A história que vou contar pode doer na alma, mas é uma história
de almas bonitas.
O Estado Islâmico ocupou uma enorme parte do norte do Iraque
e do nordeste da Síria. Fê-lo de uma forma oportunista aproveitando a
fragilidade destes povos, que os leva a aceitar a religião como a única solução
para a opressão e ostracização dos seus lideres, e acenando com a palavra de
deus para domínio de mentes perdidas, no seu desespero de quem já não tem nada
para perder. Fê-lo também través do terror e do medo manietando todas as
liberdades e vontades de quem pudesse pôr em causa o seu jugo de poder. Fê-lo
torturando, violando, matando e destruindo todos e tudo, com uma maldade, uma
frieza, uma violência física e psicológica que é difícil encontrar paralelo na
história. Fê-lo em nome da sua ignorância e aproveitando-se da ignorância dos
demais que iam caindo nas teias do seu domínio quer pela força, quer pela
necessidade de sobreviver perante a impotência contra a palavra de deus e a lei
da bala e do mais forte. Quando entraram no caos da guerra da Síria e se
aproveitaram do desgoverno duma oposição ao regime Sírio, o mundo ficou perplexo
pelas suas tácticas de terror e repressão à população Síria e pela sua
estratégia de “markting” no youtube ao decapitar um jornalista americano ao
vivo, em nome da jihad (guerra santa). Mas ninguém estava à espera e ninguém
queria acreditar que estes homens de cara de mau, barba comprida e bandeiras
pretas poderiam controlar com tanta passividade e facilidade a 2a
cidade do Iraque com cerca de 2 milhões de pessoas, Mosul. E muitas mais
pequenas cidades à volta, dominado uma enorme fatia deste país e uma grande
parte da sua população. Os tempos mudaram. Já não era só uma ideologia do mal,
era um estado, o auto-proclamado Estado Islâmico do Iraque e da Síria, ou
Iraque e Levante, ou Daesh que quer dizer estado em Árabe. Por mais que alguém
se esforce nunca ninguém será capaz de descrever com uma fiel e verdadeira
representação da realidade, todo o terror que este gente fez, e de todo o
sofrimento que uns largos milhões de pessoas passaram sob o seu jugo.
Se é que a definição de “guerra justa” pode em algum momento
fazer sentido, este parecia ser um deles. O mundo ocidental uniu-se ao exército
iraquiano para derrotar este terror negro que se espalhou no mapa do berço das
civilizações. A reconquista, a libertação são obviamente palavras de quem
mostra enviesamento moral entre estas forças que se opunham... Mas foi muito
duro. Foi à custa de muito sangue e destruição que se foi diluindo e reduzindo
a mancha negra do território do Estado Islâmico e outras tantas atrocidades
foram cometidas em nome desta reconquista. Muitos tiros, muitas bombas, muita
tortura e muitas massacres foram precisos para com alguma facilidade o exército
iraquiano por terra e a coligação internacional pelo ar (com os EUA à cabeça)
empurrassem, como que encurralassem o Estado Islâmico para Mosul. Parecia que
estava a ser fácil e rápido até se chegar a Mosul, mas a paranoia e a falta de
amor á vida dos combatentes do EI faziam prometer em voz alta que a batalha por
Mosul, ia ser até ao último homem. Com a agravante que cada vez menos era uma
guerra a céu aberto, porque a estratégia do EI passava por sequestrar todos os
2 milhões de civis de iraquianos que há quase 3 anos viviam aprisionados na sua
terra. Todos que tentassem sair eram mortos, pois a vantagem do EI era ter o
maior número de escudos humanos alguma vez visto. À medida que a coligação
chegou às bordas da cidade e a zonas mais densamente populadas, os ataques pelo
ar tornavam o número de vítimas inocentes incomportáveis para os ganhos
militares... A guerra começou a ser rua a rua, quarteirão a quarteirão, porta a
porta... À medida que a coligação avançava o EI não desistia de matar pelas
costas todos que tentavam fugir, e de destruir tudo que deixava para trás,
auto-sitiando-se e escudando-se em tantos quantos podia... A cidade de Mosul, é
atravessada pelo rio Tigre que desenha o historicamente famoso crescente
fértil, e define assim a parte antiga de Mosul Oeste, e a parte mais nova de
Mosul Leste, que era o lado por onde a coligação de forças atacava ferozmente o
EI, que não estava disposto a baixar os braços nem por nada. Toda a reconquista
foi à bomba, aos tiros, à custa de milhares de vidas, ainda assim Mosul Leste
caiu rapidamente, até chegarem ao rio cujas pontes num raio de centenas de Kms
foram todas destruídas. Parecia pequenina a parte que faltava libertar, mas foi
mais sangrento do que todo o conflito até então.
Lia-se em todos os noticiários e em todas as línguas, o
maior sofrimento colectivo de que há memória... 600.000, e depois 500.000, e em
seguida 400.000 o número de Iraquianos sequestrado pelo EI ia diminuído a muito
custo à medida que as forças da coligação avançavam para o centro de Mosul
Oeste. Os relatos das pessoas que iam sendo libertadas eram dilacerantes...
Apertavam-nos o coração com tanta força que por vezes se tornava difícil de
respirar... Sem água, sem comida, com medo das bombas do “fogo amigo”, e com
medo de levar um tiro nas costas de um sniper do EI se tentassem fugir...
Muitos tentaram com a família inteira e ficaram todos estendidos na estrada, de
cara para o alcatrão, por vezes deitados em cima de bebés de colo que estavam
vivos e que ninguém se atrevia a ir salvar... Ou os feridos que ficavam a
sangrar nestas ruas que escreveram a história a sangue e sofrimento...
O hospital onde eu estava era a sul de Mosul Oeste, e íamos
recebendo as levas de feridos quer frescos de uma batalha que não tinha um
minuto de pausa, quer os já com vários dias ou semanas que se refugiaram nas
suas casas à espera que chegasse a sua casa, o bilhete de saída, com a
libertação pelas forças de coligação.
Vi de tudo, e as histórias de uma tristeza capaz de rebentar
até as almas mais frias, empilhavam-se na minha mente... Dá vontade de mandar
tudo á merda, de virar as costas e vir embora, ainda não sei até hoje até que
ponto sou também vitima desta guerra por ter sido tantas vezes abaulado com
realidades duras de mais para digerir...
Em mais um dia de calor tremendo, recebemos mais uns quantos
feridos de uma zona de Mosul que acabara de ser libertada. As expressões e os
olhares não são só de dor, são de apatia, de desistência... pessoas que
deixaram de ser pessoas, para serem apenas seres vivos.
Eu entro no Serviço de Urgência com o objectivo de
rapidamente estratificar gravidade dos feridos, para ver se havia doentes para levar
a correr para o bloco operatório... Quase como um observador externo, faço uma
radiografia à situação e cruzo o meu olhar com olhos que viram o que nunca
ninguém devia ter visto... Seguro-me com força para não chorar (choro agora
enquanto escrevo), mantenho as minhas antenas de médico bem focadas para não
deixar entrar as emoções... Penso como uma máquina que salva vidas, mas por
dentro estou destruído também. Excepcionalmente não fomos a voar para o bloco
com dois ou três doentes, como quase sempre acontecia, todos estavam foram de
perigo vital no imediato porque eram feridos de dias ou semanas... E como tal
encosto as minhas atenções numa menina que devia ter uns 11 ou 12 anos. Vou lhe
chamar Wadjda.
A Wadja está deitada numa maca e com a coxa direita e abdómen
tapados com um penso gigante coberto por ligaduras... A Wadjda está acompanhada
do pai que nos conta a história. A mãe morreu debaixo dos escombros de parte da
casa que foi vítima de uma bomba qualquer... uma das infinitas bombas que rebentaram
com aquela cidade... O pai ficou ileso, e a Wadjda ficou parcialmente debaixo
dos escombros de barriga para baixo, com o tronco os braços e a cabeça livres,
e com a bacia e as pernas entaladas de baixo do entulho... Isto foi há 3
semanas, e a Wadjda ficou com uma ferida gigante na perna, coxa e bacia do lado
direito. À medida que o pai conta a história, os enfermeiros preparam-se para
começar a abrir o penso para que pudéssemos ver a ferida... Eu estou à espera
daquilo que já vimos tantas vezes, uma ferida suja, infectada cheia de pús,
putrefacta e com um cheiro que nos obriga a dar três passos a trás... Muitas
vezes obriga-nos a amputar e até a vida pode estar em risco... Mas o espanto
foi bem maior... a ferida gigante está limpa! Limpa, limpa, limpa! Sem um ponto
de infecção ou tecido morto... vermelhinha, cheia de vida! Ficamos todos
estupefactos, porque 3 semanas é muito tempo. Perguntei ao pai, como era
possível este milagre, sabendo nós que os quase inexistente recursos médicos
dentro das linhas do Estado Islâmico, eram apenas para os seus combatentes e
suas famílias.
O pai começa a contar-nos que tinha alguns conhecimentos de
enfermagem, já tinha trabalhado como auxiliar num hospital, antes da ocupação
pelo Estado Islâmico, e como tal sabia que tinha que limpar a ferida, e mudar o
penso com regularidade. Contou-nos que vendeu tudo o que tinha e também com a
ajuda dos vizinhos, comprou compressas, ligaduras e betadine. Todos os dias,
limpava a ferida e mudava o penso em sua casa... Contou-nos que pouco comeu
para que a Wadjda se alimentasse bem para sobreviver a este trauma, contou-nos
que nos últimos dias comeram gatos para sobreviver. Contou-nos que para ir
buscar o material médico, várias vezes passava por snipers e que escapou por
pouco, algumas vezes a balas que vinham pôr fim à sua história.
À medida que a história me ia sendo traduzida, o meu coração
ganhava uma vida própria, e fugiam os meus pensamentos de esperança, compaixão
e liberdade... E há muita coisa nesta história que eu não sei mas imagino,
porque a Wadjda não tinha uma expressão de desistência... A Wadjda, estava
emagrecida e doente, mas tinha um sorriso tímido de quem ainda quer uma vida
pela frente, de quem sonhava, de quem tinha esperança... Este pai tratou-lhe de
segurar e alimentar o corpo... mas também e alma, diante um mundo negro... Não
sei como, mas esta menina sorria.
Foda-se, isto é lindo, pensava eu a borbulhar de felicidade
dentro de mim...
Este pai e a Wadja deram-me força para continuar em Mosul,
quando parecia que já não aguentava mais, e deram-me força nos dias mais
tristes da minha vida...
Há sempre algo de bonito quando tudo parece negro, é só uma
questão de procurar...
São estas as pessoas que têm que estar nas bocas do mundo,
para que aprendamos e nos inspiremos a ser pessoas melhores.
Mas são também estes
que estamos a deixar morrer no Mediterrâneo...