Eu gostava que compreendessem a dimensão do problema. Eu
gostava que tivessem a noção da dimensão da desigualdade, da profundidade das
carências... Comparassem aquilo que sabem do mundo, o que sabem da pobreza, o
que sabem do sofrimento humano, com a visão que vos vou transmitir.
O grande problema é a educação, mais concretamente a falta
dela.
A Anestesia ou Anestesiologia é uma especialidade médica já há
umas décadas. Começou por ser um anexo da cirurgia na tentativa de tirar a dor
e/ou adormecer o doente a ser operado, para ser uma das especialidades que mais
contribuiu para a diminuição da mortalidade nos actos em que está envolvida. “Aiii,
eu tenho medo é da Anestesia!” ... Este tipo de lamúrias no nosso mundo já não
tem razão para existir na quase totalidade das situações. É raríssimo acontecer
uma fatalidade não previsível. Raríssimo. Quase zero. Porque esta especialidade
cujos saberes e intervenções parecem invisíveis para o comum dos mortais, são anos e anos de estudo e preparação teórica e prática, para que ninguém nos
morra nas mãos, e é importantíssima em várias áreas hospitalares... Mas isto é
no nosso mundo. Onde felizmente alguém como eu, é apenas mais um. E não
imaginam o privilégio de viver num lugar onde assim o é, porque a Rép.
Centro-Africana não tem nenhum médico anestesista.
Sim, leram bem. Zero. Num país imenso, com 5 milhões de
pessoas. Imaginem o privilégio e a responsabilidade de trabalhar num país como
este. Não há medicina sem cirurgias, e não cirurgias seguras sem anestesistas.
Imaginem a quantidade de gente que morre por tudo e por nada! É asfixiante
pensar nisto.
Num país onde há zero médicos-anestesistas, eu diria que
quem precisa destes saberes tem 4 destinos possíveis.
1)
Tem a sorte de encontrar uma ONG que tenha algum
médico anestesista. É uma sorte, quase um milagre neste país.
2)
Cruzar-se com um hospital que tenha um
enfermeiro de anestesia. Eu na maternidade de Bangui trabalhava com 5
enfermeiros de anestesia. Já há muitos anos que eram formados continuamente
pelos MSF. São conscientes e competentes. Terão sempre lacunas nas situações
mais difíceis, mas são cuidadosos, organizados e profissionais. Uma vez o
David, que era um desses enfermeiros já com cerca de 60 anos, diz-me que é o
presidente da associação de enfermeiros anestesistas da RCA, e dá-me um
documento (que guardo até hoje com muito carinho) sobre a análise da anestesia
neste país... Foi dos momentos em que fiquei mais sensibilizado e mais
enternecido com papeis na minha mão... Pelo simplicidade, pelo carinho e pela
sua análise cuidada da miséria que é este país. O David disse-me que não chegaria
a 30 os enfermeiros anestesistas de todo o país, e que os conhecia a todos pelo
nome... Se eu pudesse, naquele momento, dava-lhe o prémio Nobel da Paz e da
Medicina... mas tudo o que eu tinha para lhe dar eram os meus olhos húmidos num
pensamento profundo, do quão triste era a situação, e quão bonito e inspirador era
este senhor. Pela primeira vez em todos os meus 35 anos de vida passou-me uma
ideia na cabeça: “Eu se fosse um homem a sério, devia era ficar aqui a vida
toda!”
3)
Algo parecido com a roleta russa. Uma vez fui
fazer umas formações a uma cidade longínqua no norte do país, que se chama Kaga
Bandoro. Deve ser a 4a ou 5a cidade da RCA. As formações
eram mais na área do trauma, catástrofe, gestão de multi-vítimas pois era uma
zona bastante perigosa. Mas entrei no bloco operatório só para dar uma “vista
de olhos”... E fiquei incrédulo. Quem fazia a cirurgia era um estudante de
medicina do último ano, sem nenhum médico formado ao lado, e quem fazia a anestesia
era.... ninguém! Alguém ia dando Ketamina à sorte, e às vezes mediam as tensões
arteriais e mais nada! Sem monitorização da frequência cardíaca, ou da
saturação de oxigénio, sem conhecimentos nenhuns, a doente podia parar de
respirar que ninguém notaria... Isto era o hospital principal da cidade, onde a
vida das pessoas está entregue ao acaso...
4)
Simplesmente morrem.
Mas a área da anestesia é obviamente apenas uma
representação de todas as outras. As deficiências de formação e conhecimento são
tantas que é muito difícil encontrar recursos humanos válidos e capazes. Eu
lembro-me uma vez no hospital principal da capital (Bangui), em que me chamaram
para ver um doente que estava “a piorar”... Eu avalio o doente, analiso os
registos e vejo ali discrepâncias graves no dossier do doente... Nomeadamente
na frequência cardíaca... Um medi 130 batimentos por minuto, e nos registos há
minutos atrás estava 70 bpm. Eu fico indignado e chamo o enfermeiro em questão.
E pergunto-lhe qual é a frequência cardíaca do doente... Ele vê os registos e
responde: “70”... E eu contraponho: “Eu já vi o que escreveste, mas quero que me
digas qual é a frequência cardíaca deste doente.” ... Ele ficou atrapalhado e
disse-me: “O oxímetro está avariado.”... O oxímetro, serve para medir a
saturação de oxigénio no sangue, mas também nos dá a frequência cardíaca... Eu
começo a ficar profundamente chocado, e digo-lhe: “Pegas num relógio/telemóvel
e contas tu, por favor, a frequência cardíaca.” ... Ele esboçou que fazia
qualquer coisa, mas tornou-se inevitável assumir o que eu nunca esperei que
fosse possível: “Eu não sei fazer isso!” diz-me ele...
Isto é muito grave! Não saber sentir a pulsação, seja onde
for e medir os batimentos por minuto, ou por 30 segundos e depois multiplicar
por dois, é para além de escandaloso.... É gritante... E isto vindo de um
enfermeiro que tem um diploma, e vive na capital do país... E casos como este
são muitos... mas não todos felizmente...
Eu ensinei-lhe como se media a frequência cardíaca,
expliquei-lhe também que não se mente nos registos, muito menos nos sinais
vitais... porque tal como o nome indica, a vida dos doentes depende da avaliação
correcta destes sinais...
E fui à minha vida a pensar que os desafios são muito maires
do que eu pensava... Se ele não sabe contar a frequência cardíaca... quando é
que chegará o momento em que eu lhe poderia explicar a interpretação dos
diferentes valores da frequência cardíaca...
As vidas que eu salvo sabem-me muito bem a mim, e às pessoas
envolvidas, mas estaticamente valem ZERO... Tudo o que interessa é o
conhecimento que deixamos no local, é a formação, é a educação, são as
ferramentas para ter mais e mais conhecimento e no caminho da autodeterminação...
é a escola, no verdadeiro sentido da palavra...
Se eu fosse um Bilionário... criava uma ONG e espalhava
escolas pelo mundo subdesenvolvido, assim como o MacDonalds espalha
restaurantes pelo mundo. Um franchising contra a ignorância.
Dava tudo para a formação de quem não tem escola.
Era o que eu fazia, se fosse bilionário...
Era o que eu fazia, se fosse bilionário...
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