No limite, para
mim a minha missão no Paquistão foi no limite....... no limite da minha resistência
física e psicológica, e claro está as duas inter-relacionadas. O volume de
trabalho era imenso e estava 24 horas, sobre 24 horas de urgência, 7 dias por
semana, tive momentos em que pensei que não aguentava mais, mas o peso da
responsabilidade, a motivação causada pela envolvência levavam-me a não
fraquejar..... por vezes gosto de viver no limite, mas foi sem dúvida alguma,
demasiado.
À semelhança de
todas as minha missões além fronteiras, a riqueza dos casos clínicos era
imensa, vi coisas interessantíssimas, e muitos foram os desafios intelectuais,
que me agarravam aos livros de medicina, na tentativa de ser útil, mas como já
toquei aqui e ali, em histórias anteriores..... foi na Obstetrícia, que
surgiram os meus maiores desafios, as minhas grandes vitórias, e pesadíssimas
derrotas. Para um Médico Anestesista, aquilo que eu vi não se vê no nosso
mundo, e para mim o extremo quase que se tornou normal, mas à custa de muito
suor e lágrimas. A riqueza da patologia obstétrica, para o mal daquelas
mulheres, era incrível.... Um médico aprende a gostar de doenças e eu não sou
excepção.... se não existissem, se fosse fácil..... eu não estava ali. Adorava
não ser preciso, mas infelizmente aquele hospital, era tudo menos monótono.
Zonas como a
província do Noroeste no Paquistão, quase que juntam o pior de vários mundos.
Por um lado, estamos a falar de uma das zonas mais pobres do planeta, miséria
profunda como o pior que se vê nas piores zonas de África.... Pobreza, ignorância, falta de formação transversal a quase todos, péssimas condições de
higiene e de vida, e de tudo o que tem de mau uma zona extremamente
sub-desenvolvida. Por outro lado, mesmo numa zona de conflicto como aquela, há
uma certa proximidade à civilização, sendo que o Paquistão tem grande
desenvolvimento em certas áreas, grandes cidades tecnologicamente
evoluídas.... e têm mesmo “A Bomba”.... atómica. Há um gigante contraste dentro
do mesmo país, o que faz com que aquela zona, una numa simbiose maléfica o pior
da pobreza e do desenvolvimento..... Medicamentos, pois...... Medicamentos! No
mercado negro podia-se comprar todo o tipo de medicamentos, muitos claro, de
contrabando e imitações vindas sei lá de onde (da Índia ao que se diz).... e
para meu espanto até medicamentos de elevadíssima responsabilidade e difícil
manuseio, só paras mãos de um anestesista eram vendidos no Bazar, de qualquer
cidade. E agora, muitos destes medicamentos caiam nas mãos daquilo que eu
chamaria uma evolução de curandeiros e bruxaria, mas agora com muito mais
“armas” para tratamentos fatais.
E quem são as
vítimas? As principais vitimas? As mulheres, claro. E a história que tenho
para vos contar, está directamente ligada às mulheres em trabalho de parto e à
Oxitocina. A Oxitocina é uma hormona feminina, produzida e libertada em grandes
quantidades pelo corpo de uma mulher durante o parto. Promove as contracções
uterinas e assim a saída do futuro recém-nascido, para este mundo. Mas a
Oxitocina, é também utilizada como um medicamento, por parte dos médicos
obstetras, sobre indicações especificas e controlo apertado, para
induzir/acelerar o trabalho de parto... E perante isto, penso que começam já a
imaginar..... Noroeste do Paquistão, terra longínqua, relevo muito montanhoso, e
clima muito hostil, fazia com que as distancias fossem vincadas, numa grande
dificuldade de chegar ao hospital, misturado com crenças locais de que estes ou
estas praticantes de uma medicina, ignorante, negligente e até
criminosa.... utilizassem a Oxitocina injectável, sem grande critério como
“remédio santo”, para acelerar o parto.....
Parteiras,
curandeiras, ou qualquer coisa do género eram uma epidemia, e as histórias das
suas prácticas que nos chegavam ao hospital, assustadoras.... O Útero é um
órgão cuja a compreensão biológica é fantástica, tem uma “ginástica”
absolutamente incrível, e a sua transformação, na gravidez, durante o parto e
logo após, é espectacular..... Altamente irrigado por uma enorme quantidade de
sangue no seu apogeu, aquando do parto, para alimentar toda esta ginástica e
ainda, a placenta-cordão umbilical-feto! E a Oxitocina, esta fantástica hormona
a “controlar” todo este processo.... O que é que acontece então no meio daquelas
inóspitas e geladas montanhas? Estas raparigas, quando o parto está demorado,
recebem este “estímulo” extra, para dar mais força ao Útero, mas se por algum
motivo o feto, não pode sair por via vaginal, as dores são horríveis e o
músculo potente do Útero sofre uma rotura, e com quase certeza, se esta
parturiente não tiver acesso a um hospital com médicos a sério, vai se esvair
em sangue até à morte.....
E esta hormona da
vida, rapidamente quando usada por quem não devia, se torna num empurrão para a
morte!
Uma das muitas
razões para o mulher morrer durante o parto.... mas não a única. Numa terra com
uma elevadíssima taxa de natalidade, todas as outras causas, para nós
raríssimas, lá são muito frequentes..... Placenta Increta, e Acreta, Abruptio,
Atonia Uterina, Pré-Eclampsia e Eclampsia, etc ...... todas elas com
apresentações gravíssimas e tardias.....faziam o meu dia-a-dia, um prato cheio
de adrenalina a salvar mulheres, e quando possível a reanimar os recém-nascidos
que vinham ao mundo em grandes dificuldades, na luta pela sobrevivência.
Foi duro, foi
intenso..... muitas vezes no limite.... mas levei daqui uma lição para toda a
vida. Eu, a Patrícia, e os enfermeiros do bloco Paquistaneses que eram
fantásticos, e nos apoiavam até à exaustão.
Eu nunca tinha
visto, a Patrícia também não e os enfermeiros estavam incrédulos com o nosso
“azar”! Morreram-nos 8 mulheres, num mês, no bloco operatório.....literalmente
nas nossas mãos! E a estas acrescem as muitas que nunca vimos, aquelas que
morreram antes de chegar ao bloco, e as poucas que morreram depois da cirurgia.
De Bruxelas (Centro dos MSF-Bélgica) pediram-nos “explicações”..... para estes
gritantes dados estatísticos.... Que para nós eram dor, suor e lágrimas.
Confrontados com este pedido, vieram-nos as lágrimas aos olhos.... apetecia-nos
dizer “Venham aqui ver!!!”..... mas sabíamos que o pedido era legítimo e
educadamente respondemos detalhadamente num relatório sobre todas as vidas que
nos fugiram neste mês.... e foi duro pôr no papel as nossas lágrimas..... assim
como eu faço agora. 8 mulheres.....jovens......mortas.....nas nossas mãos!
Eu não gosto
falar do que não sei, e não sou de elogios fáceis... Mas a Patrícia, não
deixava ninguém indiferente..... Médica Obstetra, raça latina, frieza alemã....
Rápida a pensar e ainda mais a operar! Um furacão de energia que levava tudo à
frente, apesar da sua aparência frágil.... Nunca vi nada assim. Extremamente
rápida...... e abraçava a causa como poucos. Funcionava às 4am como se fosse
normal....
E eu? Bem....não
sei....deixo para os outros a minha “avaliação”! Mas dei tudo, TUDO....o que
tinha.
E eu e a
Patrícia, bem auxiliados pelos enfermeiros, com as mãos ensanguentadas,
deixávamos o corpo e a alma, para que estas mulheres não fossem para a
estatística. Não sei se me lembro de todas, mas vejo ainda a cara de muitas,
estas sim, sem burqa, no bloco operatório! Ora de dia, ora de noite, ligavam à
Patrícia, que me ligava a mim..... “mais uma!”...... Hemorragia
Peri-Parto.....no limite! Eu corria para o bloco para preparar tudo e a
Patrícia, apressava-se a trazer a doente da Maternidade para o bloco, sem poder
correr, pelas regras culturais, vinha com uma enfermeira, em passo acelerado.... para
lutar contra a natureza e os desastres da Oxitocina! Chegavam em muito mau
estado..... extremamente hipovolémicas após perderem muito sangue e geladas.....
Níveis de hemoglobina que nem dá para acreditar.... 4... 3... 2... de
hemoglobina.... muito, muito baixo..... Contam-se histórias daqueles que já
viram isto uma vez na vida..... e nós vimos....... demasiadas!
Às vezes
olhavamo-nos nos olhos e pensávamos mutuamente em silêncio: “Esta
não!”.....”Esta não nos vai morrer, esta vamos salvar”.....”já chega!”...... ”Eu e Tu.....vamos salvá-la!”......... E eu “atirava-me” para cima dela, e em
segundos, fazia tudo para pensar rápido e agir imediatamente, e tudo
fazia..... para “aguentá-la” viva enquanto a Patrícia se prepara para lhe parar
a hemorragia..... E dava tudo o que tinha para cumprir a minha parte do nosso
pacto mudo......”esta não!”..... Fluidos, pedidos de sangue, fármacos para lhe
manter o coração a funcionar, ventilação artificial, e tudo mais que é da minha
responsabilidade..... E a Patrícia, super rápida, abria a mulher tirava o bebé
morto, a placenta e o que tinha que fazer para parar a hemorragia.... suturava a
parede do Útero quando podia ou retirava-o quando esta era a solução.... E
no meio deste passos morreram-nos 8 mulheres..... OITO nas nossas mãos ensanguentadas!
Ou na indução anestésica, ou a meio da cirurgia ou já depois de ter acabado a
cirurgia...... Todas custam, todas nos causam muita dor..... mas penso que é
normal que aquelas em que estamos mais envolvidos e durante mais tempo nos
custam muito mais..... E se imagino que para a Patrícia aquelas que morreram
antes ou durante a cirurgia foram as mais dolorosas...... para mim, as que
morreram depois da cirurgia, depois de muito tentar para as manter vivas,
partiram-me o coração aos pedaços...... e com o cansaço, algumas vezes quase cai
no desespero....
Lembro-me de uma
noite em que fomos chamados por volta da meia noite..... e era “mais
uma!”...... no limite. Já estava cansado de um dia longo, e com um certo
fantasma de morte a pairar nas nossas cabeças pelos múltiplos “traumas”
recentes de mortes nas nossas mãos! Mas respiramos fundo, o ar frio das
montanhas longínquas do Noroeste do Paquistão, e ai vamos nós, a correr para o
hospital, a correr para o bloco. A doente tinha uma rotura uterina enorme, e a
história repetia-se...... choque hipovolémico muito grave por hemorragia
peri-parto. A doente anestesiada, ligada ao ventilador, e enquanto a Patrícia
evitava que ela se esvai-se em sangue eu compensava pelo outro lado com fluidos
e transfusões de sangue.... e chegou a níveis de hemoglobina extremamente
baixos..... eu lutava contra o tempo.... com as mãos ensanguentadas, procurava
pôr mais acessos venosos para lhe transfundir mais e mais rápido o sangue..... Enquanto
isso a Patrícia “cumpre” o seu lado da “luta”..... Retira-lhe o Útero, e
pára-lhe a hemorragia..... E agora é comigo.... Começo a acalmar, a adrenalina
atinge o plateau e começa a baixar lentamente..... E é ai que surge a eterna
pergunta; “ E agora?” Tinha passado uma hora, hora e meia, nesta
“tourada”..... olho à volta e está o chão cheio de sangue, e uma confusão geral
no bloco operatório..... A pior fase já passou, mas tenho uma doente
extremamente critica nas mãos.... Foi transfundida com muitas unidades de
sangue, precisa do ventilador para respirar, tem certamente um distúrbio da
coagulação marcado, hipotérmica, e só com perfusão de adrenalina à moda antiga
com um conta gotas, é que lhe consigo normalizar a tensão arterial...... bem,
uma doente que no “nosso” mundo teria certamente direito a vários dias nos
cuidados intensivos e com prognóstico reservado..... Mas eu não tinha nada
disso.... Digo à Patrícia e a um dos enfermeiros para irem descansar..... Fico
eu, um enfermeiro para me ajudar..... e esta rapariga nova a lutar pela vida....”E agora?”...... Tenho que a “pôr” a respirar sem o ventilador, certificar-me
que recupera a consciência , certificar-me que não precisa de adrenalina para
lhe manter a tensão arterial...... e tenho umas horas para o fazer ..... pois
aquele bloco terá que salvar mais vidas no dia a seguir. Ou seja, ela está
viva.... mas eu acho que não lhe consigo salvar a vida, naquelas condições
relativamente básicas..... mas tento..... Vejo passar as horas, enquanto busco
no fundo da minha cabeça os conhecimentos médicos que me possam ajudar a salvar
esta vida.... pois tinha a minha parte do pacto mudo a cumprir; “esta
não!”..... a doente começa a respirar, mas ainda com muito pouca força.... mexe o
diafragma, mas não totalmente eficaz, retiro-lhe o ventilador, mas fico à
cabeça dela a “ajudá-la” a ventilar com um Ambu..... e aquele tubo traqueal que
a mantém viva..... Eu sei o que tenho de fazer, para a manter viva..... mas não
sei como posso fazer ali e naquelas condições..... estou exausto, mas bem
acordado..... o meu cérebro não pára; “o que é que faço? O que é que faço??”
Partilho as minhas dúvidas, os meus pensamentos com o jovem enfermeiro que
ficou comigo..... que me ouve e se prontifica para ajudar no que for preciso....
Também eles já estavam no limite da tolerância para mortes no bloco
operatório... A doente não acorda, tenha as pupilas dilatadas (possível sinal de
sofrimento cerebral irreversível) e não urina (muito mau sinal)..... Mas está
viva e aos poucos vai respirando melhor..... e a reagir ao tubo traqueal.... o que
é positivo...... Bem, este tubo tem que sair..... e isto é fazer “intensivismo
GT” (demasiado rápido).... mas não tenho opção, ela não pode ficar ali ...... se
não vou deixar de salvar outras vidas, amanhã...... que entretanto já é hoje, à
medida que avança a madrugada. Tiro-lhe o tubo, mas claro..... ela ainda não
consegue respirar sozinha.... o estado dela é muito, muito grave e fico
“agarrado” a ela a ajudá-la a respirar..... mas não é a mesma coisa sem o tubo e
passados uns minutos, ela começa a piorar e a piorar muito rapidamente, e eu
peço ao enfermeiro para rapidamente me ir buscar os medicamentos para a entubar
outra vez; “Rápido!!” enquanto a ventilo com o Ambu e a máscara.... ”rápido
prepara os medicamentos!”..... eu não podia largar as mãos da doente.... a
saturação de oxigénio estava a baixar muito rapidamente.... e nestes segundos,
quando ele me diz que já tem os medicamentos prontos...... o coração pára..... e
eu desisto..... morreu! Mais uma
para a estatística..... Sento-me no canto da sala, exausto..... são 6 da
manhã..... com as lágrimas nos olhos, mãos na cabeça e cotovelos nos
joelhos..... derrotado..... outra vez! Será que ela sobrevivia se estivesse no
meu país? Será que ela sobrevivia se eu tivesse feito alguma coisa diferente? Será
que ela sobrevivia se eu fosse melhor médico? ...... Não sei.
O enfermeiro muito humildemente, vem ter comigo, perante o meu desespero silencioso e
diz-me: “I am very sorry Sir, if I did something wrong.” Eu normalmente tento
esconder as minhas emoções à frente das pessoas, mas não aguento..... o cansaço
leva-nos a um estado de quase embriaguez..... e desato a chorar, sem conseguir
parar e digo-lhe: “You did a great job, it was not your fault.... I am the one
who maybe could have done something better!” ...... e ele prontamente me
responde; “No Sir, you are a great doctor!”....... e eu saio da sala num pranto
de choro, a chorar baba e ranho..... com demasiadas coisas
acumuladas..... precisava de limpar a alma.
Depois de
acalmar, volto a casa para descansar um bocado.... mas ainda faltava um pequeno
pormenor, mas muito difícil..... dizer à Patrícia, o desfecho desta rapariga.
Por tudo o que esta lutadora fazia por estas mulheres do Paquistão longínquo,
tinha vergonha de lhe dizer que não consegui cumprir a minha parte do nosso
pacto mudo.... escrevo-lhe uma mensagem, pois ela estava a dormir e certamente
iria saber quando chegasse ao hospital nesse dia..... e tinha de o saber por
mim: “Patrícia, dei tudo o que tinha, dei o meu melhor, mas não consegui. A
rapariga morreu. Desculpa”
Lutamos com todas
as armas que tínhamos até à exaustão, mas não conseguimos vencer as......
"Hormonas
Descontroladas"
Sem comentários:
Enviar um comentário