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Olá a todos!

De forma a ter os meus textos, vídeos, entrevistas, etc,  mais organizados, criei um novo site em www.gustavocarona.com :)

Espero que gostem de viajar por esse mundo fora!

Um Abraço

Iraque 6.0 - Maldade responde-se com Humanidade




Pela segunda vez na minha vida estive cara-a-cara com o Estado Islâmico. Mete medo, é assustador. Muitos arrepios na espinha.  A primeira vez foi na Síria em finais de 2013 que tive o desprazer de me cruzar com este grupo de pura maldade. Cruzei-me com alguns dos seus elementos no hospital onde trabalhei, mas foi acima de tudo na reacção de medo e petrificação que vi nos rostos do povo sírio, que me apercebi do espectro infinito de terror e sofrimento que fez construir a minha imagem sobre este grupo. 
Desta vez no Iraque, em Mosul, 4 anos depois, a história foi bem diferente para pior. É difícil de explicar o inexplicável, mas para contar esta história ou estas histórias é imperativo que se tente analisar como apareceu o estado Islâmico desde a geopolítica macro ao humilde indivíduo que não sabe ler nem escrever e que no fundo não teve outra opção, passando também por algumas opiniões sobre o que os une, a religião. Sei que quando chegarem ao fim desta história vão perceber um bocadinho mais e vão olhar para o mundo com mais coração. 

O Iraque é um país cuja politica é sempre extremamente explosiva. Como sabem o médio-oriente foi dividido após a 1a guerra mundial num acordo entre os franceses e os ingleses, que assim criaram fronteiras que nunca existiram, e com isso dividiram povos a seu belo prazer de uma forma artificial com graves consequências até hoje. Existem duas facções do Islão os sunitas e os xiitas (assim como no cristianismo existem os católicos e os protestantes (e outros)). A tensão entre estes dois sub-grupos do Islão é enorme. Quase toda a tensão/guerras do médio-oriente afunila nesta dicotomia. E o Iraque é o único país no mundo que tem algum equilíbrio percentual entre sunitas e xiitas, sendo cerca de 60% xiitas e 40% sunitas. Recuemos no tempo até 2003. Quando se inicia uma guerra, com a agravante que foi sob os falsos pressupostos da existência de armas químicas, para derrubar Sadam Hussein (sem dúvida um ditador terrível) que era sunita e dominava o país com mão de ferro e toda uma elite nas diferentes estruturas governamentais e privadas também composta por sunitas. Ao derrubar o regime o mundo patrocinou uma alternância de poder para os xiitas, e assim deixou desamparados todos os sunitas influentes e poderosos, intelectualmente capazes e influentes do Iraque. Nasce uma revolta, um ódio extremo, uma promessa de vingança eterna, após esta alternância de poder. Por esta altura o mundo já conhecia bem o extremismo sunita patrocinado pelos países sunitas mais influentes, Arábia Saudita e emirados e sultanatos á volta, a quem chamávamos Alqaeda. Então em 2010 (Sadam é enforcado em 2006), nasceu um grupo chamado Alqaeda no Iraque, essencialmente no norte do país onde há uma expressiva maioria de sunitas. Mais tarde também a propósito da guerra da Síria (que começa em 2011), cria-se um terreno fértil para este grupo ir além da ideologia e de ataques estratégicos, para a tomada de cidades e largas áreas de terreno essencialmente no leste da Síria e no Norte do Iraque, e assim se cria o Estado Islâmico, ou Islamic State of Iraq and Siria (ISIS), ou Daesh (“estado” em Árabe). E em Julho de 2014 acontece o que ninguém imaginaria ser possível, o Estado Islâmico conquista em poucos dias, a segunda maior cidade do Iraque com 2 milhões de habitantes e estrategicamente imensamente importante, Mosul. E do alto do minarete da mesquita mais emblemática da cidade, Al-Nuri, o seu líder Al-Baghdadi, declara o auto-proclamado Estado Islâmico, com pretensões de unir todo um mundo muçulmano num só califato. E aqui compreendemos que mexer na política interna de outros países a nosso belo prazer, faz mais mal do que bem. Abanar os ódios, exponencia-os. A criação do Estado Islâmico nasce directamente da inexplicável guerra do Iraque de 2003. Mas não só.

A religião e o poder sempre se imiscuíram. Toda a história das grandes religiões se confunde com a forma como exerceram poder sobre as pessoas. Eu tenho um respeito enorme por todas as religiões e até admiração pela forma como conseguiram agregar multidões, povos, países e continentes inteiros, à volta da reflexão sobre o certo e o errado. Na minha óptica enquanto ateu, as religiões tinham tudo para ser algo de maravilhoso, não fosse o “pequeno” pormenor que são sustentadas numa mentira. E esta influência que a religião tem sobre as pessoas depende da forma de como é manobrada pelos seus actores principais, por aqueles que se colocam numa posição de lideres de opinião e subsequentemente de controladores de acções dos crentes. Na minha muito humilde opinião, acreditar na reencarnação de humanos em animais, acreditar que Jesus é filho de deus, ou que Maomé falou com Alah dentro de uma gruta, ou deuses com trombas de elefante, são tudo histórias de encantar. Talvez na sua génese o Islão interfira mais na política de toda uma sociedade do que as suas principais rivais. Ainda assim o Islão difunde uma mensagem absolutamente humana e inspiradora de humildade, de cooperação, de bondade, que eu aprendi a admirar à semelhança da minha admiração por outras religiões. O grande problema das religiões reside nos dogmas e nas certezas absolutas. É o primeiro passo para todo um fim. Quando as pessoas acreditam cegamente, são manietadas, são moldadas à imagem de quem manda, e são persuadidas com muita força a fazer o que quer que seja. Porque vem de deus, e como tal nada se questiona. E é esta também a simples história do Estado Islâmico. Num país em desordem, com gente poderosa sedenta de vontade de regressar ao poder, o factor unificador é a palavra de deus, e a criação de um inimigo comum. A injustiça, a revolta, a pobreza, a humilhação, levam uma franja da população sunita a acreditar que a palavra de deus, vem deste grupo de radicais oportunistas, que rapidamente através dos seus dogmas de fé recolheram o apoio de gente suficiente para criar este poderosíssimo grupo que se vendia como lobo em pele de cordeiro. O extremismo, o fanatismo, o radicalismo vem do oportunismo de gente má, que usa pessoas de visão curta, sustentados nas suas certezas absolutas. Nos seus dogmas de fé. Que neste caso vêm das vozes que Maomé ouviu sozinho numa gruta.

Quem é o individuo que se junta ao Estado Islâmico? Segundo se sabe o seu líder Al-Baghdadi (agora morto) esteve vários anos preso, numa prisão militar americana, dizem que seria até uma espécie de informador para os americanos, mas certamente estava a camuflar a sua raiva e humilhação. A ele se juntam poderosos e gananciosos, revoltados e frustrados, com o apoio dos quadros sunitas que até há pouco tempo dominavam todo o Iraque. Mas eu penso que a reflexão mais importante está no controlo das massas, como é que se conquista o coração das pessoas cometendo crimes hediondos, sabendo que as pessoas na sua génese são boas. O comum dos mortais iraquianos foi persuadido com o radicalismo da palavra de deus, e uma arma na cabeça. São duas forças difíceis de questionar. Difíceis de resistir. E assim compreendem que entre os militantes e os militares do Estado Islâmico e o comum dos Iraquianos que por uma questão de sobrevivência e ignorância se submeteu ao jugo desta gente horrível e foi participante, facilitadora e conivente com todas as atrocidades deste grupo, mas eles próprios vítimas de uma lavagem cerebral e de uma coação moral/divina e ameaça física muito real, da sua pele e dos seus. 
Aquilo que o Estado Islâmico fez não caberia em todos os livros que já foram escritos até hoje. E eu poderia escrever textos e textos, e continuaria a ser uma mera introdução ao tema. Mataram todos os que consideravam infiéis, desde xiitas, cristãos, yazidis, kurdos, e tudo mais o que encontravam pela frente. Escravizaram pessoas, violaram enormes quantidades de mulheres que usaram como objectos sexuais, torturam de todas as formas que a nossa imaginação possa encontrar, queimaram casas com pessoas lá dentro, executaram pessoas em praça pública para aterrorizar e entreter as multidões que eles obrigavam a assistir. As histórias que me chegavam quer pelos meus companheiros de trabalho iraquianos que tinham vivido sobre o domínio do Estado Islâmico, quer pelos doentes que ainda tremiam de medo eram arrepiantes. É o que acontece quando deixamos crescer o egoísmo e a maldade. 

O anoitecer era uma fase maravilhosa do dia. O calor abrandava. Abrandava apenas, mas já era tão bom. Os iraquianos que estavam a jejuar durante o ramadão animavam-se com o Iftar (a refeição que quebra o jejum diurno) e normalmente encontrávamos aqui um momento para viajarmos através das conversas de mundo e do ali mesmo. Um dos médicos que trabalhava comigo contava-me algumas histórias de horror do Estado Islâmico. Uma delas tinha uns dias. Disse-me que estava sentado à conversa com um amigo também médico no lado leste de Mosul (recentemente libertado), e que este foi assassinado por um sniper que disparou da outra margem do rio (Mosul oeste) que estava ainda dominada pelo Estado Islâmico. Disse-me que era frequente eliminar profissionais de saúde marcando uma posição sobre o terror que impunham em todos que estivessem contra eles. Retirar a saúde a um povo, é retirar-lhes a esperança de viver. Os feridos e os familiares que nos chegavam ao hospital por vagas, à medida que a cidade de Mosul ia sendo libertada quarteirão a quarteirão, todos referiam histórias de familiares que em algum momento tentaram fugir e foram abatidos pelas costas na fuga, e os seus corpos ali ficavam no meio da rua, pois ninguém se atrevia a aproximar-se das linhas que delimitavam a fronteira deste conflito. 

Um mundo de ódios, um mar de maldade, todo um infinito de atrocidades. E a grande maioria da população que limitou-se a sofrer, quando se libertarva deste inferno, encontrava de imediato um enorme alívio mas também o desespero de vidas e vidas perdidas para trás que deixarão cicatrizes até os tempos serem tempos, e um ódio reactivo a toda maldade que lhes foi feita. Várias reportagens jornalísticas deram conta das atrocidades cometidas pela exército iraquiano na reconquista do norte do Iraque. Fizeram igual ou pior que o Estado Islâmico a todos que consideravam culpados, em julgamentos instantâneos. Porque o grande problema aqui se põe. Quem são os verdadeiramente culpados? Porque entre os que ajudaram, os simpatizantes, os que alguma vez colaboraram, os que tinham primos, os que fizeram algum negócio com o Estado Islâmico, etc, etc. Quem são os verdadeiros culpados? Foi uma matança desprovida de critério, e menos ainda de justiça. Foi-se torturando e matando ao sabor de quem tinha a arma na mão.



Perto do hospital onde eu estava a trabalhar, havia uma prisão para todos os elementos pertencentes, ou amigos, ou suspeitos do Estado Islâmico. Talvez fosse melhor a morte. As condições de vida ou falta delas eram alucinantes. O cheiro a podridão era agoniante. Era uma espécie de pena de morte, sem premir o gatilho. O que esperar dum país em guerra, que não tem dinheiro para dar de comer ao seu povo, a contas com a pior batalha da história contemporânea, e com toda uma quantidade de gente cuja culpa era extremamente difícil de dissecar e mais ainda de perdoar...?

Várias vezes recebemos presos que estavam gravemente doentes no nosso hospital. É aqui que todas as questões se levantam. A ética a moral, a deontologia, e a bipolaridade de emoções que esta questão nos levantava. Quem é que quer salvar estes assassinos? Assassinos, supostos-assassinos, simpatizantes de assassinos, obrigados a ser assassinos... sei lá. O que é que eu sei? Tive vários destes doentes sob a minha responsabilidade porque nos chegavam ao hospital em estado crítico, quase a morrer. O quadro clínico era semelhante entre eles. As faltas de condição de higiene, e alimentação paupérrima levava-os a um extremo de franqueza, desnutrição e desidratação e com gastroenterites á mistura, estavam às portas da morte. Eu continha as lágrimas para os ver como pessoas depois de dias e dias a ouvir histórias de horror. Olhava-os nos olhos e em silêncio perguntava-lhes: “quem és tu?” ... mas desta pergunta nascia em mim outra pergunta em silêncio: “quem sou eu?” ... Entre lágrimas escondidas esforcei-me muito para lhes salvar a vida. Noites perdidas a examiná-los e reavaliá-los até que recuperassem forças para voltar para a prisão de onde talvez nunca saíram. Mas o que também é óbvio, é que eu sou um turista. E para eles? E para os iraquianos? Eu tive conversas e interacções com alguns dos enfermeiros dos cuidados intensivos cuja intensidade e a profundidade, dói. Dói muito. Porque não foi a minha família que foi torturada, violada e assassinada por este grupo de ódio. Foram as deles. Todos eles. Não havia ali ninguém sem uma história de sangue muito directa. 

Cada vez que recebia um destes presos em estado crítico, eu sentava-me com os enfermeiros à conversa sobre estes dilemas éticos. E diziam-lhes... “eu sei que isto é complicado para vocês... eu nem me atrevo a imaginar o que vocês devem estar a sentir...” ... eu ainda acrescentava... “ se vocês não conseguirem cuidar destes homens, eu percebo, eu juro que eu percebo...” ... Eu via nos olhos deles lágrimas raiadas de sangue, mas várias vezes me repetiam... “Eles são seres humanos... nós vamos fazer o nosso trabalho” ... Eu não cabia em mim, em tanto orgulho, em tanta admiração, em tanta inspiração, em tanta humanidade... Foi talvez a maior lição que eu aprendi até hoje... Viver inspirado não tem preço...

Os enfermeiros tinham que lhes dar banho, limpar a cama cheia de diarreia, dar-lhes a medicação, dar-lhes de beber e de comer, e tudo mais... a pessoas, que pintaram a tons de dor toda a história das suas vidas, dos seus pais, dos seus irmãos, dos seus filhos... Foi a coisa mais bonita que eu vi até hoje. Sentia calafrios pelo corpo todo quando os via a a fazer cuidados de enfermagem numa interacção que os devia estar a destruir por dentro, mas certamente percebiam que a solução para o seu país estava também nestas pequenas vitórias heroicas... Eu dava a vida por eles, porque um ensinamento de tanto amor no meio do horror, não tem preço e tem um valor eterno e inestimável. 

Eu sabia que a tarefa ia ser dura. Quando podia ia ajudando ou vendo pelo canto do olho como os estavam a tratar. Era duríssimo. Nunca vi uma troca de palavras para além do mínimo. Nunca vi um sorriso, nem posso dizer que tenha visto compaixão, embora ela estivesse lá. Vi um trabalho sério, e cuidado. Vi que à maldade se responde com humanidade. 

No meio de tantos horrores, vemos também o melhor do ser humano. Nunca lhes agradeci pela inspiração infinita que deixaram em mim, espero que ao contar a sua história deixe bem claro o profundo agradecimento que tenho por estas pessoas, terem cruzado a minha vida.

Obrigado por me terem mostrado que há amor no meio do horror. Obrigado.

Maldade responde-se com Humanidade.

Iraque 5.0 - Entre o Ver e o Olhar



Haverá certamente opiniões diferentes. O que mais me impressiona numa guerra, não é o que os olhos veem. O que mais me impressiona das 10 guerras que já vivi por dentro, é algo que nunca poderá ser captado por uma fotografia ou analisado por números de mortos, feridos, incapacitados, violações, órfãos, e por aí fora... Esta dor que se sente na pele que eu penso que poderia ser a minha é horrenda, mas não é o que mais me impressiona. Não são os corpos estilhaçados, desmembrados. Não é o cheiro a corpos queimados. Não são os que morrem à fome. Não são os que morrem por doenças que se tratam com poucos euros. Não são os filhos a chorar as mortes dos pais, ou os pais a chorar a morte dos filhos. O que mais me impressiona são as crianças que não choram. Que não têm expressão. Que parecem vazias de emoções. E esta história que vivi no norte do Iraque, aquando da guerra de Mosul, simboliza a maior dor que carrego até hoje, e que imagino, pouca gente compreenderá. Imagino também que não vou ter a arte de desdobrar o que sinto em palavras. Mas vou-me esforçar.

Acredito que quase tudo de importante que aprendemos na vida, nunca é à primeira. Acredito no fenómeno de doubble hit . O primeiro golpe deixa-me atordoado e o segundo atira-me ao chão. E para compreender qualquer fenómeno é preciso primeiro olhar, e depois ver. Ver implica fazer um esforço para processar aquilo que nos envia ao cérebro o nosso olhar. E a mim demorou-me algum tempo a ver esta criança.

Entre vagas de feridos, bloco operatório, cuidados intensivos, e o tempo para sobrevivermos, nós próprios, às dores que nos rodeavam no dia a dia, sobra pouco tempo para reflexões que depois só o tempo as vai maturando e clareando dentro dos nossos pensamentos... Todos os dias passávamos visita rapidamente às enfermarias para definir os tratamentos e as re-intervenções no bloco operatório. Amputações que precisam de ser revistas, pensos e enxertos de pele para os queimados e o que mais fosse preciso... Estas visitas são também muitas vezes o momento em que de mais perto vemos a humanidade do povo iraquiano. Ouvimos pedaços de histórias de vida (e de morte), vemos os pais a cuidar dos filhos, irmãos a animarem-se entre braços partidos e pernas ao alto. Aqui vemos os sorrisos, a esperança, a compaixão, e os agradecimentos que nos arrepiam a alma como um choque eléctrico. Não há nada mais bonito e que nos alimente mais o coração que um genuíno Obrigado. Nesta curta visita da manhã, sentimos o pulso à gente.

E nesta visita matinal começou a agarrar a atenção este rapazinho cujo nome ninguém sabe, que teria uns 5 ou 6 anos, e que fisicamente não tinha doença nenhuma. E talvez por isso demorei tanto tempo a prestar-lhe atenção. Foram precisos muitos golpes/olhares, até que agarrou toda a minha atenção. Não sei bem como, mas terá sido trazido numa vaga de feridos de Mosul, até que começaram a reparar que não tinha família, e também não falava. E por isso o mantivemos na nossa enfermaria, algo como um caso social.

Estava sempre deitado na cama, presumo que se alimentava por instinto, e alguém queria que ele parecesse uma criança colocando-lhe peluches e brinquedos que ele segurava sem os ver. O olhar dele fazia-me ver a guerra como se naquele vazio espelhasse todos os males do ser humano. Ninguém sabe o que é que ele viu. Ninguém sabe o que ele sofreu. Ninguém sabe porque é que ele não fala. Mas todos imaginamos os porquês deste estado de “locked-in”. Este olhar dessensibilizou-se, desumanizou-se, perdeu-se e talvez para sempre... O que é que leva uma criança a deixar de sentir?
Todos os dias via esta criança durante algum tempo. Ao ver os feridos e os amputados e os queimados, eu já não vejo a guerra, passados uns dias. Mas nesta criança, no seu olhar eu via todos os dias a guerra bem por dentro. Eu via o epicentro, o olho do furacão da maldade humana, e da crueldade de quem se apodera do sofrimento dos outros para o seu umbigo. O que mais me impressiona numa guerra, é esta dor psicológica que não se mede, mas sente-se. Porque é que “decidiu” não falar?

Todos os dias eu via a guerra neste olhar. O que terá visto esta criança? Como é que se trata isto? Como é que se trata estes traumas psicológicos de miúdos e graúdos? Quanto tempo vão carregar nos seus olhares as dores de um mundo injusto, de um mundo que não os quer ver?

O planeta sentiu-se desconfortável no sofá, quando viu uma fotografia de uma criança síria morta de cara espetada nas areias da nossa Europa. De alguma forma tornou-se um icon da nossa visão da guerra da Síria e do drama dos refugiados. Mas a mim, o que me deu voltas ao estômago e lágrimas pela cara a baixo, foi outra fotografia, de outra criança da guerra da Síria. Uma criança, empoeirada e com manchas de sangue que não era dela, sentada dentro de uma ambulância sem expressão. Sem lágrimas, sem dor, sem sentimentos, sem ninguém lá dentro. Este olhar é o espelho da guerra.

Estas crianças são filhos de alguém... e no fundo, no fundo são filhos de todos nós.

Entre o ver e o olhar. O olhar deste menino de Mosul dizia-me o que ele tinha visto? Eu olhei para ele algum tempo até que o comecei a ver. E quando o vi, já não conseguia olhar para outro lado.

Todos os dias eu via a guerra neste olhar. O que terá visto esta criança?

E quem nós somos, está entre o para onde olhamos e o que vemos.

Entre o Ver e o Olhar.


Iraque 4.0 - Do Humano para o Desumano




Saltitamos entre o humano e o desumano. Entre o corpo e a pessoa. Entre o ser vivo e a alma. Precisamos de ser desumanos para fazer esta profissão sem tremer, precisamos de olhar para o corpo como uma máquina, um desafio, com uma frieza robótica... Se deixamos entrar as emoções e vemos o humano, e vemos a pessoa, vai ser difícil executar tarefas num banho de lágrimas... Porque é isso, que sinto quando deixo entrar as emoções, um choro compulsivo que se auto-alimenta, que ganha vida própria. E eu não posso deixar entrar...

E nesta missão em Mosul, no Iraque foi essa pressão que já senti muitas vezes, mas nunca tantas vezes e nunca com esta intensidade. Preciso de ser um robot para ser médico nestas situações extremas com a vida e a morte entre os dedos como gelatina, mas são as emoções que me fazem querer lá estar, é o coração que me diz que este é o lugar do mundo onde quero estar. Porque fingir que não existe, é uma cobardia, é uma hipocrisia, é uma maldade. E ninguém quer ser má pessoa.
Receber levas de feridos era o normal. É um normal que ultrapassa, todos os níveis de anormalidade, é uma aberração, é feroz a qualquer alma, mas para nós é o normal. Por vezes sabíamos de antemão, outras vezes nem por isso, e sinceramente para este tipo de missão/hospital era quase indiferente. Era normal. Feridos graves a entrar pelas nossas portas do serviço de urgência. As bombas traduzem-se em mortos e em feridos. Assim é a guerra. Os que me morrem no local fazem parte de outras histórias que eu mal conheço, os que estão entre a vida e a morte são a minha história. São as vozes que movem a minha escrita.

O nosso hospital, é o mais próximo que eu já estive de um milagre. A uns escassos kms da pior batalha que há memória, no meio de um descampado, murado a toda a volta, porque a segurança é volátil, encontrava-se um conjunto de tendas que vistas de fora eram incaracterísticas, despidas de qualquer interesse, mas por dentro fazia-se magia. Barricadas de betão à porta para inibir os bombistas suicidas em veículos, entrava-se por uma pequena porta que nos dirigia logo para o Serviço de Urgência, com uma tenda logo à direita de descontaminação para o caso de se usarem armas químicas. Cada tenda tem o seu papel, neste jogo de salvar vidas. Laboratório, Raio-X, Serviço de Urgência, Bloco Operatório, Cuidados Intensivos, e diversas tendas de enfermarias gerais. Também tínhamos uma área do hospital que nasceu nos entretantos por necessidade, que era um centro de nutrição para crianças. A fome em Mosul conseguiu matar ainda mais que as bombas. E as crianças pequeninas eram as mais vulneráveis. Tínhamos dezenas de crianças desnutridas todos os dias, mas estavam longe do meu espectro de acção. Assim como os centros de saúde a quem dávamos apoio para diferentes cuidados de medicina geral. Mas assim estávamos, entre tendas que se ergueram num ápice para fazer de hospital, durante esta página de sangue da nossa história.

Eu estava quase sempre no bloco operatório, mas com frequência corria entre a tenda do serviço de urgência e a tenda dos cuidados intensivos, dependo dos ciclos do dia e das vagas de feridos que recebíamos.

Neste dia fomos avisados que íamos receber vários feridos, inclusive discriminaram os níveis de gravidade... Nunca funciona na perfeição esta avaliação prévia, mas ficávamos com uma ideia. É incrível que enquanto esperamos pelos feridos, o ambiente é muito tranquilo, relaxado e até divertido. A equipa de expatriados é muito experiente, e os locais estavam há meses nisto. E como em tudo, o instinto de sobrevivência, obriga-nos a reagir com normalidade à mais atroz das anormalidades. Tranquilamente bebe-se café, fuma-se cigarros e conta-se piadas... sabendo que estamos a minutos de receber corpos ensanguentados. É normal. E o humor é das armas mais poderosas para reagirmos às adversidades extremas. É uma boia de salvamento no nosso mar de pensamentos tristes. Amor em tempos de guerra, já deu livros e grandes histórias... faz falta o mesmo sobre o Humor em tempos de guerra... Talvez um dia escreva esse livro se sentir que tenho arte para tal, porque não é fácil transcrever o humor...

Começamos a ouvir as sirenes. Está tudo a postos já de luvas calçadas. Os maqueiros correm como se fossem as olimpíadas, os responsáveis pela segurança observam o potencial de ocorrência de fenómenos estranhos e os feridos começam a ser colocados nas macas do serviço de urgência. A equipa está bem oleada, mas os corações aceleram. Eu nesta fase pareço um observador. Não toco em nenhum doente. Apenas observo. O prejuízo de me “agarrar” a um doente é não perceber o panorama geral de todos os feridos. Para mim é obrigatório tirar uma fotografia mental de toda a situação. Há um que entra cadáver. É este o momento em que eu deixo de ver pessoas e vejo corpos. Vejo seres vivos. Vejo tudo com uma frieza doentia. Neste momento estou desumano. Cruzo o meu olhar com os olhares hesitantes dos que estão à volta do cadáver, num burburinho desconfortável, em que eu percebo pelos seus gestos que se preparam para começar a reanimar. Eu aceno-lhes com a cabeça em sinal de discórdia e tranquiliza-me que tenham ficado confortáveis com a minha decisão. Para mim naquele momento é apenas um problema a menos para eu gerir. Tínhamos duas equipas cirúrgicas de expatriados, com dois cirurgiões e dois anestesistas. E a a responsabilidade das decisões de fundo alternava a cada 24hrs, porque era essa também a noite que íamos ficar no hospital mal dormidos. Uma em cada duas. É duro. E hoje sou eu.

Recebemos 7 ou 8 feridos, mas só há uma que me preocupa no imediato. Eu fico com esse. É um rapaz de 16 ou 17 anos. Tem o corpo cheio de estilhaços. É impressionante quando lhe começamos a tirar a roupa toda ensanguentada e vemos estilhaços dos pés às cabeça... pequenas feridas muitas delas punctiformes que lhe tatuam o corpo todo, cara inclusive. Este tipo de lesões são muito traiçoeiras para um médico, porque os espectro de possibilidades é tão grande como a nossa imaginação... Alguns destes estilhaços ficaram apenas na pele e não causam qualquer perigo, outros penetraram o torax ou o abdómen, causando lesões absolutamente imprevisíveis. Os sinais vitais (frequência cardíaca, respiratória, tensão arterial, etc) apontam para perdas sanguíneas muito significativas. Isto é como um jogo, como uma charada. Descobrir de onde está a sangrar. Dos diferentes locais por onde sangra, perceber qual o pior, e aferir se os locais por onde sangra se são passíveis de ser estanques ou nem por isso. O “nem por isso” é a morte.

Existe uma avaliação muito sistemática para todas as vitimas de trauma e a experiência ajuda-nos a fazer isto muito rápido e com chavetas de organização mental muito bem estruturadas. Que neste caso são adaptadas às condições que temos. Por exemplo, um traumatismo craniano grave, não tendo TAC, nem neurocirurgia, nem capacidade de ventilar um doente no pós-operatório... é um doente que nas condições que temos, vai morrer. No meu mundo, tentaria salvá-lo.

Não é o caso. Este doente está é a sangrar, eu e a restante equipa temos é de descobrir de onde e o como parar a sangria. Rapidamente pego no ecógrafo que é a minha arma favorita, e vejo que está a sangrar na cavidade torácica e na cavidade abdominal. Siga. É correr para o bloco. Nestes casos o Rx, também ajuda o cirurgião a ver, onde estão os estilhaços dentro das cavidades, e imaginar durante a cirurgia o trajecto por onde foram penetrando o corpo deste rapaz. A equipa está toda bem oleada. Sai um alerta ao laboratório para a necessidade de múltiplas transfusões de sangue, que me chegam às mãos em minutos, assim como a equipa do bloco operatório que se prepara rapidamente porque tem visto estas situações vezes sem conta... por dia! Os iraquianos com quem trabalhei são absolutamente incríveis. Rápidos, competentes, expeditos e proactivos, e de sorriso na cara. Apesar de, muitos profissionais de saúde terem sido raptados pelo Estado Islâmico para seu proveito, ou fugiram da guerra para bem longe... os que ficaram são incríveis e trabalham com uma motivação tão intensa que por vezes me trazia as lágrimas aos olhos de emoção... Quando por vezes lhes agradecia pela ajuda, ou pelo fantástico trabalho, ou por terem ficado horas a mais, as respostas eram sempre do género: “nós é que agradecemos... estamos apenas a tentar salvar o nosso país!” ... e é nestes momentos que tenho a certeza que o que nós estamos a fazer é muito maior que a minha vida, é muito maior do que a minha alma sonhadora possa imaginar...

Entramos rapidamente com o rapaz na tenda do bloco operatório. A equipa comunica, organiza-se, articula-se e sem demoras eu estou a anestesiar o doente, a ligá-lo ao ventilador, e coloco-lhe um dreno torácico de cada lado, enquanto a equipa cirúrgica se prepara para de bisturi na mão lhe abrir a barriga. As hemorragias da cavidade torácica, a que chamamos hemotórax, em súmula tratam-se colocando um dreno entre as duas pleuras que tem como objectivo expandir os pulmões e promover o fim da hemorragia. Se sangrar pelo dreno em abundância, começamos a entrar no “nem por isso”, porque abrir o torax envolve um leque de recursos que não temos.
O abdómen é de leitura mais complexa e as possibilidades são diversas. O cirurgião abre a cavidade abdominal a meio com uma incisão grande desde as costelas até à bacia. E a partir daí tenta perceber de onde vem o sangue.

E é aqui que estamos. O cirurgião abre-lhe a barriga sai sangue em grande quantidade, e o rapaz quase que morre. A tensão arterial está a descer vertiginosamente até que o cirurgião encontra a fonte da hemorragia, que é o baço. Mãos muito treinadas, rapidamente clampa o feixe vascular que irriga o baço, e os sinais vitais começam a melhorar. As transfusões a entrar, o cirurgião inspeciona com mais calma toda a cavidade abdominal para ver se há algo mais a corrigir, e eu “entretido” em trazer o equilíbrio fisiológico que este rapaz precisa, para que todos os seus orgãos, de um corpo que esteve às portas da morte, recuperem rapidamente... Começamos a trocar os primeiros sorrisos de vitória ainda tímidos... Os drenos torácicos fizeram o seu papel e tudo tranquilo nesse capítulo. O cirurgião já sacou o baço cá para fora e está contente com a sua revisão de todos os locais de hemorragia em potencial, a hemoglobina está estável, os sinais vitais em vias de normalizarem... e a equipa começa a respirar com outra tranquilidade... Resolvemos a charada. Ganhamos o jogo.
Como estava com a situação controlada, enquanto o cirurgião terminava a cirurgia, eu resolvi sair do bloco operatório para ver como estavam os doentes nos Cuidados Intensivos, que era na tenda ao lado. Eram 10 metros num passadiço de cimento.

Quando saio da tenda do bloco que tem ar condicionado, apercebo-me que a manhã avançou e levo com uma onda de calor, como se tivesse a abrir a porta do forno. São umas 10.30/11.00 da manhã e já estão quase 50 graus. Parece que sou agredido por este bafo de calor, e para minha surpresa sou imediatamente encarado por um homem, cuja a cara eu reconheço por o ter visto com ares de preocupação extrema no serviço de urgência... é o pai do rapaz. Com o shalwar kameez tradicional em tons de castanho, de lágrimas nos olhos e as mãos juntas embrulhadas num fio de contas que os muçulmanos por vezes usam para as suas orações (mishaba), este homem dirige-se a mim em Árabe, e embora eu não tenha percebido nada do que ele me disse, percebo que me pergunta pelo seu filho. Este é o momento em que o corpo daquele rapaz passa a ser uma pessoa. É o click do desumano para o humano. Mas este foi muito forte, inesperado e apanhou-me totalmente de surpresa... Num microsegundo olho à minha volta para ver se alguém me pode ajudar na tradução, mas nada. Estou sozinho, de frente para o pai que me olha apreensivo, e o que me ocorre é usar das poucas palavras que sei dizer em Árabe, e juntamente com o polegar para cima digo-lhe “Tamam”, que significa “Tudo bem”, apontando para o a tenda do bloco... O homem profere várias expressões que envolvem Allah, e ajoelha-se aos meus pés abraçando-me as pernas a chorar... Claro que prontamente eu ajudo-o a levantar, movimento este que imprevisivelmente termina num abraço... Eu tento segurar, mas não consigo e caiem-me as lágrimas ao mesmo tempo em que as lágrimas do pai do rapaz já se transformam em sorrisos...

Nunca tinha sentido tanta intensidade nesta passagem do ser vivo para a sua alma, do corpo para a pessoa, do desumano para o humano... Foi dos momentos mais bonitos da minha vida...

Precisamos de ser muito frios para que a ciência nos domine nos momentos de maior adrenalina no meio de uma guerra terrível, mas é quando deixamos entrar as emoções que percebemos porque é que ali estamos, e porque é que não imagino a minha vida sem estar ali. E entenda-se que o “ali”, é apenas do lado dos que fazem a coisa certa, que pode ser feita em qualquer parte do mundo, a qualquer momento...

Quando penso neste abraço e na alegria deste pai, por o seu filho não ter sido mais para a estatística numa guerra que matou milhares de rapazes como este, e deixou milhares de pais e mães de joelhos a chorar sem se levantarem para um abraço... cresce em mim um sentimento que é simplesmente mágico.... Uma mistura do poder das pequenas coisas, com a felicidade que nos invade por ajudar quem precisa, e ainda a energia que nos move quando sabemos que lutamos pelo que está certo.


Do humano para o desumano... mas sempre com volta para o humano. Sempre!