A grande diferença entre ver uma guerra na televisão ou ao
vivo e a cores, é que quando estamos lá sentimo-nos parte dela... e sentimo-nos
parte deles, da população Síria que sofre, que grita, que sangra, que chora,
que não compreende porque lhes aconteceu tamanha desgraça. Estamos lá porque
sentimos compaixão pelo seu sofrimento, e quando corremos os mesmos riscos
tornamo-nos parte. Nada substitui a nossa vivência pessoal, e esta tem muito
que se lhe diga.
Durante a missão temos limitações tremendas. Não podemos
beber um copo, não podemos sair de casa, nem temos grande diversão, não temos
grande escape. Vivemos intensamente o nosso trabalho, e as tristes vivências de
um país em guerra.
E há um momento em que o fim da minha missão se aproxima.
Virá outro fazer o meu trabalho. A alegria de voltar a casa mistura-se com a
tristeza de deixar para trás todo um país que precisa tanto de nós e da nossa
atenção... Custa-me sempre deixar uma missão. O final é sempre um tempo de
reflexão, de análises, de ponderação sobre tudo o que aconteceu, tudo o que foi
vivido e os pedaços do nosso coração que ficam para trás.
As pessoas que nos morreram nas mãos, os que salvamos, as
bombas a cair quase todos os dias com o chão a estremecer, ser sobrevoado por
helicópteros e aviões e o terror que isso nos causa... Ver toda uma população
que ficou sem escolas, sem hospitais, sem vacinas, sem água e luz... esquecidos
pela humanidade. As histórias de vidas e famílias destroçadas pela guerra, a
dor que é sentir o seu país a sangrar a cada dia. Um ditador maquiavélico,
grupos extremistas que sufocam a vida das pessoas, o Estado Islâmico, a jihad
onde até muitos europeus vieram acrescentar maldade... A guerra e a sua
geoestratégica, de Russos e Americanos, Iranianos e Sauditas, Xiitas e
Sunitas... E todas as pessoas que cruzaram o meu caminho. Tudo isso se
desenrola nos meus pensamentos no momento de preparar o adeus.
Odeio o adeus. Gostamos de acreditar que algum dia vamos
voltar a ver pessoas que foram tão importantes para nós, mas no fundo sabemos
que não é verdade. Criamos laços e depois cortamo-los e viramos as costas. Mas
a sensação de missão cumprida é maravilhosa. Podia sempre ter feito melhor, mas
sei que me esforcei, que fui honesto e trabalhador, e que fiz parte de uma equipa
que salvou muita gente, mas que acima de tudo deixa um “statement” ao mundo e
aos Sírios: Nós preocupamo-nos, nós acreditamos que somos todos humanos, nós
vamos de encontro ao que parece ser a solução para os grandes problemas dos
nossos dias... A aproximação entre as pessoas. Enviar amor em vez de bombas.

Ponho a mochila às costas e dou um abraço sorridente ao
condutor que eu adorava... Não os queria deixar, mas tinha vontade de voltar a
casa e viver em paz... Abraço o F com força e troco umas palavras de
cortesia... Depois de dar os primeiros passos no sentido da fronteira do fim da
guerra, ouço o F a chamar-me: “Gustavo, don´t Forget about us!” e eu virei-me
para eles e vejo os seus sorrisos de desespero e respondo a bater no peito com
a mão direita: “ Never my friend, NEVER!” E rapidamente virei as costas para
que não vissem que me desfazia em lágrimas...
É como sair de uma prisão e ouvir a porta a bater por detrás
de nós... É fácil entrar quando sabemos que podemos sair... Mas para quem está
lá dentro e não tem escape a vida é muito dolorosa...
Na fila para sair do inferno as pessoas estão de cara
fechada, a sua expressão carrega a dor de anos de guerra e perdas
inenarráveis... Tanto perdem que optam por perder o que mais amam, a sua terra,
a sua gente, o seu país... Sou o único não-Sírio que testemunha aquele momento
trágico de abandono, rodeado de gente que carrega consigo uma história de
desespero escrita a sangue...

Carimbo o passaporte ao entrar na Turquia e viram-se os
mundos, mas até hoje há um pedaço de mim que ficou naquele país e ecoam-me as
palavras que disse ao meu amigo e tradutor F...
“Nunca vos esquecerei!”
Todos estes textos mereciam ficar em "registo escrito: um livro". São histórias de vida, entre a guerra e a paz(pelo menos a paz interior), memórias de um povo que sofre anónimo(porque não se fala dele, sobretudo os sofrimentos da gente do Congo porque da Siria ainda se vai falando remotamente). Estes textos não são apenas "histórias de uma alma sensível" mas retratam bocados da História Mundial que "passa ao lado" dos mídia. E quando nos apresentam a verdade nunca a saberemos se não contada por quem esteve lá, no meio dos gemidos de gente valente, que se fez um deles por uma vida e de quem eles, os desprotegidos e massacrados, nunca se esquecerão. Fazer parte da História de um povo sofredor não é para qualquer um. Aqui nas redes sociais, apaga-se tudo com um clique. A memória só se faz em registo escrito para os leitores de todo o Mundo. Acho que valia a pena! Além de retratar muito bem os factos, fá-lo com o coração. Será sempre um Livro onde o protagonista é ao mesmo tempo actor e personagem que vê por fora e por dentro da guerra. É tão emotiva a forma como fala dos seus doentes, daqueles que ajudou a salvar e dos recursos "à mão", das técnicas de intervenção ora eruditas ora rudimentares, e tão amorosa a forma como os descreve, que nos faz amá-los mesmo de longe. É um veiculo de esperança e como diz:"O Mundo precisa de saber". Força, Dr. Gustavo! Bem-haja!
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