O Elefante na Sala -- 24/11/2018

O Elefanta na Sala do Iémen: Quem é que não deixa a ajuda humanitária chegar? Qualquer morte evitável é uma catástrofe, mas segundo o relatório da Save da Children já morreram perto de 100.000 crianças à fome e estão 5.000.000 de crianças em risco de morrer à fome. À FOME! De quem é a responsabilidade?

O Elefante na Sala da visita do presidente de Angola: Muito interessante a re-aproximação com Portugal e a promessa da luta contra a corrupção. Mas não seria mais importante explicar como é que um país tão rico, tem dos piores índices de saúde, inclusive de mortalidade infantil do mundo?!

O Elefante na Sala das Touradas: A ciência e o referendo! Chega de andar a brincar às cartas abertas. Alguém que explique a todos os touro-maniacos que a ciência explica os mecanismos da dor, e que ainda que tenham uma pele mais grossa é um sofrimento atroz espetar-se uma bandarilha. Impõe-se um referendo porque parece haver cada vez mais gente que tem vergonha de ser português por vivermos num país onde se aplaude o sofrimento.

O Elefante na Sala de Kashogui: Será isto o que mais nos indigna no comportamento da Arábia Saudita? Não aceitaram um único refugiado da guerra da Síria ou Iraque, e falam a mesma língua e professam a mesma religião. Bombardearam um autocarro cheio de crianças no Iémen e mataram-nas a todas. Este crime de um conceituado jornalista saudita com residência americana é gravíssimo, mas será que é o que mais nos deve indignar no comportamento dos criminosos do petróleo?

O Elefante na Sala da caravana dos Hispânicos: De que é que eles fogem? Ao que parece a maioria são das Honduras, não seria fulcral explicarem-nos porque é que arriscam tudo e percorrem a pé, milhares de quilómetros?

O Elefante na Sala da Black Friday: É deprimente ver a alienação ao marketing de tanta gente. Ainda não perceberam que o marketing das grandes empresas é mais inteligente que os consumidores. Não se deixem levar pela doença do consumismo e não comprem o que não precisam.



O Elefante na Sala do Mundo: Ébola na RDCongo. No meio do conflito terrível do leste do Congo estão a contas (desde Agosto) com a 2a maior epidemia de Ébola de sempre. É preciso morrer um branco para que se dê alguma atenção a este vírus que está a matar e aterrorizar aquela população já tão sofredora?

1001 Cartas DE Mosul -- O Livro das Respostas

"Eu achei que estava preparado, mas não estava. Nunca estive e espero nunca estar. Ninguém devia estar preparado para isto...
Espero que a história nunca se esqueça de contar em letras bem gordas, aquilo que os nossos irmãos do Iraque estão a passar. Para que não nos esqueçamos, para que aprendamos a lição, porque no fundo, no fundo é culpa de todos nós!
É um pedaço do mundo que se está a afundar, e se não o segurarmos com muita força vai nos arrastar a todos para o abismo.
As pessoas,.... sim, são pessoas, o que elas têm passado.... perderam-se membros, rebentaram-se vidas, destroçaram-se famílias, abandonaram-se crianças.... e testemunharam-se atrocidades que eu teimo em não conseguir compreender...
Ninguém sabe quantos fugiram, ninguém sabe quantos morreram, ninguém sabe quantos vivem em condições desumanas, ninguém sabe quantos ainda lá estão.... Mas sabemos que são nas escalas dos milhões e dos milhares.... e são pessoas, são seres humanos!!
Segurei as lágrimas, porque nos gritos e nos últimos suspiros de vida, vejo uma hipocrisia dum silêncio e duma inacção que matam.... Tudo porque achamos que estas pessoas, não são pessoas.... mas eu vi e vos garanto, são pessoas! E alguns tenho a sorte de agora chamar de amigos.... e admirar a sua força, a sua alma, a sua resiliência, e sentir como transbordam a esperança e amor...
Deixei um pedaço de mim, mas trouxe uma vontade de gritar e de lutar ainda maior por tudo aquilo que tantos ao meu lado, teimam em me relembrar... Todas as vidas são iguais, e o mundo precisa de saber....
Desejo de há muitos anos, conhecer o Iraque, conhecer esta gente, e reforçar a minha alegria de viver.... Porque só assim vejo um sentido de vida, e porque aqui encontro a mais bonita das medicinas..... assim como a melhor parte de mim...
Mosul sangra, como quase nunca se viu, mas a sua gente mostrou-me uma força que poucos têm... Tenho o coração lacerado, dorido, a derreter e cansado..... mas trago comigo uma dose forte de “Obrigado, fizeste um bom trabalho!”.... e só isso rebenta–me as veias de tanta força para continuar....
Talvez nunca possa, talvez nunca saiba, como contar tudo o que vivi....
Talvez a última, ou talvez a sétima de setenta, mas certo é: um orgulho gigante por trabalhar para os Médicos Sem Fronteiras e acima de tudo, tudo e todos que eles representam....
Saudades de ti..... Porto! (Mosul, 28 de Junho de 2017)"

In "1001 Cartas DE Mosul" o livro das respostas que saiu AGORA.


Sinopse "Depois de 3 anos da horrenda ocupação pelo Estado Islâmico, Mosul foi vítima de uma batalha sangrenta durante 9 meses. Cerca de 2 milhões de pessoas foram usadas como escudos humanos à mercê das bombas, snipers, fome e várias doenças, no maior sequestro colectivo que há memória.

Mas de Portugal um movimento da sociedade cívil organizou-se para o envio de centenas de cartas na forma do livro “1001 Cartas para Mosul”, que abriram um canal de comunicação que parecia impossível. Cada uma das palavras carregada de compaixão, esperança, amor e muito espírito humanitário. Mais de 500 livros foram distribuídos em Mosul.
Este livro é o das respostas. Conta-nos o que vai no coração dos iraquianos que sofreram o inimaginável. O que querem eles a dizer ao mundo?"

Se estiverem interessados no livro que acabou de sair: https://www.egoeditora.com/1001-cartas-de-mosul.html

Ou podem encontrá-lo em todas as apresentações que ando a fazer deste e do meu livro "O Mundo Precisa de Saber" pelo país fora  .

Gostaria que partilhassem com todos os interessados nomeadamente todas as pessoas envolvidas que escreveram, traduziram, desenharam para o 1º livro do ano passado "1001 Cartas PARA Mosul" (o livro do ano passado)


Fi-lo por paixão.
Que nunca deixemos de sonhar...


RCA 1.0 - A República Centro-Africana promete


A missão na Síria deixou uma marca profunda em mim. Nunca desisti, mas obriguei-me a pensar bem no que tenho estado a fazer no mal que faço aos meus, e nos duros abanões que a minha sanidade mental vai levando... Porque isto de andar entre mundos, tem que se lhe diga. Ancorei-me no meu Porto o melhor e mais fundo que consegui... Investi tudo na casa dos meus sonhos por ser a casa da minha querida avó, comecei um negócio para espreitar outros mundos fora da medicina ligados ao desporto, e perfilhei dois cães... Mais acorrentado era impossível. Mas não chegou, a vontade de continuar a voar era maior...

Nunca escolho para onde vou, digo sempre a mim próprio “vou para onde for preciso”... Mas depois de 3 missões em países do médio-oriente e oriente, tinha vontade de voltar a África e assim foi... A África negra tem para mim encantos incomparáveis. É uma terra de amor e ódio, do belo e do horrível, da dor e da esperança. Não precisamos de fazer um grande esforço para ver que em África temos do pior que a humanidade tem para nos oferecer, mas na minha opinião genuína encontramos também a esperança e a compaixão no seu estado mais puro...

Foram 2 anos e uns meses sem partir em missão, e agora o meu coração voltava a bater... Desta vez batia pela República Centro-Africana.

Quando me perguntavam: “Então para onde vais?” e eu respondia: “República Centro-Africana”... eu já sabia que ia ouvir a seguir: “Para onde??” E só depois de duas ou três repetições é que a mensagem chegava ao receptor... Ninguém conhece, ninguém sabe nada... e se calhar era bom se assim continuasse porque agora que se vai falando qualquer coisinha é para falar dos horrores da guerra e da catástrofe humanitária que desenha o mapa deste país de norte a sul, de este a oeste... E é para aí que eu vou.

Desde finais de 2012 que estava atento às notícias que nos contavam o pior sobre a RCA. Foram muitos anos, muito violentos... Talvez a descrição que melhor explique o que se passou neste país é o facto de até a capital (Bangui), ter sido palco de guerra aberta em variadíssimos momentos... A fragilidade deste estado (falhado) é tal que Bangui foi um campo de batalha digno dos vídeo-jogos mais realistas. De um momento para o outro, tudo explode em Bangui... a cidade que eu chamei casa durante uns meses...

Sozinho como sempre, numa viagem cheia de emoções, com o meu cachecol a esvoaçar, perdi o avião para Bangui em Paris... Percebi mal o horário limite do check-in, e quando cheguei à zona designada do aeroporto, um polícia francês do alto da sua arrogância impediu-me de entrar na zona dos balcões por terem passado 5 minutos da hora, quando faltavam ainda 2 horas para a partida... Do local onde ele me barrou a entrada, via as dezenas de pessoas na fila para o check-in daquele voo que eu acabara de perder... Supliquei que me deixasse entrar explicando o que me levava a viajar para Bangui... Mas nada o demoveu de me arrasar esta partida... Os nervos, a solidão, a emoção da partida, a possibilidade deste atraso se traduzir em vidas, conduziu-me a um rio de lágrimas como se fosse uma criança abandonada no aeroporto... Fiquei irritado e umas centenas de euros mais pobre, mas tudo se resolveu e fui 14 horas depois...

Aterrar num destino tão inóspito é sempre forte e em Bangui nem foi preciso sair do avião para que aquela realidade tão dura me abanasse a consciência e acordasse o meu córtex cerebral ainda anestesiado pela viagem... Colado à pista de aterragem, deste muito simples e rudimentar aeroporto internacional, há um mega campo de deslocados que impressiona até os mais insensíveis. Chegaram a estar cerca de 100.000 pessoas amontoadas em torno do aeroporto e literalmente à volta e debaixo de aviões neste campo de Mpoko, que é também o nome do aeroporto... Da janelinha do avião somos esbofeteados pela realidade deste povo... Nas várias ondas de violência em que Bangui se tornou irrespirável, a população mais vulnerável refugiou-se como pode no aeroporto, por ser o único local com esperança de ser seguro... Mas é impressionante logo à chegada sermos invadidos por estas imagens de miséria humana colectiva que espelham bem o estado de todo o país... a sofrer.

Ao sair do aeroporto encontrei companheiros dos MSF que não conhecia, mas tínhamos partilhado o mesmo voo, e no carro dos MSF que está à nossa espera sentimo-nos em casa, em família... e sabe bem por estarmos tão sozinhos e tão perdidos no meio do nada, ter esta sensação de pertença que é quase imediata e instinctiva...

E aí vamos nós Bangui a dentro. Eu adoro chegar a África. E absorvo todos os detalhes que a estrada me permite. Todos. O calor húmido, o cansaço da viagem e as informações visuais do tudo e do nada que esta África me dá, fazem-me viajar noutra dimensão. A vida que esta estrada tem é música para os ouvidos de quem gosta de observar... Mas quando estamos a passar numa avenida bem larga, somos surpreendidos por algo de cortar a respiração. Em segundos uma multidão a cem ou duzentos de metros à nossa frente, corta a avenida onde circulávamos, em fúria... Surpreendidos e incrédulos abrandamos o carro num processo de decisão, sobre o que fazer... São milésimos de segundo para que se atirem barris e tábuas enormes para impedir ou emboscar quem por ali passasse... E começamos a ver que os revoltados que assumem a linha da frente estão “armados”, com paus e pedras aos gritos efusivos, convocando palavras de ordem para mim incompreensíveis. Fiquei com muito medo. Sem saber o que se estava a passar, a possibilidade de ser engolido por toda aquela gente, fez-me temer pela vida... O motorista pensou rápido e agiu melhor e numa manobra ao jeito dos “3 dukes”, acelerou para os 180º e fugimos da multidão em fúria... É assustador ver este sangue quente a ferver em conjunto e a raiva que sai dos olhos desta gente...

A República Centro- Africana promete.



Sobre os Médicos Sem Fronteiras (MSF)


Porque recebo muitas perguntas sobre os MSF, e respondo com muita vontade de ajudar aqui escrevo, na tentativa de informar/esclarecer várias pessoas sobre diferentes areas profissionais (médicas e não médicas). Sendo que a minha visão é sustentada apenas no que eu sei e é seguramente incompleta.
Os MSF têm 5 Centros Operacionais: França (Paris), Bégica (Bruxelas), Suiça (Geneve), Holanda (Amsterdam) e Espanha (Barcelona). Trabalham com a mesma missão e os mesmos princípios, mas de uma forma algo independente. Portugal (infelizmente), não tem representação oficial dos MSF. Em teoria, MSF-Espanha representa-nos pela proximidade, mas os portugueses (por não terem representação oficial), podem-se candidatar a qualquer um dos 5 centros operacionais. Sendo que uma vez iniciado o processo de recrutamento num dos centros, as outras candidaturas caiem por terra.
Como candidatar? Semelhante a tantas outras situações. Online, enviar o CV, e uma carta de motivação. Este processo demora sempre algum tempo (meses), mas claro depende de cada categoria profissional e da procura dos MSF.
Durante quanto tempo? Depende do grupo profissional, mas de uma forma geral o que os MSF querem é pessoas que dêem garantias de compromisso. Dificilmente são aceites sem terem um compromisso de 6-9 meses para uma 1a missão. Não é uma brincadeira, é uma ONG altamente profissional e competente, e no terreno o período de adaptação/aprendizagem é muito grande, o que faz com que quem queira ir umas semanas ou numas férias, não faça sentido. A única excepção são especialidades médicas mais específicas: Anestesia, Cirurgia, Obstetricia, ainda assim menos de 3 meses é difícil.
Para onde? Alegar ter espirito humanitário e querer escolher o local é contraditório! É importante transparecer que se vai para onde for preciso, pois é esse um dos lemas dos MSF. No entanto, é normal/natural ter medo de determinadas situações, pontos do planeta, e tudo deve ser expresso com 100% transparência... Mas claro, o que os MSF procuram é das pessoas o mais flexíveis e disponíveis possível.
Que competências se deve ter? Acreditar na causa é fundamental. Falar línguas, abre muitas portas. Ser flexível, humilde, ter sanidade mental, e muito espírito de equipa…. É fundamental. Experiência em Voluntariado Nacional ou Internacional é importantíssimo…. pois mostra compromisso com as boas causas, e algum conhecimento de como funciona uma ONG.
Que áreas profissionais é que são procuradas? Tenho medo de ser muito redutor, mas tentarei dar uma visão geral do que conheço com mais expressão.

 Áreas Médicas: Médicos, Enfermeiros, Psicólogos, Farmacêuticos, Téc. Laboratório,
 Áreas Não Médicas: Administração e Finanças, Ciências Políticas, Logísticos… esta área importantíssima recorre a pessoas com áreas muito diferentes de formação ou mesmo nenhuma. Construção, Mecânica, Água e Saneamento, Electricidade, Informática, etc, etc, etc!
 Algumas áreas menos representadas: jornalistas, fotógrafos, comunicação em geral, arquitectos, design, e muitas outras áreas que fazem esta máquina gigante funcionar.
Dentro das Áreas Médicas?
 Enfermeiros: Serviço de Urgência, Internamento, Bloco , Pediatria, Neonatologia, Enfermeiros-Parteiros (talvez o mais procurado) . Mais uma vez a polivalência é muito importante e acima de tudo a capacidade aprender pois no terreno terão que fazer coisas muito diferentes: gerir campanhas de vacinação, clinicas moveis, etc, etc.
 Médicos: A formação em Medicina Tropical é sempre valorizada em qq área. É preciso ter a noção que é preciso levar já uma bagagem de experiência para o terreno. É preciso ser uma mais valia. E um medico inexperiente é pouco útil. No entanto muitos projectos aceitam médicos ainda numa fase inicial da sua formação.
 Especialidades procuradas? Clinica Geral, Medicina Interna, Pediatria, Dçs Infecciosas. Idealmente especialistas, mas dependendo das necessidades podem ser escolhidos internos. Mais uma vez experiência além fronteiras, e/ou voluntariado é sempre valorizado. Anestesiologia? É bastante requisitado. Cirurgia Geral? Bastante requisitado, e deverá ter experiência transversal a outras áreas cirúrgicas, p,e, obrigatório saber fazer uma cesariana, e já agora um fixador externo. Obstetrícia? Bastante requisitado. Ortopedia? Alguns projectos para além de um cirurgião geral precisam de um cirurgião de Trauma.
 E se eu for IAC? Não quero cortar as pernas a ninguém e possível é, no entanto há muita oferta e pouca procura. Mas há projectos, clinicamente mais simples q podem requisitar: p.e. campanhas de vacinação.
 E se eu for estudante de Medicina? Que eu saiba não há nada, mas podem dar sim passos que vos levem a ter os requisitos necessários, e qualquer contacto com a medicina do mundo sub-desenvolvido será valorizada.
Como é que é de dinheiro? Todo o processo de recrutamento é à conta do candidato, o que costuma implicar uma viagem a uma das sedes por sua conta. A partir do momento que se é recrutado, as viagens para missões são responsabilidade dos MSF. Inclusive os MSF pagam um ordenado (que varia) e um per diem. Dificilmente será pelo dinheiro que o farão, mas é preciso perceber q estamos a falar duma ONG ultra-profissional, e muitas das pessoas que aqui trabalham fazem da medicina humanitária uma carreira.
Espero ter ajudado, e espero que partilhem por muita gente!
Mais alguma pergunta que eu possa ajudar? 
Os MSF precisam de Portugal….. e Portugal precisa imenso dos MSF!
Mais informações:
https://www.msf.es/en/trabaja/terreno
Se pretende juntar-se aos MSF, candidate-se diretamente em:
Site: https://www.msf.es/en/working-field/send-us-your-cv/
Email : Recruitment-bcn@barcelona.msf.org

República Democrática do Congo



(Atenção, este texto pode conter palavras chocantes para as pessoas mais sensíveis)

Se escrevesse sobre uma qualquer aldeia de Portugal, teria outra atenção. Se escrevesse sobre o SNS teria outra atenção. Se escrevesse sobre este ou aquele ministro, esta ou aquela greve, este ou aquele jogo de futebol, teria outra atenção. Porque é tão difícil chamar a atenção para a nossa humanidade? Porque é que o nosso sentido de humanidade é como um relógio avariado que acerta nas horas, duas vezes por dia?
Eu acredito que todos precisamos de ocupar algum do nosso espaço mental e de acção na realidade mundial. Compreendo e não julgo/critico, que temos de ir à praia, pensar nos casamentos, na roupa da moda, no último telemóvel, nas séries do momento, nos carros que nos encantam, no novo restaurante que abriu, nas notícias cor-de-rosa, nos casamentos de reis que não nos dizem respeito. Compreendo e não julgo/critico. Mas não encontraremos espaço... algum espaço... qualquer espaço, para pensar e eventualmente ajudar pessoas que estão a sofrer o inimaginável?
É difícil chamar a atenção para a República Democrática do Congo (RDC), mas é esse o objectivo a que me proponho!
A RDC está em guerra. Está em guerra há 24 anos. Estima-se, porque ninguém conta que já terão morrido cerca de 6 milhões de pessoas. 6.000.000 de seres humanos. Cada um com a sua história, triste por sinal. E mais são ainda, os que têm a história dos traumas de quem perdeu os seus.

E como sabemos tão pouco ou nada da pior guerra desde que somos gente? Porque é que estes factos de hoje, aparecem apenas em meia dúzia de documentários pouco vistos, notícias pouco lidas, ou num pequeno rodapé? A dimensão da notícia, somos todos nós que a fazemos. E nós fazemos questão de que a maior notícia do mundo, não seja notícia. Porque somos egoístas, porque somos hipócritas. Porque até a tomada de consciência nos parece um esforço fora do nosso alcance. Viramos a cara para o lado quando nos mostram o seu sofrimento. Porque são pretos, porque estão longe, porque não nos dizem nada. São apenas animais parecidos connosco. Ainda que muitos animais consigam ter mais atenção.

Quando vemos uma mulher grávida no hospital, perguntamos se foi violada. É estranho que esta pergunta salte da nossa boca para fora com “naturalidade”. Mas a verdade é que tem que ser feita, pois 70% das mulheres no leste da RCD já foram violadas. Muitas mais que uma vez. Muitas por vários homens.

No hospital vemos muita gente com sorte. Sorte de terem uma perna desfeita e inútil para a vida, por fracturas causadas por balas. Sorte por terem perdido um olho numa bala de raspão. Sorte de terem os ombros, os braços cortados à machete. Sorte por nos chegarem com as tripas a sair pelos buracos que as AK47 fizeram. Sorte têm porque estão vivos, e porque há quem trate deles. Mas é triste falarmos de sorte, naquilo que mais parece um festival de muletas, cadeiras de rodas e incapacitados.

As balas perdidas parecem ter uma predileção pelas crianças. Talvez porque a uma criança ninguém aponta uma arma. Mas as balas chegam-lhes na mesma. Não seria capaz de dizer quantas crianças já vi, com as vidas estragadas, por sabe-se lá quem e sabe-se lá porquê premiu o gatilho. Vidas perdidas num hospital, numa reabilitação, que nunca terá fim. E estas são as que tiveram sorte.

E é este o dia de hoje da RDC com ondas de milhões de deslocados e refugiados, que deixam a todo o momento mortos, feridos, violados, incapacitados, famintos, doentes de tudo e mais alguma coisa. São milhões no dia de hoje.

Claro que os alarmes do Ébola abrem as atenções de todos. Porque o Ébola pode nos tocar, a guerra não. Nem sequer os seus refugiados porque estão demasiado longe, ou são demasiado pobres para chegar ao Mediterrâneo e ser notícia.

Um enfermeiro que trabalha comigo disse-me que o Congo era amaldiçoado. Deus deu-lhes um clima maravilhoso, uma natureza de uma beleza sem paralelo. Um solo onde cresce tudo, e o sub-solo mais rico do mundo. Mas com isto veio também o Diabo que lhes trouxe a guerra.

Quem será este Diabo?