Paquistão 8.2 - De Volta às Aulas com os Taliban


(....continuando)


A vida é um conjunto de vitórias e derrotas, e no terreno, as vivências são todas exponenciais, derrotas duras e pesadas, e vitórias que nos enchem a alma, fazem tudo valer a pena e levam-nos a pensar que ainda há esperança. Se os Médicos Sem Fronteiras lá estão, há esperança.... Esperança essa que no caso da Somália, para mim foi fortemente abalada, aquando da saída dos MSF (por vários motivos), deste pais, em permanente estado de catástrofe.... escusado será dizer que gostava de lá ir.... mas isso é outra história.

Estava eu a viver a minha super vitória, no Noroeste do Paquistão, após uma formação muito bem sucedida, sentia que estava no bom caminho....e isso naquele momento era tudo o que eu tinha...... e era tudo para mim.

Sentir a dimensão do problema, sentir o sofrimento daquele povo e sentir que estava a fazer alguma “coisinha”.... é maravilhoso, é essa a minha gasolina para andar para a frente, trabalhar motivado, passar dias e noites a trabalhar a fio, sem olhar para o relógio e com um sorriso na cara.... sem muito mais para me aquecer a alma, são estas pequenas grandes coisas no dia-a-dia, que nos inspiram. E a sensação que conseguia passar a minha mensagem, limpa-me as dúvidas da cabeça e fazem tudo valer a pena....

E essa esperança era tudo o que me restava , para amenizar uma realidade tão forte....

Quando me propus escrever um blogue com histórias, queria contar a história, com histórias, queria transparecer o que eu vivi, na vivência extrema do povo que conheci, contando a sua história, as suas histórias, para que a personificação do problema vos fizesse aproximar das pessoas que me passaram nas mãos....

Mas aqui estava-me a faltar qualquer coisa.....as histórias!! Eu não tenho histórias do Paquistão, não tenho as histórias que queria contar.... As histórias não chegam até mim, pelo menos as que queria que chegassem..... as das mulheres! As mulheres não falam.... não sei quem são ou o que sentem.... Sinto por elas, mas não as sinto...... “Fotos com histórias”...... ora não tenho fotos e não tenho histórias!! E agora??, como vos conto o que se passa neste cantinho do mundo..... que me absorvia, que me envolvia, que me abraçava e estrangulava....

Não ouço as mulheres, não sei o que elas pensam..... pelo menos em primeira mão, como sempre conto as minhas histórias..... nem quando recebo no bloco operatório, uma mulher baleada, bastante desfigurada, por uma caçadeira... Sei que foi violência de um homem, .... mas não sei como, nem porquê..... os enfermeiros que trabalham comigo, parecem sentir que não devem saber...... que não há história....é tabu! As perguntas são mal vistas, o querer saber parece que não está ao meu alcance.

(Patrícia e Anne preparadas para mais um dia de trabalho)
A Patrícia (médica obstetra) e outras companheiras dos MSF mulheres, contavam-me o que sentiam ao falar com elas, pois elas chegavam, onde eu não chegava...... falavam com as mulheres.....e eu nunca! Diziam-me que eram afáveis e guerreiras, carinhosas e de personalidade forte.... Se para mim, era difícil trabalhar naquele pais, cheio de restrições e com poucos motivos para sorrir, preso e amordaçado....... sentia e sabia que para as minhas companheiras era muito pior.... Passavam o dia de véu alfinetado de forma a que apenas um frincha dos olhos ficasse à vista, e assim viviam asfixiadas, numa sociedade repressora, vitimas também elas da posição da mulher naquele mundo, inferior e muito abaixo do homem em qualquer circunstância...... Admirava a sua coragem e adorava que me contassem sobre TUDO o que absorviam da personalidade, dos sentimentos das mulheres Paquistanesas, das mulheres Pashtun.... Imagino que nunca a divisão dos sexos foi tão grande no nosso HOJE, como é ali.....


Dedicava horas e horas do meu suor, noites intensas a salvar as suas vidas..... mas sem saber quem elas são..... nem como chegar a elas, como lhes fazer passar algo de humano, quando não havia comunicação......

A maternidade era um edifício do hospital, à parte, separado de tudo o resto, um edifício exclusivo de mulheres, onde os homens eram proibidos de entrar, mulheres médicas, enfermeiras, auxiliares, e até as guardas na porta eram mulheres..... Quem lá trabalhava não entrava no meu mundo (à excepção da Patrícia nas muitas vezes que ia ao bloco).... e eu não entrava no mundo delas..... Portas cerradas por uma cultura intransponível, trancadas por uma clivagem entre os sexos, e revestidas por proibições .... Pensar abrir essas portas, era impossível....

Uma noite estava eu ainda a trabalhar, para lá das horas de jantar, quando recebo um telefonema da Patrícia : “ Vem rápido, vem rápido à maternidade , temos uma mulher a morrer !!” ..... e eu saí do bloco operatório a correr, com o alerta que o pedido me exigia, .... mas rapidamente me saltou à cabeça ........”Eu não posso entrar lá!! Porque é que ela me ligou?” ...... Há muitas regras que são mais importantes que as vidas, e essa era uma delas..... Nem pensar em entrar na Maternidade.....cheia de mulheres de pernas abertas em trabalho de parto...... Mas pelos vistos a minha fama como homem que salvava vidas, espalhou-se como pólvora....e a Patrícia chamou-me ....e eu fui! Cheguei à porta e sem surpresa foi me barrada a entrada pelas mulheres-guardas.....e eu ouvia as vozes nervosas de muitas mulheres, ouvia o pânico de quem lutava para salvar uma vida.... e ouvia a voz da Patrícia. “Patrícia, estou cá fora, mas não posso entrar !” Aquelas portas deixavam-me enraivecido, e a vontade de as arrombar era imensa.... mas não podia. De dentro ouvia a Patrícia gritar “Deixem-no entrar!”...... “Cubram as mulheres todas e deixem-no entrar.....ela está a morrer!” .....e após muitos gritos e vozes de comando em Pashtun.....abrem-se as portas! Vejo mulheres por todos os lados, e vou como uma flecha atrás da voz da Patrícia, ........ fechando os olhos ao resto da sala, aproximo-me da mulher moribunda.... Vejo enfermeiras, altamente profissionais, em manobras de ressuscitação, com movimentos finos e coordenados, dedicadas e com a total entrega que o momento exigia..... Preocupadas, a darem toda a sua vida por aquela vida...... Estão nervosas, pois têm morrido muitas mulheres nas suas mãos..... e na sua dedicação eu vi que elas sentiam essas mortes.... seres humanos fantásticos no recorte fotográfico que eu fiz em dois segundos, enquanto me inteirava da situação médica daquela mulher.....

Não há nenhuma forma bonita de dizer isto..... Passados 2 minutos de lá ter entrado, não vou em rodeios e entro, neste caso mesmo a matar, e digo..... “Podem parar, está morta!!” ...... Mais uma, mais uma morte, mais uma hemorragia peri-parto....... Não tinha dúvidas, demasiado grave, demasiado tarde.... Vi muita desilusão, nos muitos olhos que estavam virados para mim, tinham esperança que o médico, que tão bem falou de ressuscitação pudesse fazer magia.... mas não ..... ali só lhes fui tirar o peso da responsabilidade e assumir a decisão, o que ninguém gosta de fazer...... dizer que não há nada a fazer.....

Abriram-se as portas para nada..... E tinha que sair rapidamente dali, não deu tempo para as tentar reconfortar, com a frustração de uma fantástica entrega em vão..... à saída ainda , timidamente constatei o que estava presente na sala...... um grupo de muitas mulheres em trabalho de parto, assustadas por se terem apercebido de tudo o que se passou, ......num momento já de si de grande stress, .... a morte de mais uma das suas, não vinha trazer muito ânimo..... o ar era pesado, mas de coragem...... mulheres valentes, que não choram e não gritam .... eram muito senhoras de si, todas aquelas que via a passar de burqas..... mas não conhecia.....


No dia seguinte fui surpreendido pela proposta da Patrícia : “Não queres fazer a mesma formação só para mulheres ?” Uffff...... “Patrícia, não posso, tu sabes melhor que eu que não permitido!”....... “Gustavo, elas pediram, querem saber mais, querem aprender contigo a salvar vidas....”
Fomos perguntar ao nosso chefe, falamos com o responsável pela segurança da missão, e após algumas discussões, concluímos que era possível..... Uma sala, sempre com as portas abertas, para não haver diz-que-disse, apenas e só com mulheres e eu ....

Bem, o meu entusiasmo explodiu!! Era ali que eu queria chegar. Palpei o terreno, falei com a Patrícia, para tentar perceber o que é que elas sabiam.... muito pouco, a educação quase não chega às mulheres.... e o pouco que sabem é porque apenas as mulheres podem participar no tratamento das mulheres.... e o Inglês...... muito fraco ou inexistente, tinha que ser feito com uma tradutora, bem mais difícil, mas era o possível.....
Refiz, a minha apresentação, tinha que falar de menos coisas, e com menos pormenor, e tentei-me centrar naquilo que era mais importante para salvar as mulheres com hemorragia peri-parto, no que à ressuscitação diz respeito....

Que dia! Estava nervoso, queria muito dar o meu melhor, passar o máximo de informação de uma forma assertiva ..... e dar-lhes o conhecimento para a mão, que reforçasse a sua esperança.... que responsabilidade , que lição de vida, em todos os sentidos da palavra.

A sala estava cheia, quase todas as enfermeiras do hospital lá estavam..... a maioria da maternidade e as restantes da urgência e do internamento, todas queriam saber mais sobre salvar vidas ..... e eu queria tanto ensinar-lhes..... O silêncio era constrangedor, e quietas como pedras, apenas sentia os seus olhares dirigidos para os slides que apresentava, enquanto apresentava o tema...... Pedi-lhes que me interrompessem sempre que necessário, se tivessem dúvidas ou questões, mas nunca o fizeram...... mudas e imóveis ..... alinhadas ao tom de um medo comum.....o da sociedade que as envolvia. Muitas eram de outras zonas menos fechadas do Paquistão, e por um emprego, lutavam para não cair nas malhas de quem lhes podia fazer mal, tentavam também elas se adaptar a uma envolvência toda ela castradora..... E muitas outras, sabiam bem de onde vinham e para onde iam, conhecidas, amigas , filhas, mulheres, de Taliban ou da Alqaeda......nascidas e criadas naquela zona, esquecidas pela evolução, educadas a não terem educação,.......... mas todas sentiam na pele, as mortes de tantas mulheres nas suas mãos, vitimas da pobreza, da ignorância, do azar de viver numa zona do planeta onde o acesso a cuidados de saúde é escasso, longínquo, corrupto e incapaz.... E era a estes olhos, que são tudo o que vejo, a quem eu falava, lentamente, para poder ser traduzido, com ideias claras e concisas de como fazer melhor para salvar vidas, ...... reconhecer sinais de gravidade, actuar precocemente, melhor perceber o coração, o cérebro e os pulmões..... e até da reanimação do recém-nascido..... E assim falei sozinho, traduzido, para uma sala completamente muda ......inerte. Enquanto me traduziam, observava as suas reacções...... mas nada.... não tirava nada, daqueles olhos..... simplesmente não conseguia lê-las..... Nada!

Cheguei ao fim, ultra-esperançoso e ansioso para ouvir as suas dúvidas..... mas nada, nem um som. Insisti para que fizessem perguntas.......e NADA!! E saíram tão tímidas como entraram, ordenadamente desapareceram..... Fui à minha vida........ triste, desapontado, frustrado..... derrotado pelo sistema. Com dificuldades em me concentrar nos doentes, levei o meu trabalho até ao fim.... Faltavam poucos dias para me vir embora, e parecia que estava mesmo na minha hora de voltar a casa.... Que merda!!!

Mas, e há sempre um MAS, quando cheguei a casa, encontrei a Patrícia super sorridente: “Gustavo, desculpa não ter ido à tua formação, mas tive que as substituir na maternidade para irem todas..... Elas ADORARAM..... não falavam de outra coisa, ficaram super agradecidas. Nunca as vi tão motivadas e tão dedicadas ao trabalho....não sei o que lhes fizeste!!” .....diz me ela a rir-se. Eu não sabia, se queria rir ou chorar........ naquele momento saiu-me o Euromilhões das emoções positivas, o meu coração rebentava de alegria.......

Há esperança, tem que haver esperança...... há sempre esperança..... porque há muito mais pessoas boas do que más !

Penso que consegui deixar uma semente ao ir .......

De Volta às Aulas com os Taliban !!!

1 comentário:

  1. Gustavo parabéns pela tua coragem! Imagino que apesar da grande motivação, deves sentir medo, frustração e saudades...é preciso muita coragem! Obrigada por partilhares as tuas histórias e dares a conhecer a vida de um MSF, eu não fazia ideia de como era e agora quero começar a ajudar. É engraçado teres te tornado ateu...pois deves ser uma verdadeira "benção de deus" para muitos homens, mulheres e crianças...

    ResponderEliminar