De volta ao Afeganistão….. fecho os olhos e regresso ao Afeganistão... ou
talvez um bocado antes.... à Partida, à preparação, literalmente para a Guerra.
Neste momento tenho imensa vontade de escrever, fico na dúvida se tenho
vontade de ser lido (que é sempre um ânimo), ou se simplesmente preciso de
escrever e reviver vivências que são tão importantes para mim....
É difícil de explicar, sendo muito honesto comigo e com a minha escrita,
encontro verdades diferentes, ou se calhar uma verdade que se complementa..... na
tentativa de (me) explicar o porquê de ir para um cenário de guerra.... outra
vez.... a 3a vez!
É tão egoísta! É tão egoísta esta vontade de ir.... vontade de viajar,
vontade de conhecer, vontade de compreender o mundo, vontade de ver a história
com os meus próprios olhos, vontade de salvar vidas, vontade de incandescer a minha vida, vontade de
sentir o coração a bater mais forte, vontade de sentir o medo outra vez,
vontade de me desafiar, vontade de orgulhar os que gostam de mim, vontade de
gostar de mim, vontade de dar um sentido mais nobre à minha vida, vontade de
sentir que sou parte da solução..... vontade de ir! Vontade de voltar a morrer
de saudades para voltar....
E foi há 3 anos, que o meu Natal, ficou marcado, pela viagem iminente para
o sul do Afeganistão. A consciência de que magoo muita gente ao satisfazer este
egoísmo, faz me também a mim sofrer.... mas a minha motivação egoistamente
ultrapassa tudo. Sei que nenhuma mãe merece aquilo que eu fiz passar a minha,
sei que todos que gostam de mim sentem um friozinho na barriga, pelos perigos
que se sentem ao ligar a televisão.... e sei que não foi justo eu magoar tanto a
minha ex, com o egoísmo do meu sonho humanitário.... mas eu fui! E por isso
dedico todos os meus esforços, todas as minhas palavras, na proporção exacta às
pessoas que magoei por querer tanto ir..... para uma guerra que não é minha,
salvar gente que nunca vi, dar uma palavra a quem a quiser ouvir, que este é o
caminho.... que em consciência, dou a minha vida por qualquer outra.... porque
quando respiro fundo e fecho os olhos.... nos momentos em que gosto mais de mim,
é nisso que acredito! E por isso eu vou....
Foi um Natal, especial, em que todos os momentos são mais “intensos”, sou
muito optimista, mas a cada desejo de “Bom Natal”, está implícito no meu subconsciente
que poderá ser o último.... Estou mais sensível, e gosto. Gosto desse medo do
que aí vem, que faz sentir cada toque ainda mais especial... Valorizo mais os
“momentos”, congelo o pensamento em lugares comuns, fotografo situações no meu
pensamento, de família, amigos, de amor.... para levar comigo.... Despeço-me de
cada canto da minha cidade... .o como ao Porto, eu digo tudo sem vergonha.... Só
lhe digo: “Espero que não seja a última vez que nos vemos!”.... Há muitas
situações de lágrimas nos olhos, que guardo para mim.... Eu tenho medo, mas
adoro esse medo.... que simboliza o amor que tenho à vida, e adoro ainda mais a
força que me faz ultrapassar esse medo....
E o que dizer da passagem de ano! Aquele marco inventado por nós que nos
leva incontornavelmente a pensar nos antes e nos depois..... Em que cada vez
que num abraço eu ouço “Bom Ano”....o meu cérebro traduz de imediato para “Eu
vou para o Afeganistão!”
E logo depois começa a viagem....
Porto-Bruxelas-Dubai-Kabul-Lashkar Gah .
A saída do Porto é sempre a que custa mais.... nesta altura já não dá para
aguentar... a experiência ajuda, mas o coração quase que explode.... Mochila às
costas, cachecol do FCPorto, a representar todo o meu mundo.... e entro no
aeroporto num turbilhão de emoções.... sozinho, bem sozinho contra o mundo, e
cheio de vontade de viver.... Limpo as lágrimas que ninguém viu, e sinto que
começa a “missão”. Há muito trabalho a fazer.... muitos documentos a ler e
reler, sobre tudo o que vou ver, viver e fazer.... Ultra motivado e cheio de
vontade de começar a trabalhar, na única coisa que sei fazer... mas já a morrer
de saudades.
Adoro ir ao “headquarter” dos Médicos Sem Fronteiras, em Bruxelas....
cheira a mundo! Sente-se um bocadinho de todos os pontos longínquos do planeta
onde os MSF estão a trabalhar, para que o mundo seja um bocado mais justo...
Sou metralhado de informação sobre o projecto em que vou trabalhar, o stress
aumenta, mas é banalizado..... porque há tanta gente ali que já foi, veio, e
voltou ali e a tantos outros lugares, que relativizam toda aquela carga emotiva
de quem vai entrar num dos locais mais perigosos do planeta...
Conheci o Tom, um rapaz belga, engenheiro, que iria fazer a viagem até
Kabul comigo.... é fantástico ter companhia.... porque nas outras vezes fiz tudo
muito sozinho.... Juntos vamos à embaixada Afegã em Bruxelas tratar de
papelada.... provavelmente é preconceito, mas ao falar com as autoridades Afegãs
já parece que estamos em guerra.... e aquela ingenuidade de quem acha que é
obvio que vamos lá para ajudar é desfeita numa série de olhares e perguntas
desconfiadas e desconcertantes.
E com uma fantástica cerveja belga e um bom conjunto de pessoas improváveis,
me despeço do mundo dito civilizado, e faço os últimos telefonemas aos que me
fazem querer tanto voltar inteiro, não sabendo quando e como iria poder voltar
a falar com o meu mundo....
Ao chegar ao aeroporto de Bruxelas, revisito intensas memorias da minha
partida para o Congo em 2009..... acho graça me lembrar tão bem de certos
lugares do aeroporto e de emoções tão ou mais fortes das que ali sentia 2,5
anos antes.... viagens dentro da viagem. Sento-me exactamente no mesmo banco no
exterior do aeroporto, que me tinha sentado antes de ir para o Congo, e vivo e
revivo, aquele presente e o passado, antevendo o futuro que estava quase a
chegar.... Momentos de reflexão, de uma solidão intensa, que eu não me canso de
amar sentir. Avisto a chegada do Tom, com o seu pai, observo aquele filme de
despedida “agarrado ao ecrã”, imaginando e transpondo o que aquele pai estaria
a sentir ao abraçar o seu querido filho antes de ele partir para esta guerra
destruidora, que assusta só de ouvir falar.... Adorei ver aquele momento que
para mim era de uma enorme intensidade emotiva, e mais ninguém da multidão
incógnita se apercebia do que se estava a passar.... Mais tarde o Tom, disse-me
que a sua mãe, nem aguentava ir ao aeroporto.....é muito forte! Acho que nem eu
sei muito bem explicar....
E ai fomos nós rumo a Kabul.... de coração aberto, medos e motivações na equação
certa.... com um nervosismo saudável, cheios de sonhos e vontade de ser
felizes....
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