Olá a todos!
De forma a ter os meus textos, vídeos, entrevistas, etc, mais organizados, criei um novo site em www.gustavocarona.com :)
Espero que gostem de viajar por esse mundo fora!
Um Abraço
We can´t be sure that words will save, but we know full well that silence kills! Stories of a Doctor working in places, where humanitarian issues make "our problems" in life a bit smaller.... It would be easier to close my eyes, but I decided to open them and share with the world what I have lived.
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Iraque 6.0 - Maldade responde-se com Humanidade
Pela segunda vez na minha vida estive cara-a-cara com o Estado Islâmico. Mete medo, é assustador. Muitos arrepios na espinha. A primeira vez foi na Síria em finais de 2013 que tive o desprazer de me cruzar com este grupo de pura maldade. Cruzei-me com alguns dos seus elementos no hospital onde trabalhei, mas foi acima de tudo na reacção de medo e petrificação que vi nos rostos do povo sírio, que me apercebi do espectro infinito de terror e sofrimento que fez construir a minha imagem sobre este grupo.
Desta vez no Iraque, em Mosul, 4 anos depois, a história foi bem diferente para pior. É difícil de explicar o inexplicável, mas para contar esta história ou estas histórias é imperativo que se tente analisar como apareceu o estado Islâmico desde a geopolítica macro ao humilde indivíduo que não sabe ler nem escrever e que no fundo não teve outra opção, passando também por algumas opiniões sobre o que os une, a religião. Sei que quando chegarem ao fim desta história vão perceber um bocadinho mais e vão olhar para o mundo com mais coração.



Aquilo que o Estado Islâmico fez não caberia em todos os livros que já foram escritos até hoje. E eu poderia escrever textos e textos, e continuaria a ser uma mera introdução ao tema. Mataram todos os que consideravam infiéis, desde xiitas, cristãos, yazidis, kurdos, e tudo mais o que encontravam pela frente. Escravizaram pessoas, violaram enormes quantidades de mulheres que usaram como objectos sexuais, torturam de todas as formas que a nossa imaginação possa encontrar, queimaram casas com pessoas lá dentro, executaram pessoas em praça pública para aterrorizar e entreter as multidões que eles obrigavam a assistir. As histórias que me chegavam quer pelos meus companheiros de trabalho iraquianos que tinham vivido sobre o domínio do Estado Islâmico, quer pelos doentes que ainda tremiam de medo eram arrepiantes. É o que acontece quando deixamos crescer o egoísmo e a maldade.
O anoitecer era uma fase maravilhosa do dia. O calor abrandava. Abrandava apenas, mas já era tão bom. Os iraquianos que estavam a jejuar durante o ramadão animavam-se com o Iftar (a refeição que quebra o jejum diurno) e normalmente encontrávamos aqui um momento para viajarmos através das conversas de mundo e do ali mesmo. Um dos médicos que trabalhava comigo contava-me algumas histórias de horror do Estado Islâmico. Uma delas tinha uns dias. Disse-me que estava sentado à conversa com um amigo também médico no lado leste de Mosul (recentemente libertado), e que este foi assassinado por um sniper que disparou da outra margem do rio (Mosul oeste) que estava ainda dominada pelo Estado Islâmico. Disse-me que era frequente eliminar profissionais de saúde marcando uma posição sobre o terror que impunham em todos que estivessem contra eles. Retirar a saúde a um povo, é retirar-lhes a esperança de viver. Os feridos e os familiares que nos chegavam ao hospital por vagas, à medida que a cidade de Mosul ia sendo libertada quarteirão a quarteirão, todos referiam histórias de familiares que em algum momento tentaram fugir e foram abatidos pelas costas na fuga, e os seus corpos ali ficavam no meio da rua, pois ninguém se atrevia a aproximar-se das linhas que delimitavam a fronteira deste conflito.
Um mundo de ódios, um mar de maldade, todo um infinito de atrocidades. E a grande maioria da população que limitou-se a sofrer, quando se libertarva deste inferno, encontrava de imediato um enorme alívio mas também o desespero de vidas e vidas perdidas para trás que deixarão cicatrizes até os tempos serem tempos, e um ódio reactivo a toda maldade que lhes foi feita. Várias reportagens jornalísticas deram conta das atrocidades cometidas pela exército iraquiano na reconquista do norte do Iraque. Fizeram igual ou pior que o Estado Islâmico a todos que consideravam culpados, em julgamentos instantâneos. Porque o grande problema aqui se põe. Quem são os verdadeiramente culpados? Porque entre os que ajudaram, os simpatizantes, os que alguma vez colaboraram, os que tinham primos, os que fizeram algum negócio com o Estado Islâmico, etc, etc. Quem são os verdadeiros culpados? Foi uma matança desprovida de critério, e menos ainda de justiça. Foi-se torturando e matando ao sabor de quem tinha a arma na mão.



Os enfermeiros tinham que lhes dar banho, limpar a cama cheia de diarreia, dar-lhes a medicação, dar-lhes de beber e de comer, e tudo mais... a pessoas, que pintaram a tons de dor toda a história das suas vidas, dos seus pais, dos seus irmãos, dos seus filhos... Foi a coisa mais bonita que eu vi até hoje. Sentia calafrios pelo corpo todo quando os via a a fazer cuidados de enfermagem numa interacção que os devia estar a destruir por dentro, mas certamente percebiam que a solução para o seu país estava também nestas pequenas vitórias heroicas... Eu dava a vida por eles, porque um ensinamento de tanto amor no meio do horror, não tem preço e tem um valor eterno e inestimável.
Eu sabia que a tarefa ia ser dura. Quando podia ia ajudando ou vendo pelo canto do olho como os estavam a tratar. Era duríssimo. Nunca vi uma troca de palavras para além do mínimo. Nunca vi um sorriso, nem posso dizer que tenha visto compaixão, embora ela estivesse lá. Vi um trabalho sério, e cuidado. Vi que à maldade se responde com humanidade.
No meio de tantos horrores, vemos também o melhor do ser humano. Nunca lhes agradeci pela inspiração infinita que deixaram em mim, espero que ao contar a sua história deixe bem claro o profundo agradecimento que tenho por estas pessoas, terem cruzado a minha vida.
Obrigado por me terem mostrado que há amor no meio do horror. Obrigado.
Maldade responde-se com Humanidade.
Iraque 5.0 - Entre o Ver e o Olhar
Haverá certamente opiniões diferentes. O que mais me
impressiona numa guerra, não é o que os olhos veem. O que mais me impressiona
das 10 guerras que já vivi por dentro, é algo que nunca poderá ser captado por
uma fotografia ou analisado por números de mortos, feridos, incapacitados, violações,
órfãos, e por aí fora... Esta dor que se sente na pele que eu penso que poderia
ser a minha é horrenda, mas não é o que mais me impressiona. Não são os corpos
estilhaçados, desmembrados. Não é o cheiro a corpos queimados. Não são os que
morrem à fome. Não são os que morrem por doenças que se tratam com poucos
euros. Não são os filhos a chorar as mortes dos pais, ou os pais a chorar a
morte dos filhos. O que mais me impressiona são as crianças que não choram. Que
não têm expressão. Que parecem vazias de emoções. E esta história que vivi no
norte do Iraque, aquando da guerra de Mosul, simboliza a maior dor que carrego
até hoje, e que imagino, pouca gente compreenderá. Imagino também que não vou
ter a arte de desdobrar o que sinto em palavras. Mas vou-me esforçar.
Acredito que quase tudo de importante que aprendemos na
vida, nunca é à primeira. Acredito no fenómeno de doubble hit . O primeiro golpe deixa-me atordoado e o segundo
atira-me ao chão. E para compreender qualquer fenómeno é preciso primeiro olhar,
e depois ver. Ver implica fazer um esforço para processar aquilo que nos envia
ao cérebro o nosso olhar. E a mim demorou-me algum tempo a ver esta criança.
Entre vagas de feridos, bloco operatório, cuidados
intensivos, e o tempo para sobrevivermos, nós próprios, às dores que nos
rodeavam no dia a dia, sobra pouco tempo para reflexões que depois só o tempo
as vai maturando e clareando dentro dos nossos pensamentos... Todos os dias
passávamos visita rapidamente às enfermarias para definir os tratamentos e as
re-intervenções no bloco operatório. Amputações que precisam de ser revistas,
pensos e enxertos de pele para os queimados e o que mais fosse preciso... Estas
visitas são também muitas vezes o momento em que de mais perto vemos a
humanidade do povo iraquiano. Ouvimos pedaços de histórias de vida (e de morte),
vemos os pais a cuidar dos filhos, irmãos a animarem-se entre braços partidos e
pernas ao alto. Aqui vemos os sorrisos, a esperança, a compaixão, e os
agradecimentos que nos arrepiam a alma como um choque eléctrico. Não há nada
mais bonito e que nos alimente mais o coração que um genuíno Obrigado. Nesta
curta visita da manhã, sentimos o pulso à gente.
E nesta visita matinal começou a agarrar a atenção este
rapazinho cujo nome ninguém sabe, que teria uns 5 ou 6 anos, e que fisicamente
não tinha doença nenhuma. E talvez por isso demorei tanto tempo a prestar-lhe
atenção. Foram precisos muitos golpes/olhares, até que agarrou toda a minha
atenção. Não sei bem como, mas terá sido trazido numa vaga de feridos de Mosul,
até que começaram a reparar que não tinha família, e também não falava. E por
isso o mantivemos na nossa enfermaria, algo como um caso social.

Todos os dias via esta criança durante algum tempo. Ao ver
os feridos e os amputados e os queimados, eu já não vejo a guerra, passados uns
dias. Mas nesta criança, no seu olhar eu via todos os dias a guerra bem por
dentro. Eu via o epicentro, o olho do furacão da maldade humana, e da crueldade
de quem se apodera do sofrimento dos outros para o seu umbigo. O que mais me
impressiona numa guerra, é esta dor psicológica que não se mede, mas sente-se. Porque
é que “decidiu” não falar?
Todos os dias eu via a guerra neste olhar. O que terá visto
esta criança? Como é que se trata isto? Como é que se trata estes traumas
psicológicos de miúdos e graúdos? Quanto tempo vão carregar nos seus olhares as
dores de um mundo injusto, de um mundo que não os quer ver?
O planeta sentiu-se desconfortável no sofá, quando viu uma
fotografia de uma criança síria morta de cara espetada nas areias da nossa
Europa. De alguma forma tornou-se um icon da nossa visão da guerra da Síria e
do drama dos refugiados. Mas a mim, o que me deu voltas ao estômago e lágrimas
pela cara a baixo, foi outra fotografia, de outra criança da guerra da Síria.
Uma criança, empoeirada e com manchas de sangue que não era dela, sentada
dentro de uma ambulância sem expressão. Sem lágrimas, sem dor, sem sentimentos,
sem ninguém lá dentro. Este olhar é o espelho da guerra.
Estas crianças são filhos de alguém... e no fundo, no fundo
são filhos de todos nós.
Entre o ver e o olhar. O olhar deste menino de Mosul
dizia-me o que ele tinha visto? Eu olhei para ele algum tempo até que o comecei
a ver. E quando o vi, já não conseguia olhar para outro lado.
Todos os dias eu via a guerra neste olhar. O que terá visto
esta criança?
E quem nós somos, está entre o para onde olhamos e o que
vemos.
Entre o Ver e o Olhar.
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