.......continuando.....
Duros golpes
sofri eu, nesta minha missão do Paquistão..... nestas montanhas perdidas no
nosso planeta, com uma população encurralada por uma problemática local, mas
com contornos mundiais... Um povo politicamente muito activo que não hesita, em
mostrar o que pensa. Muitas vezes, das formas mais horrendas que a humanidade já
testemunhou, com ataques suicidas frequentes, com razões por vezes difíceis de
entender mesmo para os mais atentos... O que é que é guerra? O que é que é
terrorismo? Não sei..... Sei que ouvi na primeira pessoa histórias muito
tristes de ataques cobardes, com drones telecomandados, matando imensos cíveis,
mulheres e crianças sem se saber muito bem porquê!
Enquanto lá
estava um americano, que pertencia a uma força secreta dos USA, os “Black
Water” , daqueles que fazem o que querem sem ninguém lhes apontar o dedo, matou
uma mulher paquistanesa, em circunstâncias duvidosas, em Lahore, uma cidade
paquistanesa linda de morrer, que eu adorava visitar um dia... Preso pelas
autoridades paquistanesas, este americano enfrentava, a mesma pena que qualquer
assassino neste pais enfrentaria.....a morte. Mas, e porque manda quem pode, os
USA secretamente, a custo sabe-se lá do quê, conseguiram extraditá-lo impune
para os USA.....resultado? O esperado..... revolta popular, manifestações
intensas em todas as cidades do país, por esta subversão ao poder dos $$$$$, os
mesmos que entram o matam quem querem, sem fazer perguntas..... E nós, MSF e
muitos outros certamente, ficamos “presos” em casa por razões de segurança,
para evitar a fúria do povo contestatário..... 2 dias em casa... sem poder ir ao
hospital..... onde apenas nos restava a esperança que a nossa ausência não fosse
demasiado trágica para este povo que sofre....
Sempre me
questionei: e se eu tivesse nascido do outro lado do planeta, como seria? Como
pensaria? Quais seriam os meus valores? Os meus ideais?...... E ali a ver o
mundo “do lado contrário”, as mesmas perguntas são feitas vezes sem conta ao
vivo e cores..... Uma vida é uma vida! Será que os quase 3.000 mortos nas
Torres Gémeas explicam os 200.000 mortos (....and counting) no Afeganistão?
Porque será que
não há filmes Holliwoodescos destas infinitas histórias? Mas, o que é que eu
sei???? Sou apenas um médico.
Mas é importante
dissecar um bocadinho, o que é trabalhar numa zona de conflito..... Os MSF,
estão presentes...... em TODO o lado onde é preciso.... e se estão em inúmeros
países em guerra, não é para tratar os feridos de guerra..... Claro que
tratamos, e muitos, feridos de guerra, mas são sempre uma minoria, diluída no
grosso das nossas actuações.... Numa zona de conflicto há um colapso do normal
funcionamento de uma sociedade.... os que podem fogem, mas a maioria não tem
como, nem para onde...... e fica, e vive a sua vida, contornando os perigos da
forma que pode...... resiste na esperança que um dia as bombas parem de cair do
céu..... e os problemas de saúde, são os mesmo que todos temos..... mas sem meios
básicos para serem tratados..... porque as estradas estão cortadas, os médicos
fugiram, a electricidade é cortada..... e a sociedade retrocede 200 anos...... mas
a vida continua..... sendo que a factura a pagar pelo isolamento cultural,
sociológico, geopolítico é demasiado caro para os 99% que não tem culpa nenhuma
das atrocidades que alguns fazem em nome do Islão..... O Noroeste do Paquistão
é oficialmente uma zona de guerra pela quantidade de ataques às autoridades que
decorrem numa base quase diária..... E nós lá estamos a tentar minimizar os
estragos..... Acrescentando uma grande melhoria à qualidade de serviços
médicos, prestados a este povo...... e deixando uma marca, em nome de todos os
que fazem o nosso trabalho possível..... a marca de que “Nós preocupamo-nos!!”
....... nós achamos que uma vida é uma vida..... nós achamos que os seres humanos
são todos iguais, nós acreditamos num mundo melhor..... Trabalhar numa zona de
conflicto é abraçar a população...... e dizer-lhes “nós não vos deixamos
sozinhos.....” nós vamos trabalhar como se tivéssemos uma motivação milionária,
e vamos dar tudo para salvar as vossas vidas, as vossas crianças, as vossas
mulheres....... todos, todos sem excepção...... e não queremos nada em troca
..... “facturamos” em obrigados, e tudo o que pedimos é de lá sair com o
coração cheio de sensações de missão cumprida.... Salvamos vidas, ensinamos a
salvar vidas...... e gosto de acreditar que deixamos sementes de esperança, de
tolerância, de respeito pela vida humana....... e nunca, mas nunca nos
resignamos com a indiferença......
E se fosses tu? E
se fosses tu a nascer do outro lado do planeta?
E assim estávamos
a lutar contra os ódios, a lutar contra a natureza, e a lutar contra a
ignorância dos que abusivamente usavam da Oxitocina, com consequências trágicas
para imensas mulheres que morreram nas minhas mãos e da Patrícia..... e foram no
mínimo, demasiadas.....
Lembro-me bem de
uma delas.... fomos chamados de madrugada, ainda não tinha amanhecido.... e lá
vou eu e a Patrícia a correr para o hospital..... já era “quase” normal esta
tragédia..... mais uma vida no limite.... mais uma mulher entre a linha da vida e
da morte..... Sabemos o que temos que fazer...... ”é mais uma!”...... mas não
conseguimos esconder uma certa ansiedade..... são poucas as situações na
medicina em que um minuto conta tanto...... os 2 ou 3 minutos..... em que vamos
de carro de casa para o hospital, são traduzidos em mililitros de sangue que esta
mulher está a perder...... e cada minuto que passa as probabilidades de lhe salvar
a vida, vão diminuindo exponencialmente..... e enquanto rapidamente
recapitulamos os passos, que sabemos que temos que fazer...... olhamos um para o
outro..... e silenciosamente concordamos reciprocamente; “Esta não!”..... O
motorista, não fala inglês, mas sabe e sente o que vai nas nossas almas..... nas
nossas cabeça..... temos pressa! “Emergency!”...... e ele sabe que as vidas da
sua gente estão nas nossas mãos..... e sabe bem a sua parte nesta
missão...... pôr-nos rápido no hospital...... Não há trânsito..... a cidade ainda
não acordou...... chegamos a voar ao hospital..... saltamos do carro, e vai cada
um para seu lado. A Patrícia, sempre limitada pelas regras culturais, não pode
correr, e vai em passo acelerado para a Maternidade, ver como está a
mulher..... e eu corro para o bloco operatório, pôr as coisas a
andar..... preparar mais um campo de batalha..... uma batalha pela vida. Entre
soros, seringas, e medicamentos nas mãos..... toca o meu telefone; “Mais uma!
Vamos rápido!” diz-me a Patrícia....... os enfermeiros do bloco, correm de um
lado para o outro para preparar tudo para a cirurgia....
Passados segundos
chega a Patrícia com a doente envolta em lençóis encharcados em
sangue...... mais uma rotura uterina..... mais uma mulher a minutos de morrer nas
nossas mãos. Não há tempo para nada, “atiramo-la” para cima da mesa de
operações...... está inconsciente, respiração profunda e muito rápida, mal lhe
sinto o pulso..... não há tempo sequer para pensar..... é tudo, muito, muito
rápido..... Apetece-me chorar..... mas respiro fundo e engulo em seco! Com a
ajuda de uma enfermeiro às minhas ordens, em segundos anestesio a doente,
entubo-lhe a traqueia e ligo-a ao ventilador...... não lhe sinto o pulso!
Apetece-me chorar..... estou cansado, e sinto-me a lutar contra algo muito mais
forte do que eu..... Peço silêncio, para ver se o coração parou.......... não
parou, está viva!...... as tensões estão, muito, muito baixas, mas o coração
ainda bate...... A minha esperança, não estava a viver um grande
momento...... mas prometo a mim próprio que vou dar tudo, tudo, tudo até ao
fim..... Digo à Patrícia para começar a cirurgia, que atira-se para cima da
doente com o bisturi como se a sua própria vida depende-se disso.... não há
gritos, não há pânico..... há uma comunicação expressa e eficaz de uma máquina
pelas piores razões já bem oleada..... eu não tenho um segundo para ver a
cirurgia...... ponho uma perfusão de adrenalina a conta gotas e "pico" a doente em
todos os sítios que encontro para os fluidos correrem nas veias o mais rápido
possível...... espero ansiosamente pela chegada de sangue para a
transfundir...... que chega entretanto e eu rapidamente, ponho a correr na
doente..... Tenho 5 ou 6 Litros de soros a correr, sangue a correr e a perfusão
de adrenalina....... Sai o bebé morto..... ainda lhe ponho a mão no cordão
umbilical (para lhe sentir o pulso) numa esperança quase ingénua que o pudesse
reanimar....... mas já estava morto há muito....... nada a fazer...... já quase
não sentimos esta perda..... São tantos, nado-mortos, que a grande prioridade
nestas situações ultra-críticas é a mãe...... pois tem outros filhos em casa
certamente.... “Patrícia, como é que estamos?”...... pergunto à cabeça da doente
no meio das minhas múltiplas tarefas.......”Tinha uma rotura uterina de um lado
ao outro, mas já lhe parei a hemorragia”............ ufffff....... ela é muito
rápida a operar...... Respiro pela primeira vez fundo passados uns
minutos...... A situação é grave, é muito grave...... mas já não sangra..... tento
fazer um ponto da situação para mim próprio.... “E agora?”........ recebo a
trágica notícia que não há mais sangue disponível.... Finalmente tenho tempo
para lhe ver a hemoglobina..... Tem 3 ( o normal é de 13 a 18 num adulto
normal) de hemoglobina..... Sinto uma raiva interior enorme: Que MERDA! Logo
agora, não temos mais sangue...... estas coisas, não vêem nos livros, mas se eu
achava que ela ia morrer há 20 minutos atrás...... agora tinha poucas
dúvidas..... e dizia para mim “Não tem hipótese.... vai morrer..... mais uma!” A
Patrícia, termina a histerectomia (retira-lhe o Útero)...... e acaba a
cirurgia...... cumpriu a sua parte do nosso “pacto mudo”....... E agora é comigo.....e
eu estou na merda!
Tenho uma doente
que se esvaiu em sangue, já recebeu duas unidades de sangue, e agora tem 3 de
hemoglobina, tem os pulmões “encharcados” em água pelos fluidos que eu tive que
dar, e precisa da perfusão de adrenalina para manter a tensão arterial em
valores compatíveis com a vida......”E agora?”...... mesmo com a medicina de
primeiro mundo não sei se o cérebro não sofreu já danos irreversíveis, não sei
se ela sobreviria num qualquer dos melhores hospitais do mundo..... e ali estava
eu, seguro, mas cheio de dúvidas....... Precisava de Cuidados Intensivos...... e
daqueles a sério! E eu estava sozinho, ninguém a quem passar a
responsabilidade, no que à Anestesia e Intensivismo diz respeito, e tinha
condições muito limitadas...... bem eu tentava.....
A situação estava
agora nas minhas mãos, razoavelmente estável.... mas extremamente
critica...... ufffff....... Perguntei a um enfermeiro, porque muita coisa me
escapava quando falavam em Pashtun; “Qual é o grupo sanguíneo da doente?”......”A
negativo!”....... bem aquilo atingiu-me como uma flecha no coração...... é o
meu....... e ai vem a pergunta e “E agora?”...... E que tal este dilema? A
partir daquele momento sou o único que pode aspirar ter os conhecimentos
médicos que lhe eventualmente poderiam salvar a vida......... e sou o único dos
presentes que tem um grupo sanguíneo compatível com o desta jovem rapariga com
a sua vida presa por arames...... Várias vezes prometi a mim mesmo, não fazer
nada de estúpido...... E bastante cansado, com muitas horas de trabalho com
esta doente, pela frente, retirar 500 mL do meu sangue podia não ser boa
ideia.... Não estava propriamente no meu estado normal, e nunca dei sangue na
vida, porque os médicos não podem...... não sei como iria reagir o meu corpo......
Mas, se eu não desse o meu sangue era impossível, que ela sobrevivesse ......
Também sabia que era contra as regras dos MSF.... mas eu tinha que fazer, o meu
compromisso é com a vida, e era uma rapariga nova, nos seus 20 e tal anos.....
Dou instruções a
um enfermeiro para gerir a perfusão de adrenalina de difícil controlo a conta
gotas, consoante a tensão arterial, e peço a alguém para me levar para o
Laboratório, para dar o meu sangue..... estava cheio de dúvidas..... e isto podia
correr muito mal, ........ e se eu não conseguisse trabalhar com a força toda
neste dia depois de dar sangue?..... Foi há quase 3 anos e lembro-me como se
fosse hoje, sento-me na cadeira confortável de dador, e apercebo-me como o meu
corpo está cansado, a pedir descanso...... Apertam-me o garrote e saltam-me as
veias..... tiram-me uma amostra para fazer o cross-match do sangue com a
rapariga..... e fico sozinho 2 ou 3 minutos na sala..... Passou-me a vida toda à
frente...... Não estou assim à tanto tempo fora de casa..... mas estou tão longe
que morro de saudades..... as barreiras culturais, os mundos diferentes, tudo,
tudo é tão diferente que sinto que não foi só uma viagem de Portugal para o
Paquistão..... foi uma viagem no tempo..... Penso se não estarei demasiado
envolvido, se não estarei a fazer algo de muito estúpido...... mas já me tinha
morrido tanta gente nas mãos por esta altura..... que tinha que tentar
tudo...... nunca soube viver pela metade...... e já paguei muito por isso..... E
estava a ver tudo isso e muito mais, ao olhar para o meu braço
garrotado...... quando vem o técnico de laboratório e me diz; “Sir, you are not
compatible..... you are A negative!!”...... ”O quê???? Mas a doente também A
negativo!” .....”No sir, she is B negative!”....... que balde de água fria..... a
pronúncia de Inglês dos Paquistaneses é medonha..... e eu várias vezes perguntei
se ela era A neg, e eles confirmaram..... mas foi um erro algures na
comunicação...... pois os enfermeiros sabiam que ela era B
neg........uffff....... ”E agora?”...... sentia as minhas possibilidades de lhe
salvar a vida, a irem por água a baixo....... mais uma batalha perdida..... mas
quando vou a sair do laboratório, vejo muita gente à espera à porta do
laboratório..... Tinham respondido às chamadas de pedido de sangue que surgiu
entretanto (sem eu me aperceber), e marcavam agora a sua presença, com o
acordar da cidade..... Fiquei emocionado, por ver aqueles homens, de barba
longa manta cruzada aos ombros e chapéu Taliban, a descongelar do frio que se
fazia sentir lá fora...... completamente comprometidos com a tentativa de salvar
a vida desta rapariga..... Qualquer um deles seria parado em qualquer aeroporto
do mundo e tido como terrorista..... mas acreditem no que vos digo..... é boa
gente como nunca vi..... um povo fantástico, com uma alma que me
transcendia.....
Preocupado, volto
para o bloco, a correr...... com a esperança que o sangue estava provavelmente
“encontrado”.... A aproximar-me da doente, avalio que está tudo mais ou menos
como deixei..... estável, mas muito, muito grave e dependente do ventilador, de
cuidados muito específicos, e de mim.... A partir daqui vai ser a doente que me
vai ter de dar algumas respostas; será que vai acordar? Será que vai ter força
para respirar sem o ventilador? Será que vai deixar de precisar de adrenalina?
Será que o rim vai funcionar? Se falhar a alguma destas perguntas, é o final da
história, para esta mulher, e mesmo que consiga ultrapassar todas estas
questões ainda estaria demasiado longe de estar a salvo.....
Chegam, 1, 2, 3
unidades de sangue, a cada meia hora, e vamos transfundindo a doente, e com
sucesso vamos medindo e vendo a hemoglobina a subir para perto dos 9, mais do
que aceitável, para um doente critico...... com isto o sol começa a entrar, no
bloco operatório e recebo energias renovadas...... A Patrícia, já há muito
tinha voltado para a maternidade, pois o trabalho continua, e os enfermeiros da
noite trocam o turno, com os enfermeiros do novo dia..... mas eu fico.
Quando finalmente
tenho tempo vou, com um enfermeiro para traduzir, à porta do bloco operatório
falar com o marido..... A indumentária não muda muito, shalwar kameeze, um Patu
(manta) traçada aos ombros e chapéu estilo Taliban, e sandálias abertas, barba
comprida. Tinha cerca de 30 e poucos anos, quando me aproximo vejo pânico na
cara dele..... Eu ainda não tinha tido tempo para pensar na família da
doente...... Explico ao marido, o que se passou até agora..... e vejo-lhe as
lágrimas.... respiro fundo e tento conter as minhas. Mas como qualquer pessoa
que ouve um médico a dizer blá, blá, blá....... traz rapidamente a conversa ao
básico; “Doutor, ela vai morrer?”....... era nem mais, nem menos a pergunta que
me fazia a mim mesmo desde que sai de casa, há cerca de 3 horas, e
respondo......”Estou a fazer tudo o que posso, mas acho que ela tem poucas
hipóteses de sobreviver!”..... Depois de sair a tradução da boca do enfermeiro,
o homem olha-me nos olhos..... encharcado em lágrimas e diz-me; “Doutor, em
nome de Allah, salve a vida à minha mulher, por favor, e eu prometo-lhe que
Allah guardará um lugar para si!!”.... enquanto ouço gritos de desespero dos
restantes membros da família que também ouviam a conversa.... É impossível, não
sentir o peso destes momentos, mas fazem parte do meu trabalho..... e ainda era
cedo para deixar entrar os meus sentimentos.....
Em histórias
anteriores, contei-vos histórias que mostravam uma parte muito negra desta
cultura, um desrespeito pela vida humana, em especial pela mulher..... mas
felizmente são minorias...... a maioria do povo que conheci, sente como nós,
como qualquer ser humano,..... ama, chora, sofre, ri, sente...... e uma vida é
uma vida! E no meio de tudo isto, foi bonito ver o amor deste marido pela sua mulher.
Volto para junto
da doente..... na esperança que não seja chamado para outro doente urgente, e à
espera que esta mulher me responde-se às perguntas, que iriam dizer se ela vive
ou morre..... O organismo dela sofreu uma agressão brutal, e a resposta a todo
este processo nunca acontece em horas..... mas eu estava disposto a tentar o
impossível.... e como escrevi no início desta história, já tinha no meu
currículo algumas situações semelhantes, sempre sem sucesso, embora na
medicina, nunca há 2 casos iguais....
Aos poucos a doente começa
a dar sinais que o seu diafragma funciona e que quer respirar, ainda completamente
inconsciente..... Os pulmões tão cheios de fluidos e nunca serei capaz de a
tornar independente do ventilador se tiver tanta água nos pulmões...... mas para
isso o rim precisava de dar um ar da sua graça, o que ainda não tinha
acontecido.... Estimulo a diurese com diuréticos..... e o rim começa a ajudar a
“secar” os pulmões..... E aos poucos ...... muito lentamente...... ela vai
respirando com mais força.... E desconecto-a do ventilador, ainda com o tudo na
traqueia, vou ventilando-a com o Ambu à mão..... para testar a sua autonomia
ventilatória..... que aos poucos vai se tornando mais exuberante...... “E agora?
Tiro ou não tiro o tubo?”...... é uma pergunta fatal! E isto é um processo muito
lento, a ver as horas a passar.... Mas à medida que ela vai ficando mais
reactiva, torna-se uma dor de alma, assistir a este “espectáculo”...... Não tem
força para respirar, mas tenta reagir contra o tubo, e com grande esforço mexe
os ombros e os braços a tentar respirar..... é horrível sentir este
sofrimento...... mas não há outra forma de o fazer..... Vou ganhando coragem
para resolver a minha dúvida vital e decido tirar-lhe o tubo..... Sinto que ela
já tem força para respirar, mas terá tonicidade muscular suficiente, para manter
a via aérea patente...... língua, faringe? Respiro fundo e tiro-lhe o
tubo....... uffff....... ela perde algum vigor ao respirar, porque a reactividade
ao tubo na traqueia estimulava-a bastante...... A saturação de oxigénio começa
a descer rapidamente..... e um agarro-me ao Ambu e à mascara de ventilação, e
fico colado à doente, com as mãos quase em tetania de tanta força fazer ao
ventilá-la...... mas na minha cabeça ouço a minha voz; “ela vai morrer, ela vai
morrer...... mais uma que vou perder nas minhas mãos!”..... mas vou aguentando-a..... e
a saturação de oxigénio começa a subir lentamente.... vou coordenando o esforço
respiratório dela, com as minha ventilações..... durante cerca de uma hora fico
neste “jogo”, até que ela com a tronco e a cabeça bem levantados consegue respirar
sem a minha ajuda...... uma vez mais um terror para os olhos, a percepção do
esforço que ela fazia para respirar..... e totalmente inconsciente......
E com isto já
passaram muitas horas..... já estamos a meio da tarde..... começo agora a pensar
na difícil tarefa de a passar para o recobro, para finalmente libertar o bloco
operatório..... a maca de transporte, não permite a elevação do tronco, nem o
oxigénio é portátil, nestes escassos minutos que ia precisar de a passar de um
lado para o outro..... bem..... a situação é tão tão complicada, que esta simples
horizontalização a acrescer à falta de oxigénio..... são quase suficientes, para
deitar tudo a perder... a doente abafou e quase que teve paragem cardíaca..... mas
eu e os enfermeiros conseguimos reverter este quase colapso..... quase que morro
de susto.....
Vou novamente
falar com o marido..... quando finalmente tinha alguma coisa para lhe
dizer.....”Doutor, ela vai morrer?” diz ele numa ansiedade brutal.......”Já
passou uma fase que eu tinha dúvidas que ela sobrevivesse, mas ainda tudo pode
acontecer....” ..... nada disto está escrito nos livros..... não há forma de
responder a estas perguntas de uma forma objectiva.....
“E agora?”
suspiro..... a doente está inconsciente, respira com muita dificuldade e com
grande necessidade de oxigénio...... e a maldita e perigosa perfusão de
adrenalina, que nestas condições, tanto me assusta..... mas eu agora começava a
sentir que ia cumprir a minha parte do pacto mudo com a Patrícia; “esta
não”..... mas e se eu tivesse a salvar a vida a uma mulher com danos cerebrais
irreversíveis..... sentia um aperto no estômago......
Com a adrenalina,
muito bem controladinha, e explicadinha a um enfermeiro a quem “obrigo” a
vigiar a doente com monitorização clínica constante......volto para o bloco
operatório, pois tínhamos alguns doentes para operar..... que tinham ficado em
stand-by.... pois eram urgentes, mas não emergentes...... e assim anestesio 3 ou
4 doentes, em permanente entra e sai do bloco operatório (ao lado do recobro),
para ver como estava a doente no recobro......igual!!! E isso para mim já era
uma vitória nesta fase..... e assim entramos pela noite dentro..... doí-me o
corpo todo, mas a pequena possibilidade das coisas correrem bem enche-me de
energia..... Está na altura de mudar a doente para o
internamento...... ufffff...... mais uma aventura...... ela está ligeiramente mais
estável...... mas ainda tão perto de passar para o lado de lá da linha da
vida..... Mais uma aventura de cortar a respiração, pela noite gelada, ao ar
livre levá-la a correr na horizontal e sem oxigénio...... são dois minutos que
parecem horas..... a doente quase que abafa novamente, mas quase nem me assusto,
pois não foi tão grave como a primeira passagem.... Dou instruções
ultra-precisas sobre os soros, a medicação..... e claro, a maldita adrenalina
que a mantém vida, a conta gotas..... se por algum motivo deixa de entrar a
doente morre, e se perfunde demasiado rápido morre também...... é muito, muito
arriscado, e os enfermeiros são muito dedicados, mas nunca tinham visto nada
assim, e há coisas que por mais que tentemos explicar..... não podemos condensar
anos de estudo e treino, em minutos de conversa..... Dou ordens, em que os
“obrigo” a repetir várias vezes, sobre a frequência dos sinais vitais, e os
limites a partir dos quais tinham que me ligar para o telemóvel..... uma folha
A4 de instruções.... não sei mais o que devo fazer...... estou exausto, sinto-me
bem..... mas quase morto...... tenho medo de ter esperança, pois sei que as
probabilidades de correr mal, são gigantes...... não sei se devo ou não ir para
casa..... mas meu grande amigo Yaroslav e a Patrícia, quase me obrigam...... e
reconfortam-me, com eventual boa vigilância dos enfermeiros.....
Vou para casa,
devem ser 9 ou 10 da noite..... já não como há mais de 24 horas...... e por isso
devoro a comida fria..... não consigo parar de olhar para o telemóvel, à espera
de ser chamado! Deito-me na cama...... parece que me bateram no corpo
todo..... são muitas noites mal dormidas..... e muitas horas a trabalhar muito
intensamente...... Tento dormir..... mas não consigo, vejo e revejo o filme da
doente, toda a ciência que tenho na cabeça passa-me à frente dos olhos......”e
agora? E agora??”..... o que vai acontecer? Será que ela vai sobreviver? Se sim
será que vai “acordar”?...... o que é que eu estou a fazer?? Bem.....não
consigo..... já está tudo a dormir, mas eu não consigo...... parece-me impossível
que ela não tenho passado dos limites por mim definidos para me chamarem..... entre
oxigenação, frequência respiratória, frequência cardíaca, tensão arterial,
diurese, etc..... algum tinha que estar a falhar ....era impossível! Salto da
cama e vou para o hospital..... o marido vê-me a entrar e fica em
pânico..... deve estar morto de cansaço, foi o único que dormiu menos que
eu...... mas solto das poucas coisas que sabia em Pashtun “ Mushkil Nista”—“Não
há problema”....... para o reconfortar...... O profissionalismo dos enfermeiros
impressiona-me... está tudo super bem registado, e vê-se que cumpriram à risca
as minhas complexas ordens..... a doente está igual ao que eu a deixei..... o que
para mim, neste momento é o melhor que posso esperar...... volto para casa,
ligeiramente mais tranquilo.....
Nestes momentos
até nos esquecemos que estamos numa zona de guerra e que rebentam bombas todos
os dias..... volto para casa para dormir, num sono algo em sobressalto, não
fosse o telefone tocar e eu não ouvir.... Ao acordar de manhã, a minha ansiedade
o meu nervosismo é como o de uma criança na manhã de Natal que já não aguenta
mais e tem de ver o presente pelo qual espera à muito..... Partilho as minhas
dúvidas médicas, com os meus colegas e só quero ir para o hospital
rápido..... Nem consigo acreditar que não me ligaram....como é que é possível???
Ao chegar ao
hospital corro para o internamento feminino, para ver a doente..... Avalio-a
rapidamente analiso como um computador a evolução dos sinais vitais, dos soros,
da medicação, da diurese...... e da maldita adrenalina..... Parece estar tudo a
melhorar..... e a perfusão da adrenalina, já está a uma velocidade cada vez mais
baixa....... uffff....... ainda tenho medo de acreditar!!! Será que é possível
que ela vai sobreviver??? Tento parar a adrenalina, e a tensão arterial
aguenta-se no limite..... e assim fica...... é menos um prego no meu
coração..... Mas a doente continua inconsciente, practicamente não responde
sequer à dor.....
Continuo o meu
trabalho, há muita coisa para fazer..... mas entre cada cirurgia, corro para o
internamento, para ver como ela está..... melhorias muito, muito discretas, mas
parece-me a melhorar..... A meio da tarde, quando estou no bloco, com o
Yaroslav..... liga-me a Patrícia: “Ela falou, ela falou”....... mal posso vou a
correr confirmar...... está muito mal ainda, mas responde a perguntas simples e
diz umas palavras....... Sinto o corpo todo a tremer..... quase que expludo de
alegria.... está viva..... e o cérebro também...... Explico ao marido o ponto da
situação, mas contenho-me na esperança, pois ainda muita coisa podia
acontecer..... deixo o hospital ao fim do dia, com muitas promessas reforçadas e
multiplicadas por parte do marido, das coisas fantásticas que Allah, ia fazer
por mim.... Claro que as instruções aos enfermeiros são as mesmas, e até os
obrigo a testar a ligação para não haver dúvidas, estou super contente..... mas
cheio, cheio de medo de ter falsas esperanças..... eu não ia aguentar, mais uma
morte nas minhas mãos....
Acordo de manhã
com a sensação, que o meu sono foi profundo de mais..... em sobressalto olho
para o telemóvel, que não revela actividade nenhuma...... nem consigo comer,
corro para o hospital...... e para meu espanto, quando estou a chegar ao
pavilhão do internamento, o marido agarra-se a mim, e abraça-me com toda a
força..... não percebo nada do que me diz, mas a linguagem verbal e corporal, não
deixam dúvidas...... naquele abraço, vejo o meu esforço compensado,........ não
controlo, e começo a chorar..... já era altura de soltar as emoções..... Entro e
vejo a doente ainda prostrada, mas completamente desperta, com discurso
fluente, e beber chá devagarinho...... Avalio-a e os registos dos enfermeiros,
que me enchem de sorrisos, ao me entregarem o processo da doente...... está
tudo, muito, muito, melhor....... está viva, e está fora de perigo:
“yyyyyuuuuuppppiiiiieeeeeeeeeeeeee!!!” ....... passados 3 dias teve alta do
hospital como se fosse outra doente qualquer a andar pelo próprio pé... Eu
olhava para ela como se fosse o centro do mundo....... e ela nem sabia quem eu
era!
Foram 8 mulheres
que nos morreram no bloco operatório, nas mãos!.... em apenas 1 mês, nas minhas
e da Patrícia, sangue esse que eu ainda vejo quando olho para as minhas
mãos.... e muitas mais morreram que nem chegaram ao bloco operatório..... mas
foram muitas, muitas as vidas que salvamos..... muitas no limite, com contornos
quase surreais, como a que vos acabo de contar...... e ai tudo vale a pena! As
lágrimas, os riscos da guerra, as mágoas que deixamos no aeroporto.... tudo
vale a pena, porque há muito mais pessoas boas do que pessoas más em qualquer
lado do mundo.... E este povo deu-me lições para a vida, inspiraram-me e
reforçaram a minha esperança por um mundo melhor!
Patrícia.......desta
vez cumpri a minha parte do nosso pacto mudo; “Esta não!”
Na província do
Noroeste do Paquistão, várias vezes senti ódio e raiva, mas muitas, muitas
mais, senti amor e amizade por esta gente Pashtun fantástica..... que me
fizeram tantas vezes acreditar num mundo melhor, numa das zonas mais conturbadas
do planeta.....
“Esta
não!!”......”Este mundo Não!!!”..... é o único que temos e temos que lutar e
acreditar por um mundo melhor até ao fim.... mesmo sabendo da dificuldade da
batalha, desta dura batalha contra as.......
........ Hormonas
Descontroladas !
Obrigada Gustavo por este relato extraordinário. Obrigada por partilhares estas tuas aventuras, por teres dado tanto pela mulher que nesta história salvaste, quase te esquecendo de ti, por seres um médico que sai da rotina confortável e se atira aos locais mais necessitados deste planeta.
ResponderEliminarNem imagino como é passar por experiências destas e agora aqui as estar a escrever.
Estudo medicina, ainda dando os meus primeiros passos neste "mundo" e descobri este blog há menos de uma semana. Acho que já o li todo, pela forma como me vicia e dá forças para estudar, crescer e aprender para um dia ser médica, ajudando quem me pede, seja em Portugal, seja noutra parte do Mundo.
Não deixes de relatar estes episódios, acho que nos fazem relativizar a vida e pôr-nos a pensar como somos privilegiados e como há muito a fazer neste planeta.
Uma boa tarde
Ana
Obrigado Ana. Fico contente por teres gostado. Boa Sorte nos estudos, e que vejas sempre a meta a cada passo que dás na maratona de querer ser médico :)
EliminarCaro Gustavo, só agora reparei que a minha mensagem havia tido uma resposta. Muito obrigada pela coragem e por me ter respondido.
EliminarRealmente penso que no blog nunca falou nisso, mas eu acho que, pelo menos até agora e comigo, o ensino da medicina está bem longe do que é ser médico e lidar com pessoas, estejam doentes ou não.
Não sei se quando aluno sentiu isso, mas eu tenho sentido que a parte humana pouco é desenvolvida, já para nem falar na forma como se entra no curso, sem atenção à vocação.
Quando entrei em medicina já estava à espera de ter de trabalhar/estudar muito, mas o que mais me tem custado nem é isso, mas a forma como o curso é dado e o ambiente, entre alunos e na relação com os professores, que nele vivo.
As histórias que escreve mostram como a medicina é uma arte e mais do que saber coisas (até porque conhecimento não é sinónimo de sabedoria), implica ter vocação e uma dedicação quase sem limites.
Espero um dia que o seu exemplo chegue aos meus colegas para que relaxem com as notas e se dediquem a crescer como médicos e pessoas mais humanos.
Ana
Sentem-se no sangue e na alma os teus suspiros, hesitações e angústias... Sente-se a tua adrenalina, e não é a conta-gotas... Dá vontade de estar lá. Fazer qualquer coisa. Poder ajudar. E permitir-te descansar.
ResponderEliminarMuito Obrigado por essas simpáticas palavras :)
EliminarVi a reportagem da RTP e pelo nome(e pela sua mãe!) reconheci o menino que vi crescer no Centro de Nevogilde.
ResponderEliminarParabéns pelo HOMEM em que se tornou.
Educadora Many
Gustavo,
ResponderEliminarLembro-me de ti em miúdo e que grande Homem te tornaste ... se calhar no Homem que todos gostávamos de ser :o)
Não tenho palavras para descrever aquilo que li ... PARABÉNS
Forte abraço
Kico Fontes