra, com bombas a explodir, o que me fez querer desistir e vir embora, foi a frustração de não ser medicamente útil....

DESISTO, já imaginava a conversa que iria ter com o meu chefe... quando entra de rompante, o enfermeiro responsável do bloco, com cara de pânico e apreensão e me diz; “Rápido, a Dra. Anja, está a chamá-lo com urgência no serviço de Urgência!!”

Larguei tudo e fui a correr...

(continua)

Afeganistão 6.2 - De Mãe para Mãe

...continuando... Felizmente, toda a raiva, energia hiper-negativa, e o fumo que me saia por todos os poros do corpo, foram postos de parte, mal senti o tom de voz de urgência do enfermeiro que me veio chamar...
Houve um tom de voz que o chamou por rádio, que o levou a chamar-me com um tom de voz que transbordava preocupação... fosse o que fosse levou ao pânico de várias pessoas...
A Anja era uma médica alemã, especialista em Medicina Interna, que era a responsável pelo serviço de Urgência, excelente profissional, conhecedora, trabalhadora e competente, bem ao estilo alemão... E se me estava a chamar com aquele grau de urgência, o meu coração tinha motivos para estar a bater mais rápido.... Ainda era bem cedo, e estava um dia frio de morrer, com um sol radiante.... senti os pulmões a arder de frio, enquanto corria para o outro edifício onde se encontrava o Serviço de Urgência...
Entro de rompante na sala de reanimação do serviço de Urgência, e vejo pânico! Pânico na cara dos enfermeiros, pânico na cara da Anja, e uma criança deitada na maca, com a mãe coberta numa burqa azul aos gritos de desespero, aninhada de cócaras no canto da sala, com muitas, mas muitas referencias a Allah...
Era um menino de 2 ou 3 anos, e estava a morrer, estava azul e já mal respirava... não tenho dúvidas que a morte estava iminente... fosse o que fosse.
“Anja, o que se passa?” pergunto.
“Acho que tem um feijão a obstruir a traqueia!” responde-me nervosa.
A Anja estava com um laringoscopio (aparelho para ver a laringe e a traqueia) e com uma pinça de Magil (pinça com formato angulado para aceder à laringe e à traqueia)... e sem sucesso tentava retirar/puxar o feijão que obstruía por completo a traqueia e assim a passagem de ar para os pulmões...

Acho que tenho a sorte de ser muito calmo sob pressão, e transpareço uma calma de ferro, em situações de emergência médicas... Assumo o comando da situação... Incomoda-me, claro, a mãe de baixo de uma burqa, aos berros, e gritos por Allah, que com alguma dificuldade embalam o meu raciocínio... Nunca tinha vivido uma obstrução da via aérea numa criança... Agarro no Ambu (balão insuflável) e na máscara facial, e adapto-a com toda força à boca e nariz do rapazito.... forçando a ventilação... enquanto peço o material que preciso.... e numa voz firme peço 3 coisas: Ketamina (anestésico geral) Succinilcolina (relaxante muscular) e um tudo endotraqueal de tamanho adequado... O pânico e os gritos, levam a que os enfermeiros não percebam nada que eu pedi... e aqui talvez, a enorme sorte do enfermeiro do bloco estar comigo, que foi em segundos buscar o medicamento que só havia no bloco operatório, a succinilcolina... O menino, já não está azul, está preto... está a morrer nas minhas mãos... e eu ainda tento uma vez introduzir o tubo endotraqueal, só com a Ketamina, mas a rigidez muscular do rapazinho, não me permite fazê-lo... A frequência cardíaca passou de um valor assustadoramente rápido, para frequências cada vez mais lentas... é um sinal claro que a criança está a morrer... são segundos... talvez 2 ou 3 minutos que parecem horas... e eu já não posso ouvir a mãe aos gritos por Allah...

Chega a Succinilcolina, digo aos enfermeiros como a diluir e rapidamente a administram na dose indicada... A minha estratégia é simples.... nunca fiz, mas sei que é o que se deve fazer.... não tentar tirar o feijão, mas empurrá-lo para dentro.... A traqueia divide-se em dois brônquios principais, e se eu conseguir empurrar o feijão para um dos brônquios, ai já consigo oxigenar um dos pulmões o que chega perfeitamente para lhe salvar a vida...
Ninguém percebe o que se está a passar na minha cabeça, mas confiam e seguem as minhas ordens... Mal o rapaz ficou com os músculos completamente relaxados consigo introduzir o tudo endotraqueal e empurrar o dito feijão para um dos brônquios, e começo a ventilar eficazmente a criança... É daqueles momentos na medicina que parece um milagre... em poucos segundos o menino fica rosadinho, na sua coloração normal, e a frequência cardíaca aos poucos sobe para valores aceitáveis...

A Anja, que está com o véu islâmico que as regras culturais obrigam, a cobrir-lhe o cabelo, com os olhos ensopados em lágrimas, põe-me a mão no ombro e diz-me: “You saved the baby!”....e os enfermeiros logo após a limparem o pânico das suas caras....”Dr. Gustavo....you saved the baby!”.... e eu sorrio...sinto o corpo todo a tremer, passa por mim uma corrente eléctrica que quase que domina os meus movimentos.... mas tento refriar.... solto um sorriso, mas ainda não deixo saírem as emoções.... meto-as para dentro, pois ainda tenho que pensar como médico... o meu trabalho ainda não acabou....
Assisto a respiração da criança com o Ambu, enquanto o efeito da Ketamina e da Succinilcolina, não passam por completo.... e quando a criança começa a recuperar a sua autonomia ventilatória, começo a respirar fundo de alivio, até que mais uns minutos e retiro o tudo endotraqueal da traqueia do rapazinho.... e depois de uma ou duas tossidelas, ouço-o a chorar vigorosamente.... e ai senti que me tinha saído o Euromilhões!!.... uma felicidade e uma alegria, que só me apetecia que o mundo congelasse mesmo ali.... sorrimos em conjunto, e não contenho as lágrimas de alegria de nervosismo (tardias), e mais sei lá o quê.... Claro que peço aos enfermeiros para explicarem em Pashtun à mãe que a criança está viva.... está a chorar e está bem... Mas esta mãe, não sei se paralisada ainda pelo pânico, parecia, não entender que a criança estava fora de perigo.... continuava aos gritos por Allah... só passados uns minutos de insistência por parte dos enfermeiros é que ela se levanta da sua posição de cócaras e ainda a medo levanta a sua burqa azul, para ver que o seu querido filhinho está mesmo bem... Não consigo sequer imaginar a dor e sofrimento que esta rapariga, que perdida no meio da guerra, traz o seu filho a correr ao hospital, depois de se ter engasgado num feijão... e depois vê-se com 2 médicos estrangeiros, a falar uma língua esquisita, num aparato de pânico generalizado.... e que agora a morte que parecia certa, já era passado! Ver a cara desta mãe a pegar no seu filho ao colo, foi ganhar o 2º Euromilhões!
Foram momentos mágicos... a criança ainda esteve 3-4 dias no hospital, para vigilância, mas felizmente tudo correu super bem, e recuperou como se nada tivesse acontecido...

Um dia feliz, na vida de um médico... Penso que a minha missão principal, consiste na formação dos locais, nas sementes de esperança que os MSF, deixam nos povos mais esquecidos e injustiçados do planeta e com isto representando todas as vozes e opiniões de paz... Mas nestas vidas salvas, egoistamente recolho “medalhas” de honra que me enchem de orgulho e me fazem muito querer continuar...
Que importância tem uma vida salva, quando já morreram meio milhão? Estatisticamente nada! Mas para aquela mãe, TUDO! E para mim, ajudou-me a encontrar uma parte da minha personalidade que muito aprecio e tento alimentar... a resposta às adversidades... Num momento, estava decidido que ia desistir... poucos minutos depois, só pensava em lutar com mais força!
Desistir ou Lutar com mais força??? Há um mundo à nossa volta!
Foi esta a história que escrevi por email, há 4 anos a trás e ofereci/dediquei como presente de anos à minha querida mãe, por saber as maldades que lhe faço ao deixar-me levar por estes sonhos... É muito duro, e injusto, o que eu lhe faço... Deixar-me ir para dentro deste bicho-papão que se chama Afeganistão, que (erradamente) representa apenas bombas, morte e sofrimento... Mas não consigo deixar de querer ir.... porque aqui encontro o melhor de mim... a pessoa de quem mais gosto... E por isso dediquei e dedico tudo o que já fiz de bem, simbolizado na vida deste menino.... como atenuantes às maldades que um filho faz a uma mãe...

De mãe, para mãe! Esta mãe afegã não sabe, que para o seu filho estar vivo, a minha mãe teve que ficar com o coração destroçado, com medo de ligar a televisão no notíciario, e nervosa quando o telefone toca...
Mas eu acho Mãe, que esta mãe afegã lhe gostava de dizer, exactamente a mesma coisa que lhe quero dizer a si: OBRIGADO!
Gosto de pensar como se houvesse uma taxa de felicidade mundial... deixo algumas pessoas tristes, mas por um bem maior...
Tenho muito a perder, mas que de nada me vale se perder a Humanidade!
Porque as homenagens são para ser feitas, todos os dias que temos oportunidade:

PARABÉNS à mãe mais bonita do MUNDO.... e eu por si, vou tentar Lutar com Mais Força!