Rep. Centro-Africana 11.0 - Delícias do Céu


A experiência africana é um mundo de descobertas e surpresas. E este coração africano que é a Rep. Centro-Africana simboliza bem o espectro de magia e aventuras com que nos deparamos. Soa a cliché, mas tudo é diferente. A cor da terra alaranjada, o céu límpido que nos desenha pores-do-sol de cores inimagináveis, os tons de verde, o sabor da fruta, a intensidade das tempestades... É uma experiência a 360º de cores, cheiros e sabores que nos fazem levitar em sensações completamente virgens, quase todas elas maravilhosas... E há vida, há muita vida. Os lagartos com cores exóticas que se passeavam pela maternidade de Bangui, as baratas gigantes que pareciam transgénicas no quarto de banho da nossa casa, e outros insectos de todos os tamanhos e feitios, que eu nem sei pôr o nome... Mas num belo dia, fui surpreendido com um fenómeno absolutamente inédito e insólito para muita gente.
 
A casa onde eu vivia em Bangui, tinha muros bem altos. E num final do dia comecei a ouvir uns barulhos algo estranhos junto a um dos cantos murados, perto do meu quarto... Como Bangui é muito perto do equador, é sempre 12 horas de dia e 12 horas de noite... Eram umas 19.00 mas já estava bem escuro. Estava a ler um livro no meu quarto, quando começo a ouvir um concerto de insectos a esvoaçar de uma intensidade que até assustava... A primeira reacção é claro, medo. Era um Bzzzzzzzzzz, muito intenso como se fossem abelhas... e da janela do meu quarto, na escuridão (mas com luzes de presença) parecia-me ver uma nuvem de insectos com vida própria... Logo de seguida com enorme entusiasmo apareceram os guardas da nossa casa, hipnotizados com o acontecimento... Eram térmitas voadores.
Centenas, milhares ou milhões, é difícil dizer, era uma nuvem de térmitas voadores que num devaneio colectivo se encurralaram naquele canto da casa e numa entropia total suicidavam-se contra as paredes como se tivessem aterrorizados, hipnotizados ou possuídos por algum demónio que os fazia querer que a morte era o melhor remédio.
Este espetáculo consiste então numa nuvem que vai perdendo densidade à medida que os bichos se vão esborrachando contra a parede e caindo no chão mortos ou atordoados... E os guardas de olhos arregalados vieram munidos de baldes de água que atiravam para a nuvem em movimento, para a parede da morte, e para o chão garantindo assim que os insectos morriam mesmo e não esvoaçavam para lado nenhum, para depois os recolher a todos num balde.
Foi dos acontecimentos naturais ao vivo mais incríveis que já vi até hoje.

Até este dia, para mim, apenas associava os térmitas aquelas pirâmides gigantes que já algumas vezes tinha visto em planícies africanas, e que são conhecidas pela sua elaborada arquitectura e minuciosa construção de cidades de grande complexidade, onde tudo isto é conseguido graças a uma sociedade altamente organizada e hierarquizada, lideradas pelo regime totalitário de um rei e uma rainha. Acontece que este nobre casal que acasala para a vida que pode ir até 20 anos, perfilha milhões de outros térmitas, uns são soldados outros trabalhadores... E há uma pequena percentagem que adquirem capacidade de se reproduzir e com isto ganham asas, que são apenas temporárias. E num determinado click dado por alterações de temperaturas ou chuvas, saem da sua colónia em massa para encontrarem outras colónias e continuarem o ciclo. E por vezes o seu percurso é sabotado por uma luz, ou um obstáculo que lhes altera o plano por completo.

E depois de ter estudado um pouco sobre o assunto foi a leitura com que fiquei deste fenómeno de suicídio colectivo, que me fez pensar bastante sobre alguns mistérios da mãe natureza. Certo é que entre os que suicidaram, os que os guardas mandaram a baixo com a água, e os que perderam as asas por natureza, encheram baldes de térmitas como quem apanha dinheiro que cai do céu, porque na verdade a dimensão do milagre, bem romanceado resume-se a isso: riqueza que cai do céu.

No fim do espetáculo, alimentado pela minha curiosidade aproximei-me da cabaninha dos guardas, que não demoraram a preparar a iguaria. Nada mais fácil de cozinhar. Só é preciso fogo e uma frigideira. Os térmitas libertam uma espécie de gordura que os faz deslizar com suavidade numa qualquer frigideira ou panela. E depois é pôr uma pitada de sal e já está.
O que também não tem preço é a cara de felicidade dos guardas centro-africanos, pelas delícias que inesperadamente lhes caíram no prato. Há muita gente que morre de fome na RCA. Há muita gente que não come todos os dias neste país. Há muita gente que come só uma vez por dia. Há muita gente que só muito raramente come carne ou peixe. E estes térmitas são uma iguaria. Riquíssimos em proteínas, com um pedaço de pão fazem uma refeição maravilhosa e nutriente.
Como estava com o nariz dentro da sua casinha, ofereceram-me a provar, mas surpreendido, meio receoso, e sem querer roubar comida a quem tem pouca, tive a reacção instinctiva de recusar... e dei meia-volta algo arrependido por não ter sido mais audaz.

Mas no dia seguinte ao voltar do hospital, disseram-me que tinha uma surpresa no frigorifico. E lá estava, um bom trato cheio de térmitas fritos no dia anterior. Agora já não ia vacilar... Não gosto de deixar nada por fazer. Viajar, descobrir, explorar, conhecer, crescer, ser um deles por uns momentos é tudo parte da vida, como eu a gosto de viver. Ainda ofereci aos meus companheiros de casa a partilha desta experiência de sabores exóticos, mas ninguém quis correr o risco.


Sozinho então. Nem hesitei, 3 ou 4 lá para dentro. E rapidamente foi uma mão cheia. Que maravilha. Que delícia. De uma consistência muito crocante e estaladiça, salgadinho e imensamente saboroso. Intenso, forte a ponto que ainda me durou por uns dias. Cada vez que chegava a casa “mandava a baixo” uma mão cheia deles como aperitivo e soube pela vida, estas saborosas delícias vindas do céu.