A Bonita História de Gobegnu - Parte 1


(É incrível, quando estamos a virar a casa do avesso ou a tentar que ela volte a ter alguma espécie de arrumação, as pérolas históricas que encontramos e relemos…. algumas delas muito dolorosas, mas sobre essas acho que não tenho a coragem de escrever…. Mas esta história, vale a pena, faz me reviver uma pessoa linda, e um sítio fantástico. Lembro-me perfeitamente de estar em Arusha na Tanzania, a escrever estes gatafunhos que agora encontrei sobre esta história fantástica, antes de ir sozinho para um inesquecível Safari…. bons tempos! E agora então transcrevo esta história inacabada ( não sei porquê) que tentarei acabar hoje.)

Chego a Lalibela no dia 30 de Outubro, véspera do meu aniversário de 29 anos. Lalibela, este incrível sítio no norte da Etiópia, estará provavelmente na lista dos locais mais impressionantes deste planeta. No meio duma lindíssima paisagem de montanhas, encontram-se as igrejas escavadas nas rochas, há cerca de 800 a 1000 anos, a mando do rei que mais tarde veio a dar o nome a esta vila/cidade. O primeiro europeu a pôr os olhos nestas magníficas construções terá sido um padre português de nome Francisco Alves, no século XVI, que relata nos seus escritos de viagens que não poderia descrever o que estava a ver, para não correr o risco de ser tomado como mentiroso....

Estou eu então, neste local super especial pela sua localização nas montanhas, pela sua riqueza histórica e sendo-se ou não crente, envolto numa espiritualidade que toca a todos.

Entro numa pequena lojinha, dentro de uma espécie de contentor, para ir à internet quando conheço a dona desta mesma loja..... Gobegnu, uma linda rapariga de 27 anos com um sorriso por demais acolhedor, que muito gesticulava e emitia uns sons totalmente incompreensíveis..... de imediato um amigo dela que estava na loja me diz que esta jovem é surda! Como médico, infelizmente já muito habituado ao sofrimento dos outros, não me impressiono mas obviamente que fico tocado.

Enquanto tentava ler os meus emails, nesta internet extremamente lenta, a Gobegnu por gestos e sons e com a ajuda do tal amigo conversa comigo e de alguma forma a comunicação é possível. Estando eu de calções e sapatilhas com ar desportista, ela pergunta-me se eu corro ou se gosto de correr, e eu de imediato respondo que sim. Pergunta estranha, mas o amigo explica-me que a Gobegnu é uma excelente atleta, sendo campeã da região norte e 2ª da Etiópia dos 1500 metros. Não percebendo muito destas modalidades, num país como a Etiópia com um sem número de campeões olímpicos, fico obviamente impressionado.
Conversa puxa conversa, sempre de uma forma muito pouco usual para mim, ela pergunta-me se eu quero correr com ela no dia seguinte..... Estando Lalibela a uma altitude de quase 3000 metros e num terreno muito acidentado, cheio de subidas e descidas, eu tento desde logo desculpar-me dizendo que estou habituado a correr à beira mar, a 0 metros de altitude e num terreno totalmente plano.

Mas respondo que sim, que seria um enorme prazer no dia dos meus anos partilhar esta corrida, com esta rapariga que me dava muitos sinais de ser um ser humano fora do normal.

31 de Outubro de 2009, achava eu que tinha combinado às 7:00 da manhã, quando alguém bate à porta do quarto do meu hotel, às 6:00. Dentro da cama pergunto: “quem é?” e não obtenho nenhuma resposta, ou não fosse ela surda. Vou à porta totalmente ensonado depois de ouvir pela segunda vez alguém bater à porta e vejo esta linda rapariga com o tal sorriso que mais uma vez me ilumina o coração e no seu traje de atleta, onde claramente dá para ver que aquelas pernas já correram muitos Kms. Tendo em conta que a comunicação era obviamente limitada entre nós, enquanto bocejava apenas lhe faço sinais dizendo que precisava de 5 minutos. E é assim que começo o meu dia de anos, na mística cidade de Lalibela, com a Gobegnu às 6:00 a sorrir para mim e pronta para me “matar” neste jogging matinal.

Lavo os dentes e a cara, ponho uns calções e umas sapatilhas e aí vou eu. Como muitos outros sítios em África, a vida para muita gente começa bem cedo com o nascer do sol e é lindo ver toda esta gente nos primeiros raios de sol. Talvez de especial na Etiópia e muito positivo na minha opinião é ver que muita gente faz desporto logo pela manhã.

Tal como combinado, o objectivo era evitar muitas subidas e descidas, o que era obviamente impossível. É incrível ver a gente, ver o povo bem de perto, olhá-los bem nos olhos enquanto o tempo vai passando e as pernas vão aguentando. Ver o sol nascer por trás das montanhas com mais de 3500 metros e contemplar esta paisagem única enquanto controlava a respiração. Íamos comunicando por sinais coisas simples sobre o que víamos e sobre o ritmo da corrida enquanto a Gobegnu me dava conselhos sobre a respiração. Após 1 hora desta que terá sido provavelmente a corrida mais incrível da minha vida, cheguei ao fim claramente exausto e com dores por todo o corpo e com a certeza de que esta minha nova amiga correu a um ritmo bastante mais lento que o seu habitual.


Depois de sozinho visitar pela segunda vez as espectaculares igrejas de Lalibela e ter passado umas horas bem espirituais e com muita introspecção no meu dia de anos, fui novamente à Lojinha da Gobegnu onde conheci a sua mãe que sabendo um pouco de inglês me explicou que a sua filha pelo que eu percebi terá tido uma infecção com 2 anos de idade que lhe causou a surdez para a vida.

Não sabendo como festejar o meu dia de anos, resolvo convidar a Gobegnu para jantar comigo. Quase sempre no meu dia de anos estou rodeado de muita gente, gente que conheço há muito tempo, família e amigos de quem eu gosto muito e que eu sei também que gostam de mim. Para muita gente o dia de anos não acarreta demasiada importância, mas eu faço parte do grupo de gente que gosta muito do seu dia de anos e que lhe atribui um grande simbolismo. Gosto muito de ter gente à minha volta, de festa, de risos, de muitos copos e diversão. 

Mas desta vez foi muito diferente, muito calmo, sem ninguém que esteja realmente ligado a mim e com esta rapariga super especial, mas com quem a comunicação tinha enormes barreiras. Ela lia muito bem os lábios na sua língua (Amarihgna) e conseguia compreender lendo os lábios algumas palavras em inglês, mas quando eu escrevi num papel em inglês, apercebi-me que o seu inglês era extremamente limitado. Restava-nos os gestos! Não sabendo eu nada sobre linguagem gestual, intuitivamente algumas mensagens conseguimos passar um para o outro. E assim foi o meu jantar de anos, recebendo também durante o dia alguns telefonemas daqueles que eu tanto gosto e de quem tanta falta sentia e ainda sinto. Que dia de anos tão diferente e tão inesperado....

No hotel onde jantei com a Gobegnu, tive ainda tempo para ouvir a típica música do norte da Etiópia com as suas extremamente particulares danças com movimentos principalmente dos ombros, mas também da cabeça e do pescoço... incríveis, difíceis de descrever e bem mais difíceis de imitar. Como quase todas as outras pessoas do norte da Etiópia também a Gobegnu sabia fazer estes incríveis movimentos com os ombros e com a cabeça. Mas o que de imediato me enchia a cabeça de perguntas era: Como é que se pode dançar sem ouvir a música? Como é que se pode sentir o ritmo sem ouvir? Não consigo de forma alguma responder a estas perguntas, mas o que é facto é que a Gobegnu conseguia e quem não soubesse jamais imaginaria que ela não conseguia ouvir a música ao sabor da qual estava a dançar....

(fim de escritos de 2009, em Arusha....mas história ainda por acabar)



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