Todos as guerras têm uma coisa em comum: Quanto mais sabemos, menos compreendemos. E ao tentarmos compreender tudo em binómios vamos ter sempre a compreensão muito curta. Em comum tem também a alteração da normalidade e das expectativas... Quando se vive em altíssimos níveis de violência, esta passa a ser uma forma de vida... passa a ser normal, pois ter sentido crítico é algo que não interessa a nenhum senhor da guerra... E esta guerra impressiona pela brutalidade, pela imprevisibilidade pela violência monstra cara a cara, pelo desrespeito total pela vida humana e pelo sofrimento humano.
E depois é a ganância, a sede de poder, o oportunismo sem
caracter que faz com que os conflitos durem para além da memória dos porquês do
seu início... Mais ainda numa guerra que não interessa ao mundo e que parece só
ser notícia, quando para variar são os cristãos que chacinam os muçulmanos nas
últimas correntes de violência.
Embora seja muito redutor, o binómio da religião
cristãos-muçulmanos incendiou, alimentou e perpectuou os ódios... Os 15% de
muçulmanos da RCA pelo facto de serem minoritários e por viverem, em boa parte,
no nordeste do país que é menos habitado e mais esquecido pelo governo central,
sempre se queixaram de desatenção e negligência por parte de quem manda ao
ponto que se tornaram terreno fértil para a entrada de vontades externas,
nomeadamente do Chade, para patrocinar alternâncias de poder mais favoráveis
aos seus interesses... Se quisermos analisar as ideologias e as políticas
conseguimos, mas mais do que em qualquer outro lugar há um factor de
sobrevivência da esmagadora maioria dos que levantam as armas, por ausência de
alternativa de ganha-pão, por pobreza de espírito e por total ignorância do
mundo que os envolve... Muitas vezes pegam numa kalashnikov para comer, para
dar de comer aos seus... e à medida que os anos passam, por já não saberem
fazer outra coisa... E muitas vezes as reflexões geopolíticas profundas tendem a
não contemplar estes factores de simplicidade que explicam quase tudo, e
explicam também a dificuldade enormíssima em pôr fim a este conflito... Porque
num país sem espinha dorsal, um homem com uma arma sente poder e sem ela, passa
fome.
Os Seleka (que em Sango significa “União”) são o grupo
formado por uma maioria de muçulmanos (mas também há cristãos lá no meio) para
derrubar o poder... E é surpreendente a facilidade, com que descem até à
capital sem grandes obstáculos e também com facilidade entram pela capital
Bangui, tomando o poder a um presidente que já se tinha posto em fuga.
Bangui tem também uma particularidade, cidade cujas zonas
são designadas pelo quilómetro... A zona do quilómerto 5 (PK5) , sempre foi a
mais “famosa”. PK5 é a zona dos muçulmanos, que apesar de estarem em clara
minoria na população de Bangui (5%) , sempre tiveram uma grande importância
económica por serem a zona dos negócios e dos mercados com as melhores conexões
com os países à volta. E assim a subida dos Seleka ao poder foi obviamente
aplaudida e apoiada por toda a população do PK5, da mesma forma que a viragem
do poder fez do PK5 o inimigo.
Os Franceses decidiram, mesmo antes de esperar pela
comunidade internacional, de entrar na RCA para derrubar os Seleka. Fizeram-no
por ameaças de genocídio, pelo caos instalado e provavelmente por não terem
interesse estratégico no status quo... E para quem gosta de palavras bonitas,
para “devolver a democracia”, onde ela praticamente nunca existiu... Para as
forças especiais francesas, foi relativamente fácil controlar os pontos
estratégicos mais importantes... Mas depois fica a faltar todo o resto da
cidade e todo o resto do país. Entretanto os Seleka refugiam-se no PK5 e um
pouco por todo o país, ao mesmo tempo que milícias armadas
contra-revolucionárias vão sendo criadas e crescendo rapidamente, são os
Anti-Balaka (anti-manchete), na sua maioria cristãos... Começam como grupos de autodefesa
mas descambam rapidamente em esquadrões da morte, dispostos a matar todos os
muçulmanos. E como tal temos a RCA cheia de armas, cheia de ódios e vinganças,
totalmente anárquica e num conflito a toda a extensão do território onde a
capital não é excepção... Bangui foi palco de batalhas terríveis, ruas de
sangue, execuções porta a porta, matanças por acção-reacção... Em particular
nas imediações de PK5... A quantidade de armas nas ruas é assustadora e o
deflagrar de troca de tiros é quase tão natural como respirar. Ao ponto de que
a primeira lição aos recém-chegados dos MSF é o “coucher, coucher!!”
(deitem-se) no caso de se ouvir troca de tiros, o que acontecia muitas vezes...
e todos se atiram para o chão para diminuir as probabilidades de ser atingido
por uma bala perdida....
E com isto a zona de PK5 torna-se uma espécie de enclave no
meio da cidade onde existia uma fronteira invisível... ou talvez até bem visível
no sentido em que as ruas e casas que separavam do resto da cidade estavam
abandonadas e cravadas a tiros nas paredes, tatuando a história e o presente da
tensão existente na cidade... Arrepiante sentir esta divisão... e esta tensão
que dura até aos dias de hoje. Qualquer questiúncula, resolve-se com sangue
derramado, e logo a cidade entra em ebulição... infelizmente vi-o várias
vezes...
Mas se calhar o que mais surpreende sobre este conflito
cruel são as granadas... Que ganharam a alcunha querida de “Ananás”, pela forma
que este objecto destrutivo aparenta, mais ainda numa terra de tanta e boa
fruta... O New York Times escreveu um artigo para falar sobre um conflito da
RCA que se intitulava “A terra onde uma granada é mais barata que o pão” ....
porque efectivamente assim o era. Eu não posso dizer que o comprovei, mas era o
que se dizia nas ruas... cerca de 20 cêntimos de euro, era o suficiente para
comprar uma granada no mercado negro das armas... Dá que pensar! Mais ainda
quando a facilidade com que se tirava a cavilha de segurança e se atirava uma
granada por qualquer ajuste de contas, por qualquer golpe de revolta...
Puuummmmmm ! Mortos e feridos às dezenas espalhados pelas ruas deste ou daquele
mercado, vi eu tantas vezes...
Não há nenhuma guerra bonita, mas esta é particularmente
terrível pela violência grotesca que se fez sentir em todo o país... Mortos à
catanada, violações em massa, crianças-soldado, aldeias queimadas com gente lá
dentro, corpos a ser arrastados nas ruas... a RCA viu o pior... viu de tudo!
Quando alimentar o ódio e raiva é mais barato do que matar a
fome, parece que a forma como se olha para a vida se torna “kafkiana”.
Sem comentários:
Enviar um comentário