Paquistão 9.1 - Hormonas Descontroladas


No limite, para mim a minha missão no Paquistão foi no limite....... no limite da minha resistência física e psicológica, e claro está as duas inter-relacionadas. O volume de trabalho era imenso e estava 24 horas, sobre 24 horas de urgência, 7 dias por semana, tive momentos em que pensei que não aguentava mais, mas o peso da responsabilidade, a motivação causada pela envolvência levavam-me a não fraquejar..... por vezes gosto de viver no limite, mas foi sem dúvida alguma, demasiado. 

À semelhança de todas as minha missões além fronteiras, a riqueza dos casos clínicos era imensa, vi coisas interessantíssimas, e muitos foram os desafios intelectuais, que me agarravam aos livros de medicina, na tentativa de ser útil, mas como já toquei aqui e ali, em histórias anteriores..... foi na Obstetrícia, que surgiram os meus maiores desafios, as minhas grandes vitórias, e pesadíssimas derrotas. Para um Médico Anestesista, aquilo que eu vi não se vê no nosso mundo, e para mim o extremo quase que se tornou normal, mas à custa de muito suor e lágrimas. A riqueza da patologia obstétrica, para o mal daquelas mulheres, era incrível.... Um médico aprende a gostar de doenças e eu não sou excepção.... se não existissem, se fosse fácil..... eu não estava ali. Adorava não ser preciso, mas infelizmente aquele hospital, era tudo menos monótono.

Zonas como a província do Noroeste no Paquistão, quase que juntam o pior de vários mundos. Por um lado, estamos a falar de uma das zonas mais pobres do planeta, miséria profunda como o pior que se vê nas piores zonas de África.... Pobreza, ignorância, falta de formação transversal a quase todos, péssimas condições de higiene e de vida, e de tudo o que tem de mau uma zona extremamente sub-desenvolvida. Por outro lado, mesmo numa zona de conflicto como aquela, há uma certa proximidade à civilização, sendo que o Paquistão tem grande desenvolvimento em certas áreas, grandes cidades tecnologicamente evoluídas.... e têm mesmo “A Bomba”.... atómica. Há um gigante contraste dentro do mesmo país, o que faz com que aquela zona, una numa simbiose maléfica o pior da pobreza e do desenvolvimento..... Medicamentos, pois...... Medicamentos! No mercado negro podia-se comprar todo o tipo de medicamentos, muitos claro, de contrabando e imitações vindas sei lá de onde (da Índia ao que se diz).... e para meu espanto até medicamentos de elevadíssima responsabilidade e difícil manuseio, só paras mãos de um anestesista eram vendidos no Bazar, de qualquer cidade. E agora, muitos destes medicamentos caiam nas mãos daquilo que eu chamaria uma evolução de curandeiros e bruxaria, mas agora com muito mais “armas” para tratamentos fatais.

E quem são as vítimas? As principais vitimas? As mulheres, claro. E a história que tenho para vos contar, está directamente ligada às mulheres em trabalho de parto e à Oxitocina. A Oxitocina é uma hormona feminina, produzida e libertada em grandes quantidades pelo corpo de uma mulher durante o parto. Promove as contracções uterinas e assim a saída do futuro recém-nascido, para este mundo. Mas a Oxitocina, é também utilizada como um medicamento, por parte dos médicos obstetras, sobre indicações especificas e controlo apertado, para induzir/acelerar o trabalho de parto... E perante isto, penso que começam já a imaginar..... Noroeste do Paquistão, terra longínqua, relevo muito montanhoso, e clima muito hostil, fazia com que as distancias fossem vincadas, numa grande dificuldade de chegar ao hospital, misturado com crenças locais de que estes ou estas praticantes de uma medicina, ignorante, negligente e até criminosa.... utilizassem a Oxitocina injectável, sem grande critério como “remédio santo”, para acelerar o parto.....

Parteiras, curandeiras, ou qualquer coisa do género eram uma epidemia, e as histórias das suas prácticas que nos chegavam ao hospital, assustadoras.... O Útero é um órgão cuja a compreensão biológica é fantástica, tem uma “ginástica” absolutamente incrível, e a sua transformação, na gravidez, durante o parto e logo após, é espectacular..... Altamente irrigado por uma enorme quantidade de sangue no seu apogeu, aquando do parto, para alimentar toda esta ginástica e ainda, a placenta-cordão umbilical-feto! E a Oxitocina, esta fantástica hormona a “controlar” todo este processo.... O que é que acontece então no meio daquelas inóspitas e geladas montanhas? Estas raparigas, quando o parto está demorado, recebem este “estímulo” extra, para dar mais força ao Útero, mas se por algum motivo o feto, não pode sair por via vaginal, as dores são horríveis e o músculo potente do Útero sofre uma rotura, e com quase certeza, se esta parturiente não tiver acesso a um hospital com médicos a sério, vai se esvair em sangue até à morte.....

E esta hormona da vida, rapidamente quando usada por quem não devia, se torna num empurrão para a morte!
Uma das muitas razões para o mulher morrer durante o parto.... mas não a única. Numa terra com uma elevadíssima taxa de natalidade, todas as outras causas, para nós raríssimas, lá são muito frequentes..... Placenta Increta, e Acreta, Abruptio, Atonia Uterina, Pré-Eclampsia e Eclampsia, etc ...... todas elas com apresentações gravíssimas e tardias.....faziam o meu dia-a-dia, um prato cheio de adrenalina a salvar mulheres, e quando possível a reanimar os recém-nascidos que vinham ao mundo em grandes dificuldades, na luta pela sobrevivência.

Foi duro, foi intenso..... muitas vezes no limite.... mas levei daqui uma lição para toda a vida. Eu, a Patrícia, e os enfermeiros do bloco Paquistaneses que eram fantásticos, e nos apoiavam até à exaustão.

Eu nunca tinha visto, a Patrícia também não e os enfermeiros estavam incrédulos com o nosso “azar”! Morreram-nos 8 mulheres, num mês, no bloco operatório.....literalmente nas nossas mãos! E a estas acrescem as muitas que nunca vimos, aquelas que morreram antes de chegar ao bloco, e as poucas que morreram depois da cirurgia. De Bruxelas (Centro dos MSF-Bélgica) pediram-nos “explicações”..... para estes gritantes dados estatísticos.... Que para nós eram dor, suor e lágrimas. Confrontados com este pedido, vieram-nos as lágrimas aos olhos.... apetecia-nos dizer “Venham aqui ver!!!”..... mas sabíamos que o pedido era legítimo e educadamente respondemos detalhadamente num relatório sobre todas as vidas que nos fugiram neste mês.... e foi duro pôr no papel as nossas lágrimas..... assim como eu faço agora. 8 mulheres.....jovens......mortas.....nas nossas mãos!

Eu não gosto falar do que não sei, e não sou de elogios fáceis... Mas a Patrícia, não deixava ninguém indiferente..... Médica Obstetra, raça latina, frieza alemã.... Rápida a pensar e ainda mais a operar! Um furacão de energia que levava tudo à frente, apesar da sua aparência frágil.... Nunca vi nada assim. Extremamente rápida...... e abraçava a causa como poucos. Funcionava às 4am como se fosse normal....
E eu? Bem....não sei....deixo para os outros a minha “avaliação”! Mas dei tudo, TUDO....o que tinha.

E eu e a Patrícia, bem auxiliados pelos enfermeiros, com as mãos ensanguentadas, deixávamos o corpo e a alma, para que estas mulheres não fossem para a estatística. Não sei se me lembro de todas, mas vejo ainda a cara de muitas, estas sim, sem burqa, no bloco operatório! Ora de dia, ora de noite, ligavam à Patrícia, que me ligava a mim..... “mais uma!”...... Hemorragia Peri-Parto.....no limite! Eu corria para o bloco para preparar tudo e a Patrícia, apressava-se a trazer a doente da Maternidade para o bloco, sem poder correr, pelas regras culturais, vinha com uma enfermeira, em passo acelerado.... para lutar contra a natureza e os desastres da Oxitocina! Chegavam em muito mau estado..... extremamente hipovolémicas após perderem muito sangue e geladas..... Níveis de hemoglobina que nem dá para acreditar.... 4... 3... 2... de hemoglobina.... muito, muito baixo..... Contam-se histórias daqueles que já viram isto uma vez na vida..... e nós vimos....... demasiadas!

Às vezes olhavamo-nos nos olhos e pensávamos mutuamente em silêncio: “Esta não!”.....”Esta não nos vai morrer, esta vamos salvar”.....”já chega!”...... ”Eu e Tu.....vamos salvá-la!”......... E eu “atirava-me” para cima dela, e em segundos, fazia tudo para pensar rápido e agir imediatamente, e tudo fazia..... para “aguentá-la” viva enquanto a Patrícia se prepara para lhe parar a hemorragia..... E dava tudo o que tinha para cumprir a minha parte do nosso pacto mudo......”esta não!”..... Fluidos, pedidos de sangue, fármacos para lhe manter o coração a funcionar, ventilação artificial, e tudo mais que é da minha responsabilidade..... E a Patrícia, super rápida, abria a mulher tirava o bebé morto, a placenta e o que tinha que fazer para parar a hemorragia.... suturava a parede do Útero quando podia ou retirava-o quando esta era a solução.... E no meio deste passos morreram-nos 8 mulheres..... OITO nas nossas mãos ensanguentadas! Ou na indução anestésica, ou a meio da cirurgia ou já depois de ter acabado a cirurgia...... Todas custam, todas nos causam muita dor..... mas penso que é normal que aquelas em que estamos mais envolvidos e durante mais tempo nos custam muito mais..... E se imagino que para a Patrícia aquelas que morreram antes ou durante a cirurgia foram as mais dolorosas...... para mim, as que morreram depois da cirurgia, depois de muito tentar para as manter vivas, partiram-me o coração aos pedaços...... e com o cansaço, algumas vezes quase cai no desespero....

Lembro-me de uma noite em que fomos chamados por volta da meia noite..... e era “mais uma!”...... no limite. Já estava cansado de um dia longo, e com um certo fantasma de morte a pairar nas nossas cabeças pelos múltiplos “traumas” recentes de mortes nas nossas mãos! Mas respiramos fundo, o ar frio das montanhas longínquas do Noroeste do Paquistão, e ai vamos nós, a correr para o hospital, a correr para o bloco. A doente tinha uma rotura uterina enorme, e a história repetia-se...... choque hipovolémico muito grave por hemorragia peri-parto. A doente anestesiada, ligada ao ventilador, e enquanto a Patrícia evitava que ela se esvai-se em sangue eu compensava pelo outro lado com fluidos e transfusões de sangue.... e chegou a níveis de hemoglobina extremamente baixos..... eu lutava contra o tempo.... com as mãos ensanguentadas, procurava pôr mais acessos venosos para lhe transfundir mais e mais rápido o sangue..... Enquanto isso a Patrícia “cumpre” o seu lado da “luta”..... Retira-lhe o Útero, e pára-lhe a hemorragia..... E agora é comigo.... Começo a acalmar, a adrenalina atinge o plateau e começa a baixar lentamente..... E é ai que surge a eterna pergunta; “ E agora?” Tinha passado uma hora, hora e meia, nesta “tourada”..... olho à volta e está o chão cheio de sangue, e uma confusão geral no bloco operatório..... A pior fase já passou, mas tenho uma doente extremamente critica nas mãos.... Foi transfundida com muitas unidades de sangue, precisa do ventilador para respirar, tem certamente um distúrbio da coagulação marcado, hipotérmica, e só com perfusão de adrenalina à moda antiga com um conta gotas, é que lhe consigo normalizar a tensão arterial...... bem, uma doente que no “nosso” mundo teria certamente direito a vários dias nos cuidados intensivos e com prognóstico reservado..... Mas eu não tinha nada disso.... Digo à Patrícia  e a um dos enfermeiros para irem descansar..... Fico eu, um enfermeiro para me ajudar..... e esta rapariga nova a lutar pela vida....”E agora?”...... Tenho que a “pôr” a respirar sem o ventilador, certificar-me que recupera a consciência , certificar-me que não precisa de adrenalina para lhe manter a tensão arterial...... e tenho umas horas para o fazer ..... pois aquele bloco terá que salvar mais vidas no dia a seguir. Ou seja, ela está viva.... mas eu acho que não lhe consigo salvar a vida, naquelas condições relativamente básicas..... mas tento..... Vejo passar as horas, enquanto busco no fundo da minha cabeça os conhecimentos médicos que me possam ajudar a salvar esta vida.... pois tinha a minha parte do pacto mudo a cumprir; “esta não!”..... a doente começa a respirar, mas ainda com muito pouca força.... mexe o diafragma, mas não totalmente eficaz, retiro-lhe o ventilador, mas fico à cabeça dela a “ajudá-la” a ventilar com um Ambu..... e aquele tubo traqueal que a mantém viva..... Eu sei o que tenho de fazer, para a manter viva..... mas não sei como posso fazer ali e naquelas condições..... estou exausto, mas bem acordado..... o meu cérebro não pára; “o que é que faço? O que é que faço??” Partilho as minhas dúvidas, os meus pensamentos com o jovem enfermeiro que ficou comigo..... que me ouve e se prontifica para ajudar no que for preciso.... Também eles já estavam no limite da tolerância para mortes no bloco operatório... A doente não acorda, tenha as pupilas dilatadas (possível sinal de sofrimento cerebral irreversível) e não urina (muito mau sinal)..... Mas está viva e aos poucos vai respirando melhor..... e a reagir ao tubo traqueal.... o que é positivo...... Bem, este tubo tem que sair..... e isto é fazer “intensivismo GT” (demasiado rápido).... mas não tenho opção, ela não pode ficar ali ...... se não vou deixar de salvar outras vidas, amanhã...... que entretanto já é hoje, à medida que avança a madrugada. Tiro-lhe o tubo, mas claro..... ela ainda não consegue respirar sozinha.... o estado dela é muito, muito grave e fico “agarrado” a ela a ajudá-la a respirar..... mas não é a mesma coisa sem o tubo e passados uns minutos, ela começa a piorar e a piorar muito rapidamente, e eu peço ao enfermeiro para rapidamente me ir buscar os medicamentos para a entubar outra vez; “Rápido!!” enquanto a ventilo com o Ambu e a máscara.... ”rápido prepara os medicamentos!”..... eu não podia largar as mãos da doente.... a saturação de oxigénio estava a baixar muito rapidamente.... e nestes segundos, quando ele me diz que já tem os medicamentos prontos...... o coração pára..... e eu desisto..... morreu!  Mais uma para a estatística..... Sento-me no canto da sala, exausto..... são 6 da manhã..... com as lágrimas nos olhos, mãos na cabeça e cotovelos nos joelhos..... derrotado..... outra vez! Será que ela sobrevivia se estivesse no meu país? Será que ela sobrevivia se eu tivesse feito alguma coisa diferente? Será que ela sobrevivia se eu fosse melhor médico? ...... Não sei.

O enfermeiro muito humildemente, vem ter comigo, perante o meu desespero silencioso e diz-me: “I am very sorry Sir, if I did something wrong.” Eu normalmente tento esconder as minhas emoções à frente das pessoas, mas não aguento..... o cansaço leva-nos a um estado de quase embriaguez..... e desato a chorar, sem conseguir parar e digo-lhe: “You did a great job, it was not your fault.... I am the one who maybe could have done something better!” ...... e ele prontamente me responde; “No Sir, you are a great doctor!”....... e eu saio da sala num pranto de choro, a chorar baba e ranho..... com demasiadas coisas acumuladas..... precisava de limpar a alma.

Depois de acalmar, volto a casa para descansar um bocado.... mas ainda faltava um pequeno pormenor, mas muito difícil..... dizer à Patrícia, o desfecho desta rapariga. Por tudo o que esta lutadora fazia por estas mulheres do Paquistão longínquo, tinha vergonha de lhe dizer que não consegui cumprir a minha parte do nosso pacto mudo.... escrevo-lhe uma mensagem, pois ela estava a dormir e certamente iria saber quando chegasse ao hospital nesse dia..... e tinha de o saber por mim: “Patrícia, dei tudo o que tinha, dei o meu melhor, mas não consegui. A rapariga morreu. Desculpa”

Lutamos com todas as armas que tínhamos até à exaustão, mas não conseguimos vencer as......

"Hormonas Descontroladas"


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