RCA 1.0 - A República Centro-Africana promete


A missão na Síria deixou uma marca profunda em mim. Nunca desisti, mas obriguei-me a pensar bem no que tenho estado a fazer no mal que faço aos meus, e nos duros abanões que a minha sanidade mental vai levando... Porque isto de andar entre mundos, tem que se lhe diga. Ancorei-me no meu Porto o melhor e mais fundo que consegui... Investi tudo na casa dos meus sonhos por ser a casa da minha querida avó, comecei um negócio para espreitar outros mundos fora da medicina ligados ao desporto, e perfilhei dois cães... Mais acorrentado era impossível. Mas não chegou, a vontade de continuar a voar era maior...

Nunca escolho para onde vou, digo sempre a mim próprio “vou para onde for preciso”... Mas depois de 3 missões em países do médio-oriente e oriente, tinha vontade de voltar a África e assim foi... A África negra tem para mim encantos incomparáveis. É uma terra de amor e ódio, do belo e do horrível, da dor e da esperança. Não precisamos de fazer um grande esforço para ver que em África temos do pior que a humanidade tem para nos oferecer, mas na minha opinião genuína encontramos também a esperança e a compaixão no seu estado mais puro...

Foram 2 anos e uns meses sem partir em missão, e agora o meu coração voltava a bater... Desta vez batia pela República Centro-Africana.

Quando me perguntavam: “Então para onde vais?” e eu respondia: “República Centro-Africana”... eu já sabia que ia ouvir a seguir: “Para onde??” E só depois de duas ou três repetições é que a mensagem chegava ao receptor... Ninguém conhece, ninguém sabe nada... e se calhar era bom se assim continuasse porque agora que se vai falando qualquer coisinha é para falar dos horrores da guerra e da catástrofe humanitária que desenha o mapa deste país de norte a sul, de este a oeste... E é para aí que eu vou.

Desde finais de 2012 que estava atento às notícias que nos contavam o pior sobre a RCA. Foram muitos anos, muito violentos... Talvez a descrição que melhor explique o que se passou neste país é o facto de até a capital (Bangui), ter sido palco de guerra aberta em variadíssimos momentos... A fragilidade deste estado (falhado) é tal que Bangui foi um campo de batalha digno dos vídeo-jogos mais realistas. De um momento para o outro, tudo explode em Bangui... a cidade que eu chamei casa durante uns meses...

Sozinho como sempre, numa viagem cheia de emoções, com o meu cachecol a esvoaçar, perdi o avião para Bangui em Paris... Percebi mal o horário limite do check-in, e quando cheguei à zona designada do aeroporto, um polícia francês do alto da sua arrogância impediu-me de entrar na zona dos balcões por terem passado 5 minutos da hora, quando faltavam ainda 2 horas para a partida... Do local onde ele me barrou a entrada, via as dezenas de pessoas na fila para o check-in daquele voo que eu acabara de perder... Supliquei que me deixasse entrar explicando o que me levava a viajar para Bangui... Mas nada o demoveu de me arrasar esta partida... Os nervos, a solidão, a emoção da partida, a possibilidade deste atraso se traduzir em vidas, conduziu-me a um rio de lágrimas como se fosse uma criança abandonada no aeroporto... Fiquei irritado e umas centenas de euros mais pobre, mas tudo se resolveu e fui 14 horas depois...

Aterrar num destino tão inóspito é sempre forte e em Bangui nem foi preciso sair do avião para que aquela realidade tão dura me abanasse a consciência e acordasse o meu córtex cerebral ainda anestesiado pela viagem... Colado à pista de aterragem, deste muito simples e rudimentar aeroporto internacional, há um mega campo de deslocados que impressiona até os mais insensíveis. Chegaram a estar cerca de 100.000 pessoas amontoadas em torno do aeroporto e literalmente à volta e debaixo de aviões neste campo de Mpoko, que é também o nome do aeroporto... Da janelinha do avião somos esbofeteados pela realidade deste povo... Nas várias ondas de violência em que Bangui se tornou irrespirável, a população mais vulnerável refugiou-se como pode no aeroporto, por ser o único local com esperança de ser seguro... Mas é impressionante logo à chegada sermos invadidos por estas imagens de miséria humana colectiva que espelham bem o estado de todo o país... a sofrer.

Ao sair do aeroporto encontrei companheiros dos MSF que não conhecia, mas tínhamos partilhado o mesmo voo, e no carro dos MSF que está à nossa espera sentimo-nos em casa, em família... e sabe bem por estarmos tão sozinhos e tão perdidos no meio do nada, ter esta sensação de pertença que é quase imediata e instinctiva...

E aí vamos nós Bangui a dentro. Eu adoro chegar a África. E absorvo todos os detalhes que a estrada me permite. Todos. O calor húmido, o cansaço da viagem e as informações visuais do tudo e do nada que esta África me dá, fazem-me viajar noutra dimensão. A vida que esta estrada tem é música para os ouvidos de quem gosta de observar... Mas quando estamos a passar numa avenida bem larga, somos surpreendidos por algo de cortar a respiração. Em segundos uma multidão a cem ou duzentos de metros à nossa frente, corta a avenida onde circulávamos, em fúria... Surpreendidos e incrédulos abrandamos o carro num processo de decisão, sobre o que fazer... São milésimos de segundo para que se atirem barris e tábuas enormes para impedir ou emboscar quem por ali passasse... E começamos a ver que os revoltados que assumem a linha da frente estão “armados”, com paus e pedras aos gritos efusivos, convocando palavras de ordem para mim incompreensíveis. Fiquei com muito medo. Sem saber o que se estava a passar, a possibilidade de ser engolido por toda aquela gente, fez-me temer pela vida... O motorista pensou rápido e agiu melhor e numa manobra ao jeito dos “3 dukes”, acelerou para os 180º e fugimos da multidão em fúria... É assustador ver este sangue quente a ferver em conjunto e a raiva que sai dos olhos desta gente...

A República Centro- Africana promete.



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