Iraque 2.0 - Passagem de Testemunho - "Agora és Tu!"

Este processo da escrita, é tudo menos um mar de rosas... Parece que cada vez mais me custa mergulhar nas minhas memórias, e não o sei fazer sem ficar profundamente emotivo. Porque aquilo que carrego no peito, às vezes parece demasiado pesado para ser digerido... Quando tento perceber porque é que quero continuar a escrever, acho que o que me domina é o compromisso. É a promessa que fiz a mim mesmo, a promessa que fiz ao melhor de mim, a promessa que me fiz em frente dos que me fazem querer escrever.... “tu vais contar o que viste! É o mínimo que podes fazer por esta gente! Esforça-te para contares o que viste!”.... e aqui estou eu, a tentar cumprir essa promessa.

A despedida é sempre muito intensa, é uma tempestade de emoções vividas no silêncio que ninguém poderia imaginar que se está a passar dentro de mim... A cada missão, a passagem da segurança do aeroporto é para mim a fronteira entra o meu amor e a minha paixão pelo que fica de mim para trás, e o fogo que alimento para ir fazer algo bonito mundo a dentro... É um mergulho para a profunda solidão, para o foco na missão, e para uma mente que de alguma forma se torna mais simples com a liberdade e a paz de espirito que isso me traz... Agora só tenho uma coisa na minha cabeça: A minha missão. Iraque, Mosul, e a sua população que precisa da muita ajuda. Confesso que é das coisas que mais gosto sentir em missão... é a simplicidade. Aos poucos vou desligando todo um ruído à volta da minha cabeça, e o meu cérebro passa a ver as coisas de uma forma mais clara, mais nítida... mais simples. E isso é para mim altamente pacificador, ainda que a caminho de um cenário de guerra...

Acho que é, por um lado a resposta ao stress que nos leva o foco apenas e só para o acontecimento mais intenso, e por outro lado a sensação que tudo o que realmente interessa está a acontecer ali e agora...

Eu estava de alguma forma dominado e afectado pela responsabilidade acrescida que o livro “1001 Cartas para Mosul” criava em mim... Sabia que ia ter conversas difíceis na sede dos MSF sobre o livro (noutro texto contarei a história) e tinha muita vontade em não falhar a minha promessa, de que aquelas palavras iriam ser entregues ao povo iraquiano com a maior força que eu conseguisse... Acho que nunca senti um peso de responsabilidade tão grande... Porque centenas de pessoas escreveram, traduziram, estiveram presentes nas apresentações, leram o livro e muito mais... e do outro lado milhões de pessoas que sofriam os horrores da pior guerra que há memória... E eu, apenas eu, muito só no meio destes 2 mundos... e como tal, saiu-me um peso de toneladas das costas, quando deixei o assunto do livro de lado, e me pude concentrar na missão propriamente dita...

Voei para Erbil, que é a capital do parte curda do Iraque. O Curdistão iraquiano tem uma autonomia relativa e uma identidade muito própria. A primeira sensação é o calor. É tão intenso que empurra para fora dos meus pensamentos tudo o resto. Estão 40 e muitos graus, no fim de Maio e já me parece que esta zona do planeta é inabitável... O calor é tão intenso que eu só penso... “eu não vou aguentar” ... é o instincto de sobrevivência que se sobre põe a todos os outros... é um calor literalmente de morrer e com tendência a piorar e em pleno ramadão... Assusta.

Entre conversas sempre muito interessantes com os responsáveis dos MSF, sobre a geopolítica do conflito, sobre as explicações do inexplicável e sobre as necessidades médicas da população consequentes desta batalha terrível, e a estratégia macro dos MSF interferindo em tantas fragilidades deste povo que chora lágrimas de sangue... aos poucos vou-me sentindo dentro de Mosul e cheio de vontade de fazer o meu papel, dar o meu humilde contributo para esta gente e as suas dores... Nessa noite em Erbil, que é uma cidade bem desenvolvida, civilizada, ainda que muito perto da guerra está bem estável na sua paz... fui jantar com uma equipa de médicos que acabavam de regressar de Mosul... Um anestesista italiano, e um cirurgião belga que eu até já conhecia do Congo, que era uma referência nos MSF, como um dos cirurgiões mais competentes e experientes neste mundo médico tão particular... Enquanto bebíamos uma cerveja e comíamos um kebab qualquer num sítio bem simples, eu fazia o meu trabalho de casa ao tentar absorver tudo o que podia destes dois senhores no verdadeiro sentido da palavra, já na casa dos 60s/70s, onde os seus cabelos brancos já contavam com muitas e muitas missões mundo a fora... Estavam cansados, e acima de tudo aliviados... Cansados porque não foram poucas as noites sem dormir a salvar vidas, cansados porque doí na alma ver dia após dia, noite após noite a desumanidade nas suas mãos, cansados porque muitos morreram à sua frente e muitos mais que estão no seu imaginário de quem sentiu os ecos da guerra, dentro das tendas do hospital... E aliviados porque chegou ao fim o seu papel, com um sabor agridoce, mas de missão cumprida. Eu senti que enquanto desabafavam sobre os terrores da guerra, e os casos clínicos mais complicados, de quando em vez me olhavam e pensavam sem o dizer “agora és tu!”... Já tinha sentido o que eles estavam a sentir noutras missões, uma passagem de testemunho na exaustão física e psicológica, em que por vezes até me emocionava com lágrimas nos olhos ao receber a pessoa que me vinha substituir, por sentir os sintomas de “burnout” a me subirem dos pés à cabeça, na impotência de os evitar, enquanto houver gente a salvar... Eu já sabia que ia ser duro, mas o que eles me estavam a dizer sem o dizerem, é que ia ser mais duro do que alguma vez imaginei...

Arrepia e assusta, mas invade o meu corpo de uma motivação, e de uma profunda humildade, em que deixa mesmo no ponto certo o equilíbrio das forças da minha razão de existir...

Dormi sobre estes pensamentos e dormi pela última vez em paz, antes de fazer as 3 horas de viagem que me levariam à minha próxima casa, e à minha próxima família, em Mosul.