(....continuando)
A vida é um
conjunto de vitórias e derrotas, e no terreno, as vivências são todas exponenciais,
derrotas duras e pesadas, e vitórias que nos enchem a alma, fazem tudo valer a
pena e levam-nos a pensar que ainda há esperança. Se os Médicos Sem Fronteiras
lá estão, há esperança.... Esperança essa que no caso da Somália, para mim foi
fortemente abalada, aquando da saída dos MSF (por vários motivos), deste pais,
em permanente estado de catástrofe.... escusado será dizer que gostava de lá
ir.... mas isso é outra história.
Estava eu a viver
a minha super vitória, no Noroeste do Paquistão, após uma formação muito bem
sucedida, sentia que estava no bom caminho....e isso naquele momento era tudo o
que eu tinha...... e era tudo para mim.
Sentir a dimensão
do problema, sentir o sofrimento daquele povo e sentir que estava a fazer
alguma “coisinha”.... é maravilhoso, é essa a minha gasolina para andar para a
frente, trabalhar motivado, passar dias e noites a trabalhar a fio, sem olhar
para o relógio e com um sorriso na cara.... sem muito mais para me aquecer a
alma, são estas pequenas grandes coisas no dia-a-dia, que nos inspiram. E a
sensação que conseguia passar a minha mensagem, limpa-me as dúvidas da cabeça e
fazem tudo valer a pena....
E essa esperança
era tudo o que me restava , para amenizar uma realidade tão forte....
Quando me propus
escrever um blogue com histórias, queria contar a história, com histórias,
queria transparecer o que eu vivi, na vivência extrema do povo que conheci,
contando a sua história, as suas histórias, para que a personificação do
problema vos fizesse aproximar das pessoas que me passaram nas mãos....
Mas aqui
estava-me a faltar qualquer coisa.....as histórias!! Eu não tenho histórias do
Paquistão, não tenho as histórias que queria contar.... As histórias não chegam
até mim, pelo menos as que queria que chegassem..... as das mulheres! As
mulheres não falam.... não sei quem são ou o que sentem.... Sinto por elas, mas
não as sinto...... “Fotos com histórias”...... ora não tenho fotos e não tenho
histórias!! E agora??, como vos conto o que se passa neste cantinho do
mundo..... que me absorvia, que me envolvia, que me abraçava e estrangulava....
Não ouço as
mulheres, não sei o que elas pensam..... pelo menos em primeira mão, como sempre
conto as minhas histórias..... nem quando recebo no bloco operatório, uma
mulher baleada, bastante desfigurada, por uma caçadeira... Sei que foi violência
de um homem, .... mas não sei como, nem porquê..... os enfermeiros que trabalham
comigo, parecem sentir que não devem saber...... que não há história....é tabu! As perguntas são mal vistas, o querer saber parece que não está ao meu
alcance.
(Patrícia e Anne preparadas para mais um dia de trabalho) |
A Patrícia
(médica obstetra) e outras companheiras dos MSF mulheres, contavam-me o que
sentiam ao falar com elas, pois elas chegavam, onde eu não chegava...... falavam
com as mulheres.....e eu nunca! Diziam-me que eram afáveis e guerreiras,
carinhosas e de personalidade forte.... Se para mim, era difícil trabalhar
naquele pais, cheio de restrições e com poucos motivos para sorrir, preso e
amordaçado....... sentia e sabia que para as minhas companheiras era muito
pior.... Passavam o dia de véu alfinetado de forma a que apenas um frincha dos
olhos ficasse à vista, e assim viviam asfixiadas, numa sociedade repressora,
vitimas também elas da posição da mulher naquele mundo, inferior e muito abaixo
do homem em qualquer circunstância...... Admirava a sua coragem e adorava que
me contassem sobre TUDO o que absorviam da personalidade, dos sentimentos das
mulheres Paquistanesas, das mulheres Pashtun.... Imagino que nunca a divisão
dos sexos foi tão grande no nosso HOJE, como é ali.....
Dedicava horas e
horas do meu suor, noites intensas a salvar as suas vidas..... mas sem saber
quem elas são..... nem como chegar a elas, como lhes fazer passar algo de
humano, quando não havia comunicação......
A maternidade era
um edifício do hospital, à parte, separado de tudo o resto, um edifício
exclusivo de mulheres, onde os homens eram proibidos de entrar, mulheres
médicas, enfermeiras, auxiliares, e até as guardas na porta eram mulheres.....
Quem lá trabalhava não entrava no meu mundo (à excepção da Patrícia nas muitas
vezes que ia ao bloco).... e eu não entrava no mundo delas..... Portas cerradas
por uma cultura intransponível, trancadas por uma clivagem entre os sexos, e
revestidas por proibições .... Pensar abrir essas portas, era impossível....
Uma noite estava
eu ainda a trabalhar, para lá das horas de jantar, quando recebo um telefonema
da Patrícia : “ Vem rápido, vem rápido à maternidade , temos uma mulher a
morrer !!” ..... e eu saí do bloco operatório a correr, com o alerta que o
pedido me exigia, .... mas rapidamente me saltou à cabeça ........”Eu não posso
entrar lá!! Porque é que ela me ligou?” ...... Há muitas regras que são mais
importantes que as vidas, e essa era uma delas..... Nem pensar em entrar na
Maternidade.....cheia de mulheres de pernas abertas em trabalho de parto......
Mas pelos vistos a minha fama como homem que salvava vidas, espalhou-se como
pólvora....e a Patrícia chamou-me ....e eu fui! Cheguei à porta e sem surpresa
foi me barrada a entrada pelas mulheres-guardas.....e eu ouvia as vozes
nervosas de muitas mulheres, ouvia o pânico de quem lutava para salvar uma
vida.... e ouvia a voz da Patrícia. “Patrícia, estou cá fora, mas não posso
entrar !” Aquelas portas deixavam-me enraivecido, e a vontade de as arrombar
era imensa.... mas não podia. De dentro ouvia a Patrícia gritar “Deixem-no
entrar!”...... “Cubram as mulheres todas e deixem-no entrar.....ela está a
morrer!” .....e após muitos gritos e vozes de comando em Pashtun.....abrem-se
as portas! Vejo mulheres por todos os lados, e vou como uma flecha atrás da voz
da Patrícia, ........ fechando os olhos ao resto da sala, aproximo-me da mulher
moribunda.... Vejo enfermeiras, altamente profissionais, em manobras de
ressuscitação, com movimentos finos e coordenados, dedicadas e com a total
entrega que o momento exigia..... Preocupadas, a darem toda a sua vida por
aquela vida...... Estão nervosas, pois têm morrido muitas mulheres nas suas
mãos..... e na sua dedicação eu vi que elas sentiam essas mortes.... seres
humanos fantásticos no recorte fotográfico que eu fiz em dois segundos,
enquanto me inteirava da situação médica daquela mulher.....
Não há nenhuma
forma bonita de dizer isto..... Passados 2 minutos de lá ter entrado, não vou
em rodeios e entro, neste caso mesmo a matar, e digo..... “Podem parar, está
morta!!” ...... Mais uma, mais uma morte, mais uma hemorragia
peri-parto....... Não tinha dúvidas, demasiado grave, demasiado tarde.... Vi
muita desilusão, nos muitos olhos que estavam virados para mim, tinham
esperança que o médico, que tão bem falou de ressuscitação pudesse fazer
magia.... mas não ..... ali só lhes fui tirar o peso da responsabilidade e
assumir a decisão, o que ninguém gosta de fazer...... dizer que não há nada a
fazer.....
Abriram-se as
portas para nada..... E tinha que sair rapidamente dali, não deu tempo para as
tentar reconfortar, com a frustração de uma fantástica entrega em vão..... à
saída ainda , timidamente constatei o que estava presente na sala...... um grupo
de muitas mulheres em trabalho de parto, assustadas por se terem apercebido de
tudo o que se passou, ......num momento já de si de grande stress, .... a morte
de mais uma das suas, não vinha trazer muito ânimo..... o ar era pesado, mas de
coragem...... mulheres valentes, que não choram e não gritam .... eram muito
senhoras de si, todas aquelas que via a passar de burqas..... mas não
conhecia.....
No dia seguinte
fui surpreendido pela proposta da Patrícia : “Não queres fazer a mesma
formação só para mulheres ?” Uffff...... “Patrícia, não posso, tu sabes melhor
que eu que não permitido!”....... “Gustavo, elas pediram, querem saber mais,
querem aprender contigo a salvar vidas....”
Fomos perguntar
ao nosso chefe, falamos com o responsável pela segurança da missão, e após
algumas discussões, concluímos que era possível..... Uma sala, sempre com as
portas abertas, para não haver diz-que-disse, apenas e só com mulheres e eu
....
Bem, o meu
entusiasmo explodiu!! Era ali que eu queria chegar. Palpei o terreno, falei
com a Patrícia, para tentar perceber o que é que elas sabiam.... muito pouco, a
educação quase não chega às mulheres.... e o pouco que sabem é porque apenas as
mulheres podem participar no tratamento das mulheres.... e o Inglês...... muito
fraco ou inexistente, tinha que ser feito com uma tradutora, bem mais difícil,
mas era o possível.....
Refiz, a minha
apresentação, tinha que falar de menos coisas, e com menos pormenor, e
tentei-me centrar naquilo que era mais importante para salvar as mulheres com
hemorragia peri-parto, no que à ressuscitação diz respeito....
Que dia! Estava
nervoso, queria muito dar o meu melhor, passar o máximo de informação de uma
forma assertiva ..... e dar-lhes o conhecimento para a mão, que reforçasse a
sua esperança.... que responsabilidade , que lição de vida, em todos os sentidos
da palavra.
A sala estava
cheia, quase todas as enfermeiras do hospital lá estavam..... a maioria da
maternidade e as restantes da urgência e do internamento, todas queriam saber
mais sobre salvar vidas ..... e eu queria tanto ensinar-lhes..... O silêncio era
constrangedor, e quietas como pedras, apenas sentia os seus olhares dirigidos
para os slides que apresentava, enquanto apresentava o tema...... Pedi-lhes que
me interrompessem sempre que necessário, se tivessem dúvidas ou questões, mas
nunca o fizeram...... mudas e imóveis ..... alinhadas ao tom de um medo
comum.....o da sociedade que as envolvia. Muitas eram de outras zonas menos
fechadas do Paquistão, e por um emprego, lutavam para não cair nas malhas de
quem lhes podia fazer mal, tentavam também elas se adaptar a uma envolvência
toda ela castradora..... E muitas outras, sabiam bem de onde vinham e para onde
iam, conhecidas, amigas , filhas, mulheres, de Taliban ou da
Alqaeda......nascidas e criadas naquela zona, esquecidas pela evolução,
educadas a não terem educação,.......... mas todas sentiam na pele, as mortes de
tantas mulheres nas suas mãos, vitimas da pobreza, da ignorância, do azar de
viver numa zona do planeta onde o acesso a cuidados de saúde é escasso,
longínquo, corrupto e incapaz.... E era a estes olhos, que são tudo o que vejo,
a quem eu falava, lentamente, para poder ser traduzido, com ideias claras e
concisas de como fazer melhor para salvar vidas, ...... reconhecer sinais de
gravidade, actuar precocemente, melhor perceber o coração, o cérebro e os
pulmões..... e até da reanimação do recém-nascido..... E assim falei sozinho,
traduzido, para uma sala completamente muda ......inerte. Enquanto me
traduziam, observava as suas reacções...... mas nada.... não tirava nada,
daqueles olhos..... simplesmente não conseguia lê-las..... Nada!
Cheguei ao fim,
ultra-esperançoso e ansioso para ouvir as suas dúvidas..... mas nada, nem um
som. Insisti para que fizessem perguntas.......e NADA!! E saíram tão tímidas
como entraram, ordenadamente desapareceram..... Fui à minha vida........
triste, desapontado, frustrado..... derrotado pelo sistema. Com dificuldades em
me concentrar nos doentes, levei o meu trabalho até ao fim.... Faltavam poucos
dias para me vir embora, e parecia que estava mesmo na minha hora de voltar a
casa.... Que merda!!!
Mas, e há sempre
um MAS, quando cheguei a casa, encontrei a Patrícia super sorridente: “Gustavo, desculpa não ter ido à tua formação, mas tive que as substituir na
maternidade para irem todas..... Elas ADORARAM..... não falavam de outra coisa,
ficaram super agradecidas. Nunca as vi tão motivadas e tão dedicadas ao
trabalho....não sei o que lhes fizeste!!” .....diz me ela a rir-se. Eu não
sabia, se queria rir ou chorar........ naquele momento saiu-me o Euromilhões das
emoções positivas, o meu coração rebentava de alegria.......
Há esperança, tem
que haver esperança...... há sempre esperança..... porque há muito mais pessoas
boas do que más !
Penso que consegui
deixar uma semente ao ir .......
De Volta às Aulas
com os Taliban !!!
Gustavo parabéns pela tua coragem! Imagino que apesar da grande motivação, deves sentir medo, frustração e saudades...é preciso muita coragem! Obrigada por partilhares as tuas histórias e dares a conhecer a vida de um MSF, eu não fazia ideia de como era e agora quero começar a ajudar. É engraçado teres te tornado ateu...pois deves ser uma verdadeira "benção de deus" para muitos homens, mulheres e crianças...
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