Iraque 4.0 - Do Humano para o Desumano




Saltitamos entre o humano e o desumano. Entre o corpo e a pessoa. Entre o ser vivo e a alma. Precisamos de ser desumanos para fazer esta profissão sem tremer, precisamos de olhar para o corpo como uma máquina, um desafio, com uma frieza robótica... Se deixamos entrar as emoções e vemos o humano, e vemos a pessoa, vai ser difícil executar tarefas num banho de lágrimas... Porque é isso, que sinto quando deixo entrar as emoções, um choro compulsivo que se auto-alimenta, que ganha vida própria. E eu não posso deixar entrar...

E nesta missão em Mosul, no Iraque foi essa pressão que já senti muitas vezes, mas nunca tantas vezes e nunca com esta intensidade. Preciso de ser um robot para ser médico nestas situações extremas com a vida e a morte entre os dedos como gelatina, mas são as emoções que me fazem querer lá estar, é o coração que me diz que este é o lugar do mundo onde quero estar. Porque fingir que não existe, é uma cobardia, é uma hipocrisia, é uma maldade. E ninguém quer ser má pessoa.
Receber levas de feridos era o normal. É um normal que ultrapassa, todos os níveis de anormalidade, é uma aberração, é feroz a qualquer alma, mas para nós é o normal. Por vezes sabíamos de antemão, outras vezes nem por isso, e sinceramente para este tipo de missão/hospital era quase indiferente. Era normal. Feridos graves a entrar pelas nossas portas do serviço de urgência. As bombas traduzem-se em mortos e em feridos. Assim é a guerra. Os que me morrem no local fazem parte de outras histórias que eu mal conheço, os que estão entre a vida e a morte são a minha história. São as vozes que movem a minha escrita.

O nosso hospital, é o mais próximo que eu já estive de um milagre. A uns escassos kms da pior batalha que há memória, no meio de um descampado, murado a toda a volta, porque a segurança é volátil, encontrava-se um conjunto de tendas que vistas de fora eram incaracterísticas, despidas de qualquer interesse, mas por dentro fazia-se magia. Barricadas de betão à porta para inibir os bombistas suicidas em veículos, entrava-se por uma pequena porta que nos dirigia logo para o Serviço de Urgência, com uma tenda logo à direita de descontaminação para o caso de se usarem armas químicas. Cada tenda tem o seu papel, neste jogo de salvar vidas. Laboratório, Raio-X, Serviço de Urgência, Bloco Operatório, Cuidados Intensivos, e diversas tendas de enfermarias gerais. Também tínhamos uma área do hospital que nasceu nos entretantos por necessidade, que era um centro de nutrição para crianças. A fome em Mosul conseguiu matar ainda mais que as bombas. E as crianças pequeninas eram as mais vulneráveis. Tínhamos dezenas de crianças desnutridas todos os dias, mas estavam longe do meu espectro de acção. Assim como os centros de saúde a quem dávamos apoio para diferentes cuidados de medicina geral. Mas assim estávamos, entre tendas que se ergueram num ápice para fazer de hospital, durante esta página de sangue da nossa história.

Eu estava quase sempre no bloco operatório, mas com frequência corria entre a tenda do serviço de urgência e a tenda dos cuidados intensivos, dependo dos ciclos do dia e das vagas de feridos que recebíamos.

Neste dia fomos avisados que íamos receber vários feridos, inclusive discriminaram os níveis de gravidade... Nunca funciona na perfeição esta avaliação prévia, mas ficávamos com uma ideia. É incrível que enquanto esperamos pelos feridos, o ambiente é muito tranquilo, relaxado e até divertido. A equipa de expatriados é muito experiente, e os locais estavam há meses nisto. E como em tudo, o instinto de sobrevivência, obriga-nos a reagir com normalidade à mais atroz das anormalidades. Tranquilamente bebe-se café, fuma-se cigarros e conta-se piadas... sabendo que estamos a minutos de receber corpos ensanguentados. É normal. E o humor é das armas mais poderosas para reagirmos às adversidades extremas. É uma boia de salvamento no nosso mar de pensamentos tristes. Amor em tempos de guerra, já deu livros e grandes histórias... faz falta o mesmo sobre o Humor em tempos de guerra... Talvez um dia escreva esse livro se sentir que tenho arte para tal, porque não é fácil transcrever o humor...

Começamos a ouvir as sirenes. Está tudo a postos já de luvas calçadas. Os maqueiros correm como se fossem as olimpíadas, os responsáveis pela segurança observam o potencial de ocorrência de fenómenos estranhos e os feridos começam a ser colocados nas macas do serviço de urgência. A equipa está bem oleada, mas os corações aceleram. Eu nesta fase pareço um observador. Não toco em nenhum doente. Apenas observo. O prejuízo de me “agarrar” a um doente é não perceber o panorama geral de todos os feridos. Para mim é obrigatório tirar uma fotografia mental de toda a situação. Há um que entra cadáver. É este o momento em que eu deixo de ver pessoas e vejo corpos. Vejo seres vivos. Vejo tudo com uma frieza doentia. Neste momento estou desumano. Cruzo o meu olhar com os olhares hesitantes dos que estão à volta do cadáver, num burburinho desconfortável, em que eu percebo pelos seus gestos que se preparam para começar a reanimar. Eu aceno-lhes com a cabeça em sinal de discórdia e tranquiliza-me que tenham ficado confortáveis com a minha decisão. Para mim naquele momento é apenas um problema a menos para eu gerir. Tínhamos duas equipas cirúrgicas de expatriados, com dois cirurgiões e dois anestesistas. E a a responsabilidade das decisões de fundo alternava a cada 24hrs, porque era essa também a noite que íamos ficar no hospital mal dormidos. Uma em cada duas. É duro. E hoje sou eu.

Recebemos 7 ou 8 feridos, mas só há uma que me preocupa no imediato. Eu fico com esse. É um rapaz de 16 ou 17 anos. Tem o corpo cheio de estilhaços. É impressionante quando lhe começamos a tirar a roupa toda ensanguentada e vemos estilhaços dos pés às cabeça... pequenas feridas muitas delas punctiformes que lhe tatuam o corpo todo, cara inclusive. Este tipo de lesões são muito traiçoeiras para um médico, porque os espectro de possibilidades é tão grande como a nossa imaginação... Alguns destes estilhaços ficaram apenas na pele e não causam qualquer perigo, outros penetraram o torax ou o abdómen, causando lesões absolutamente imprevisíveis. Os sinais vitais (frequência cardíaca, respiratória, tensão arterial, etc) apontam para perdas sanguíneas muito significativas. Isto é como um jogo, como uma charada. Descobrir de onde está a sangrar. Dos diferentes locais por onde sangra, perceber qual o pior, e aferir se os locais por onde sangra se são passíveis de ser estanques ou nem por isso. O “nem por isso” é a morte.

Existe uma avaliação muito sistemática para todas as vitimas de trauma e a experiência ajuda-nos a fazer isto muito rápido e com chavetas de organização mental muito bem estruturadas. Que neste caso são adaptadas às condições que temos. Por exemplo, um traumatismo craniano grave, não tendo TAC, nem neurocirurgia, nem capacidade de ventilar um doente no pós-operatório... é um doente que nas condições que temos, vai morrer. No meu mundo, tentaria salvá-lo.

Não é o caso. Este doente está é a sangrar, eu e a restante equipa temos é de descobrir de onde e o como parar a sangria. Rapidamente pego no ecógrafo que é a minha arma favorita, e vejo que está a sangrar na cavidade torácica e na cavidade abdominal. Siga. É correr para o bloco. Nestes casos o Rx, também ajuda o cirurgião a ver, onde estão os estilhaços dentro das cavidades, e imaginar durante a cirurgia o trajecto por onde foram penetrando o corpo deste rapaz. A equipa está toda bem oleada. Sai um alerta ao laboratório para a necessidade de múltiplas transfusões de sangue, que me chegam às mãos em minutos, assim como a equipa do bloco operatório que se prepara rapidamente porque tem visto estas situações vezes sem conta... por dia! Os iraquianos com quem trabalhei são absolutamente incríveis. Rápidos, competentes, expeditos e proactivos, e de sorriso na cara. Apesar de, muitos profissionais de saúde terem sido raptados pelo Estado Islâmico para seu proveito, ou fugiram da guerra para bem longe... os que ficaram são incríveis e trabalham com uma motivação tão intensa que por vezes me trazia as lágrimas aos olhos de emoção... Quando por vezes lhes agradecia pela ajuda, ou pelo fantástico trabalho, ou por terem ficado horas a mais, as respostas eram sempre do género: “nós é que agradecemos... estamos apenas a tentar salvar o nosso país!” ... e é nestes momentos que tenho a certeza que o que nós estamos a fazer é muito maior que a minha vida, é muito maior do que a minha alma sonhadora possa imaginar...

Entramos rapidamente com o rapaz na tenda do bloco operatório. A equipa comunica, organiza-se, articula-se e sem demoras eu estou a anestesiar o doente, a ligá-lo ao ventilador, e coloco-lhe um dreno torácico de cada lado, enquanto a equipa cirúrgica se prepara para de bisturi na mão lhe abrir a barriga. As hemorragias da cavidade torácica, a que chamamos hemotórax, em súmula tratam-se colocando um dreno entre as duas pleuras que tem como objectivo expandir os pulmões e promover o fim da hemorragia. Se sangrar pelo dreno em abundância, começamos a entrar no “nem por isso”, porque abrir o torax envolve um leque de recursos que não temos.
O abdómen é de leitura mais complexa e as possibilidades são diversas. O cirurgião abre a cavidade abdominal a meio com uma incisão grande desde as costelas até à bacia. E a partir daí tenta perceber de onde vem o sangue.

E é aqui que estamos. O cirurgião abre-lhe a barriga sai sangue em grande quantidade, e o rapaz quase que morre. A tensão arterial está a descer vertiginosamente até que o cirurgião encontra a fonte da hemorragia, que é o baço. Mãos muito treinadas, rapidamente clampa o feixe vascular que irriga o baço, e os sinais vitais começam a melhorar. As transfusões a entrar, o cirurgião inspeciona com mais calma toda a cavidade abdominal para ver se há algo mais a corrigir, e eu “entretido” em trazer o equilíbrio fisiológico que este rapaz precisa, para que todos os seus orgãos, de um corpo que esteve às portas da morte, recuperem rapidamente... Começamos a trocar os primeiros sorrisos de vitória ainda tímidos... Os drenos torácicos fizeram o seu papel e tudo tranquilo nesse capítulo. O cirurgião já sacou o baço cá para fora e está contente com a sua revisão de todos os locais de hemorragia em potencial, a hemoglobina está estável, os sinais vitais em vias de normalizarem... e a equipa começa a respirar com outra tranquilidade... Resolvemos a charada. Ganhamos o jogo.
Como estava com a situação controlada, enquanto o cirurgião terminava a cirurgia, eu resolvi sair do bloco operatório para ver como estavam os doentes nos Cuidados Intensivos, que era na tenda ao lado. Eram 10 metros num passadiço de cimento.

Quando saio da tenda do bloco que tem ar condicionado, apercebo-me que a manhã avançou e levo com uma onda de calor, como se tivesse a abrir a porta do forno. São umas 10.30/11.00 da manhã e já estão quase 50 graus. Parece que sou agredido por este bafo de calor, e para minha surpresa sou imediatamente encarado por um homem, cuja a cara eu reconheço por o ter visto com ares de preocupação extrema no serviço de urgência... é o pai do rapaz. Com o shalwar kameez tradicional em tons de castanho, de lágrimas nos olhos e as mãos juntas embrulhadas num fio de contas que os muçulmanos por vezes usam para as suas orações (mishaba), este homem dirige-se a mim em Árabe, e embora eu não tenha percebido nada do que ele me disse, percebo que me pergunta pelo seu filho. Este é o momento em que o corpo daquele rapaz passa a ser uma pessoa. É o click do desumano para o humano. Mas este foi muito forte, inesperado e apanhou-me totalmente de surpresa... Num microsegundo olho à minha volta para ver se alguém me pode ajudar na tradução, mas nada. Estou sozinho, de frente para o pai que me olha apreensivo, e o que me ocorre é usar das poucas palavras que sei dizer em Árabe, e juntamente com o polegar para cima digo-lhe “Tamam”, que significa “Tudo bem”, apontando para o a tenda do bloco... O homem profere várias expressões que envolvem Allah, e ajoelha-se aos meus pés abraçando-me as pernas a chorar... Claro que prontamente eu ajudo-o a levantar, movimento este que imprevisivelmente termina num abraço... Eu tento segurar, mas não consigo e caiem-me as lágrimas ao mesmo tempo em que as lágrimas do pai do rapaz já se transformam em sorrisos...

Nunca tinha sentido tanta intensidade nesta passagem do ser vivo para a sua alma, do corpo para a pessoa, do desumano para o humano... Foi dos momentos mais bonitos da minha vida...

Precisamos de ser muito frios para que a ciência nos domine nos momentos de maior adrenalina no meio de uma guerra terrível, mas é quando deixamos entrar as emoções que percebemos porque é que ali estamos, e porque é que não imagino a minha vida sem estar ali. E entenda-se que o “ali”, é apenas do lado dos que fazem a coisa certa, que pode ser feita em qualquer parte do mundo, a qualquer momento...

Quando penso neste abraço e na alegria deste pai, por o seu filho não ter sido mais para a estatística numa guerra que matou milhares de rapazes como este, e deixou milhares de pais e mães de joelhos a chorar sem se levantarem para um abraço... cresce em mim um sentimento que é simplesmente mágico.... Uma mistura do poder das pequenas coisas, com a felicidade que nos invade por ajudar quem precisa, e ainda a energia que nos move quando sabemos que lutamos pelo que está certo.


Do humano para o desumano... mas sempre com volta para o humano. Sempre!