RDCongo 1.0 - O aperto de mão

Começo aqui a contar-vos a primeira historia de muitas que poderiam ser contadas sobre a minha estadia no Congo, em que trabalhei como médico anestesista para os Médicos Sem Fronteiras, numa região chamada Norte Kivu, na cidade de Masisi, perto da fronteira com o Ruanda, região esta muito complicada, pois tem sido inocentemente castigada por uma guerra terrível, que teima em não parar e que terá já morto nos últimos 15 anos cerca de 5 milhões de pessoas... E como sempre quem mais sofre nestes tristes cenários, são os civis inocentes, mulheres, crianças....cuja sorte quis que nascessem numa das piores zonas do planeta para se viver. Mas a vontade de viver, sorrir, amar, ter filhos e tudo mais que caracteriza a magia do ser humano está bem presente nesta gente que tem muita vontade de viver e dar vida!

E aqui vai uma historia que para mim prova isso mesmo...

No local onde eu estava a trabalhar como muitos outros em Africa, uma das cirurgias que realizavamos mais frequentemente é a Cesariana, dado a taxa de natalidade ser muito elevada e como tal por variadíssimas indicações muitas vezes eramos então chamados a intervir para que pudéssemos quer para salvar a mãe, a criança ou ambos . Como tantas outras vezes fui chamado ao bloco operatório de urgência a meio da noite, cansado de muitos dias de trabalho àrduo, quase sem intervalos.... Fiz uma raquianestia, ou bloqueio subaracnoideu para os entendidos ou para os desentedidos uma picada nas costas que anestesia todo a zona inferior ao umbigo, querendo com isto dizer que a futura mãe estava acordada e a ver e ouvir aquilo que podia.... Por falta de monitorização do feto, aconteceu aquilo que também muitas vezes me aconteceu neste hospital, que foi ter de fazer a reanimação neonatal....Mais uma vez trocado por miudos, o feto estaria já a sofrer dentro do útero e a cesariana já veio tarde....por sorte ou por azar estava lá eu... Com alguma formação sobre o assunto, mas pouco práctica pois nos nossos hospitais do mundo desenvolvido tal suceder é muito mais raro.... Mas este já então recém-nascido precisava de reanimação activa dado o sofrimento intra-uterino, para ajudar nesta fase que para uns é tão dificil ou mesmo fatal, que é a primeira vez que respiramos.... Normalmente uma simples estimulação táctil é suficiente para dar este empurrãozinho ao bébé, para alguns é necessário a ventilação através de uma máscara, e quando esta se mostra insuficiente....e temos sinais de que a oxigenação não está a ser adequada.... a frequência cardiaca teima em baixar, o faz com que o cerébro deste novo ser possa ter danos irremediáveis por falta de oxigénio das células cerebrais....e muito rápidamente , sim porque tudo isto são segundos ou poucos minutos de actuações e decisões dificeis, há que partir para a uma forma de oxigenção mais eficaz com a colocação de um tubo através da boca na traqueia, actuacção esta que tanto caracteriza o médico anestesista....


O que vocês vêem nesta fotografia é então já o final destes momentos de stress que felizmente têm um final feliz como se pode ver pelo tom rosadinho da pele e lábios deste bébé....a minha mão que parece gigante ao pé deste mais recente congolês....um estetoscópio...que me serviu para avaliar a ventilação deste pequenino , que é de tamanho adulto, pois não havia pediátrico ….e mais grave ainda para quem está minimamente ligado ao meio é o tamanho da lâmina do laringoscópio (mas foi esta que tive de usar, adaptando me ao que tinha)....esse aparelho metálico que vêm no canto superior da fotografia e que serve para a visualização directa da laringe e da traqueia, para posteriormente eu introduzir o tubo na traqueia que permitindo uma ventilação e oxigenção muito mais eficaz terá salvado a vida a este bébé.... Como disse toda esta hisória acaba bem ….o recém-nascido respira já sem a minha ajuda , sem ajuda de tudos e cheio de força espero eu para um dia contribuir para um Congo melhor ….talvez estarei a sonhar demais.... mas uma das lições que aprendi e reforcei todos os dias é que há sempre que pensar positivo com muita força.

Calma , esta historia não acaba aqui... Todos estes poucos minutos de reanimação do recém nascido ao que a importância da velocidade da minha actuação, deixa facilmente transparecer algum stress pelo qual eu passei para que tudo corresse bem, e em que a mãe (que estava acordada) viu toda a minha vontade para que este bébé acabasse por ter um choro bem vigoroso como todos gostamos de ouvir naqueles a quem se acabou de cortar o cordão umbilical...

Imagino o que pensará uma mãe que deitada numa maca com metade do corpo imobilizado, com um lençol que a impede de ver a cirurgia propriamente dita, mas que ao flectir o seu pescoço para a esquerda vê durante escassos, mas provavelmente eternos minutos, este estranho branco vindo sabe-se lá de onde às tantas da madrugada dedicar tanto do seu esforço para que o seu filho nasça saudável neste zona do planeta que parece ter sido esquecida pelo mundo.... Infelizemente a barreira linguistica impede-me de saber o que se passa por a cabeça desta mulher que sem instrução nenhuma, dentro do azar tenha a sorte de que exista um hospital dos médicos sem fronteiras naquela zona de guerra aberta....

Quando já tenho a certeza de que o bébé está são e salvo, volto as minhas atenções para a mãe, e como a comunicação verbal era impossivel (por eu não falar Swahili) como muitas outras vezes tinha de utilizar outra forma de comunicar com os pacientes e então passei a minha mão pela testa e cabelo sorrindo a passando a mensagem que estava tudo bem, e o perigo estava longe do seu bébézinho....foi aí que ela me disse algumas palavras que eu não percebi ! Esticou-me o braço , e eu continuei sem perceber! Até que um enfermeiro congolês (servindo de interprete Francês-Swahili) me disse : “Ela quer apertar-lhe a mão Doutor!” E assim foi, apertando-me a mão olhando-me nos olhos com verdade e transparência, neste olhar negro e tão profundo que ela me disse “Asante Sana! “ – “Muito Obrigado!”

E este Aperto de Mão é o motivo pelo qual corri riscos que não precisava de correr, atravessei o mundo por que quis, e mais grave do que tudo fiz sofrer muitos de quem gosto muito, que deixei com o coração a bater , sofrendo sem ter de sofrer....

A todos esses, desculpem, mas esta é a minha forma de vos agradecer e de vos explicar porquê....

7 comentários:

  1. Muito bom!!! Fechar os olhos e nao ver o que se passa é cobardia! Sim, somos uns cobardes, que sabemos o que se passa no mundo e nos limitamos a fechar os olhos e pensar em viver as "nossas" vidas que achamos ser complexas e dificeis mas nao passam de ser simples e sem conteudo!! Por vezes um simples aperto de mao pode vir a ser a "grande" lição da nossa vida!!

    Obrigado por esta partilha, que infelizmente é apenas um relato dos milhoes que poderiam ser feitos em todo mundo todos os dias!

    Grandes momentos para grande HOMENS!!!

    ResponderEliminar
  2. Gustavo, mtos parabéns!

    É um grande testemunho este que aqui deixas.
    É um grande exemplo que, tenho a certeza, provocará, a mta gente, ânsia por poder levar a outros esse amor precioso que *quiseste*, gratuitamente, levar!
    Assim, o mundo ficará com certeza, melhor!

    Todos os que sofreram com a tua ida ganharam tanto ou mais que tu! Acredito que o sofrimento, quando é para o bem, transforma-se em alguma coisa MUITO BOA!

    TODOS NÓS ganhamos e, não conseguimos sequer imaginar, o quanto!

    Obrigada!


    Mas, a missão é urgente por todo o local onde o homem está...

    TODOS OS DIAS, ao nosso lado, neste meio que aparentemente parece bom, com todo o conforto, com o acesso fácil a todos os bens essenciais, milhares de velhinhos, nos seus lares, no maior sofrimento físico e moral, numa enorme solidão, esperam minuto a minuto por "alguém" que lhes venha dar esse tal "Aperto de Mão".

    Provavelmente, esse "Aperto de Mão" que recebeste, será para oferecer a outro; desta vez num local, aparentemente, cheio de tudo mas, mtas vezes, cheio de NADA!

    É bom saber que essa tua experiência serviu para te fortalecer e assim, terás mais ainda para levar aos outros!

    Obrigada!

    ResponderEliminar
  3. Grande Abraço Gattuso...muito bom

    ResponderEliminar
  4. és uma pessoa muito especial!!Obrigada por esta partilha....um beijo muito grande para ti

    ResponderEliminar
  5. Caro Gustavo,
    antes demais mts parabéns pelo teu trabalho, eu também sou do Porto (cidade) mas neste momento residente na Suiça trabalhando para uma empresa, que tb me enviou por várias x s para Africa do Leste. Eu conheço bem as histórias do Congo (não como tu in-vivo) mas tb já vim a alertar o pessoal do facebook para o facto da riqueza desse País cada vez mias está adestruir em vez de trazer prosperidade, neste caso os chamados blood minerals e.g. tantelium utilizado para a função de vibrar num telemovél. Há muitas ideias e iniciativas que se pode projectar tendo pessoas como tu on board. Neste momento estou envolvido em negócios mais ligados há agricultura tanto no Quénia como no Ruanda e se houver tempo podemos conversar 1 dia na invicta. Grande abraço and RESPECT
    Miguel araujo

    ResponderEliminar
  6. Vi a sua mais recente palestra na Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho e gostaria de lhe dizer que foi realmente cativante e ofereceu uma nova perspectiva, a mim e aos meus colegas, acerca do que é realmente pertencer a uma instituição como os Médicos sem Fronteiras, assim como, uma enorme vontade de conhecer o que está a acontecer no mundo. Foi por isso que decidi visitar o seu blog e adorei esta história. Muitos parabéns por todo o seu trabalho, como futura médica, vejo em si um grande exemplo.

    ResponderEliminar