Afeganistão 7.0 - Será que eu podia ter feito melhor?

Continuo no Sul do Afeganistão… ponto mágico deste planeta… com a sensação que estou longe…. muito longe de todo o mundo, principalmente do meu mundo… Gosto de o sentir, mas é impossível não ser invadido por um certo calafrio quando paramos para reflectir no quão longe e isolados estamos do mundo… Rodeado de guerra a toda a volta a única forma de sair da cidade de LashKar Gah, é num pequeno avião da Cruz Vermelha, que ali passa 2xs por semana… Se algo acontecer…o destino passa a ser muito incerto…

Aqui vos conto uma história de um dos dias mais marcantes de toda a minha vida…

Passado todo o dia a trabalhar no hospital…. o baixar das temperaturas até estalar os ossos, vai nos avisando que o dia de trabalho está a chegar ao fim… Bloco operatório como sempre muito movimentado, ou não fosse este o hospital da capital da província de Helmand. Operamos de tudo um pouco… e não há tempo para ninguém cair no tédio… Quando me preparo para me despedir da equipa de enfermeiros anestesistas que trabalhava para mim, somos chamados para avaliar uma criança… Eu e o Andres (cirurgião e amigo argentino) juntamo-nos ao Dr. Nasrullah, chefe de Serviço da Cirurgia que estava manifestamente preocupado com esta criança e com razão… o Ahmed tinha 2-3 anos, e não lhe restava qualquer da vitalidade de uma criança desta idade… trazido ao hospital pela mãe, vinda de muito longe, bem das profundezas do território dominado pelos Taliban, o longo tempo que demorou a chegar ao hospital não jogava nada a favor do prognóstico imediato…
A clínica abdominal era evidente, com um abdómen muito distendido, que á palpação causava ao Ahmed gemidos tímidos de dor de quem já não tinha forças nem para chorar… Fosse o que fosse era grave … e era para operar já! Uma criança criticamente doente é um desafio enormíssimo, para um anestesista… mais ainda a trabalhar com condições muito básicas…

Eu pedi autorização excepcional para ficar no hospital depois das 17.00, hora em que toda a equipa dos Médicos Sem Fronteiras recolhia a casa… mas o ficar para além da hora significava passar lá a noite…. pois durante a noite não assumíamos o risco de cruzar as ruas da cidade… mas eu sabia que a vida desta criança dependia de mim…. tinha que ficar… e fiquei!

Fomos directos para o Bloco Operatório…. não temos possibilidade de fazer análises… e uma boa parte do meu raciocínio clínico é feito “às cegas”… Tive que anestesiar e entubar o Ahmed, enquanto fazia um esforço para imaginar a dimensão dos desequilíbrios hidro-electrlíticos, a desidratação… e tentava agir em conformidade… O diagnóstico saltou à vista depois do Dr. Nasrullah e o Andres lhe terem aberto a barriga… tinha uma obstrução intestinal causada por uma Intussuscepção (quando o intestino invagina para dentro do próprio intestino) e devido a isto, um porção importante do intestino já isquemiada (morta) , foi necessário remover parte do intestino…. e ficando ainda uma boa parte cuja viabilidade parecia existir, mas era duvidosa… Enquanto decorre a cirurgia, a minha preocupação é imensa no equilíbrio e restabelecer das funções dos órgãos nobres do nosso organismo…. vigiando de perto a frequência cardíaca, a ventilação, a diurese, etc… O Ahmed, estava extremamente doente, e a cirurgia sendo incontornável para lhe salvar a vida, é também uma agressão acrescida, a uma criança já muito frágil…chegando ao final da cirurgia, sei que não vai ser fácil a minha missão de lhe salvar a vida… o Ahmed, está inflamado, desidratado, com vários sinais de uma criança gravemente doente… o recobro da anestesia é muito lento, e retirá-lo do apoio do ventilador tem de ser feito com muita calma e de uma forma progressiva… No nosso mundo esta criança teria que ir para os cuidados intensivos, com uma vigilância muito apertada por vários profissionais de saúde… mas ali só estou eu… e alguns enfermeiros inexperientes, que poderão ou não compreender as minhas orientações…

O Ahmed foi acordando aos poucos, mas num registo semelhante para pior do prévio à cirurgia…. expectável…. como todos os doentes muito graves…. antes de melhorarem, pioram sempre consideravelmente… e eu fiquei ao seu lado, a olhar fixamente para ele, para os seus sinais vitais, e a fazer exercícios hipotéticos do que poderia estar a passar no seu corpo, numa série de parâmetros, cujos dados deveria ter para o tratar e não tinha…. Estava com a frequência respiratória e cardíaca muito aumentadas, mas dentro de um nível de gravidade extrema estava estável, e aparentava alguns sinais de melhoria…. agora o tempo tinha que fazer o seu papel… e o seu corpo humano tinha que se restabelecer deste grave estado de doença…. Eu sonhava voltar a entregar o Ahmed aos braços da sua mãe… e começava aos poucos a saborear a maravilhosa sensação de dever cumprido… no meio de uma noite gélida, perdido no meio da guerra no sul do Afeganistão… Corpo gelado… mas coração quente…. tinha sido um dia em cheio… e ficar no hospital à noite, enchia-me a alma de sentimentos profundos…. de medo pelos perigos que me rodeiam… mas de proximidade com o povo que tanto precisa de nós… e da nossa equipa de médicos e enfermeiros que ainda tem tanto para aprender…  sensações mágicas que me invadiam…. Salvei mais uma vida pensava… e quando é de uma criança… é pura magia…

Mas há dias e dias…. E este era um daqueles dias…. como eu gosto, pode-se dizer…. intenso e vivido intensamente… Os sinais de alerta voltaram a inundar os corredores do hospital, com zum-zuns de urgência… Era uma hemorragia pós-parto…. mais uma … é sempre a maior causa de morte, por todas as missões em países sub-desenvolvidos por onde andei… Uma mulher nova, com vinte e poucos anos, a esvair-se em sangue após o parto…. é transportada muita à pressa para o bloco operatório… Atonia Uterina (o Útero que não contrai adequadamente após o parto) e a rapariga em choque hemorrágico… no limite entre a vida e a morte… já vi tantas doentes assim nas minhas missões, que acho que já posso falar de uma experiência adquirida relevante neste tipo de casos…. já salvei dezenas de vidas nestas circunstâncias, mas muitas também já me morreram nas mãos… E no imediato, quer para o anestesista quer para o Ginecologista que terá que a operar, esta doente absorve-nos por completo… Tenho que compensar as perdas sanguíneas, numa corrida contra o tempo, enquanto o ginecologista lhe pára a hemorragia o mais rápido possível, muitos vezes com recurso a histerectomia (retirada do útero)… como foi o caso… decisão dramática numa mulher nova… mas imperativa na tentativa de lhe salvar a vida… A cirurgia foi rápida como tinha que ser e eu fiz, o que tinha a fazer também muito rapidamente…. hidratá-la, transfundi-la, aquecê-la… tentar equilibra-la em termos hidro-electroliticos…. missão complicada, numa doente ultra aguda, literalmente no limbo… Chegando ao fim da cirurgia, mais uma vez, a necessidade de cuidados intensivos com ventilação e monitorização contínua é imprescindível… mas ali não há! E tenho de adaptar todo o meu pensamento médico às circunstâncias, ao material que tenho e aos recursos humanos que me rodeiam… esta doente precisava que estivesse ao lado dela 2 ou 3 dias, se tudo corresse bem…. mas eu não posso… não consigo… sinto-me frustrado por causa disso… e sei que ela pode morrer… porque eu mais cedo ou mais tarde preciso de dormir…. escolhas difíceis, super dolorosas… com as quais eu tenho que viver… e sobreviver a elas, sem me auto-destruir… E por isso eu tenho que tirar o tudo traqueal à doente, e retirar-lhe o apoio do ventilador… E todo este intenso diálogo que eu vou tendo comigo mesmo… decorre numa altura em que um enfermeiro do bloco me traz a informação de que não há mais sangue compatível com o dela…. Tragédia!!…. as hipóteses que ela tinha já eram pequenas e agora diminuíram brutalmente… mas eu não me resignei…. mau o era… tenho a vida de uma rapariga nova, que agora é mãe, nas minhas mãos… ela pode até morrer, mas não será sem eu dar tudo por tudo…

Dou-lhe todo o tempo do mundo para que os efeitos da anestesia se vão dissipando… vou auxiliando aos poucos a ventilação, progressivamente, para que ela se autonomize na ventilação… Ela está fraquíssima, pálida como nunca com uma hemoglobina de 3-4 ( um quarto do normal)…. mas eu não tenho outra hipótese se não tirar-lhe o tubo que a ajuda a respirar…. Inicialmente penso estar a ter algum sucesso…mas rapidamente ela ficou exausta…. e a grande quantidade de fluidos de ressuscitação que eu tive que lhe dar na falta de mais sangue, traduziam-se agora nuns pulmões “encharcados” de água e uma dificuldade em respirar que rapidamente a ia levar á morte… E nesse momento, já em atitude de desespero, pego no Ambu (saco de ventilação) e na mascara de ventilação, e agarro-me a ela com toda a força para a fazer respirar/ventilar…. E vou vendo aos poucos a sua saturação de oxigénio que já descia para valores muito baixos a subir novamente…. aos poucos… mas à custa de um esforço muito grande da minha parte, para fazer a selagem adequada desta mascara facial… para permitir uma ventilação eficaz…. se eu largar ela morre… não tenho dúvidas… mas sei também que não aguentarei ali muito mais tempo…. tenho a mão e o braço esquerdo em tetania… e a vida dela literalmente nas minhas mãos...
 
Às vezes pergunto-me: quanto vale uma vida? Num país que está em guerra há mais de 40 anos… e principalmente desde 2001, esta guerra inclusive apoiada pelo meu país que eu amo, já matou cerca de 500.000 pessoas…. de quanto vale esta vida que eu tenho nas mãos…. para que estatística contará ela? Quem é que se importa? Tudo aquilo que eu sei, é que o meu trabalho nos Médicos Sem Fronteiras é do coração… não só do meu ou da minha equipa que arrisca a vida para salvar vidas… mas de todas as pessoas no planeta que acreditam, que é nestas sementes de esperança que nós deixamos, e na respectiva aproximação dos povos, que reside a esperança da humanidade… É nisso que eu acredito…. porque me rodeio de pessoas mágicas que me fazem acreditar…

E eu vou ventilando… uma rapariga em coma, cuja esperança de educar o filho que acabou de nascer reside na minha capacidade de a manter viva… mas eu não sei como… e a exaustão começa a mandar abaixo a minha moral… Os enfermeiros que trabalham comigo são inexcedíveis nas tarefas que lhes peço para fazer… eu não posso fazer nada com as minhas mãos, estou grudado à doente e não há ninguém que saiba fazer aquilo… A minha única esperança é transfundi-la, peço ao laboratório para tentarem tudo para arranjarem sangue compatível…. ela é B- , não é fácil de arranjar sangue, muito menos a meio da noite… Como sei que se for eu a falar pessoalmente as situações podem se resolver de outra forma…. peço ao técnico de laboratório que venha falar comigo ao bloco de onde eu não podia sair… Ele confirma-me que já tentou tudo, todos os contactos da sua lista de pessoas que poderiam vir dar sangue B-, e nada…. E eu pergunto-lhe se ele tem B+, e ele diz-me que sim… Bem… Que dilema!! Já li muito sobre transfusões sanguíneas nestes cenários e sei que posso transfundi-la com sangue não compatível (+/-) e ela sobreviver… mas também a posso matar num ápice… e não há forma de o prever… Apetece-me chorar…. ter que tomar esta decisão sozinho é duro demais…. sinto-me sozinho como nunca estive… Primeira Regra da deontologia Médica: Não Fazer Mal! E eu posso matá-la com esta decisão…. mas se não o fizer tenho poucas dúvidas que ela irá morrer… Estou literalmente agarrado a ela… e a vida dela agarrada a mim… numa conexão entre dois seres humanos como poucas existirão… e uma decisão a tomar… São segundos que parecem vidas… valem vidas… Eu decido transfundi-la… Respiro fundo, encho-me de coragem e assumo o risco…. e se a matar aprenderei a viver com isso…
 
Parece que vejo a minha vida toda, em cada de gota de sangue que lhe vou transfundindo… mas estou convicto na minha decisão… a transfusão decorre sem intercorrências… e eu fico mais leve dezenas de quilos… os seus sinais vitais vão melhorando… a tensão arterial a subir, a frequência cardíaca a descer, e aos poucos os rins confirmam as melhorias, deste jogo mágico da medicina… A água dos pulmões vai diminuindo e aos poucos vai respirando mais autonomamente… O milagre da vida !! A probabilidade de a matar era grande…. mas assumi o risco… e ganhei J… enquanto recuperava eu também a minha frequência cardíaca…sentia-me um super-herói… não cabia em mim de tanta felicidade…

A guerra não acabou, mas eu salvei uma criança e uma rapariga (que tem um recém-nascdo)… alguém que ficará para contar a história que um grupo de médicos e não só, que veio de muitos países, para que ninguém tenha dúvida que: Nós preocupamo-nos! Nós e todos os que nós representamos, enviamos esperança e não bombas… E neste mundo mágico viajam os meus pensamentos enquanto se consolida a melhoria fantástica do estado crítico desta rapariga….

Relaxo, um pouco, e sinto os níveis alucinantes de adrenalina a descer do meu corpo…. E o Ahmed? Como estará o Ahmed? Entretanto o Ahmed estava nos “Cuidados Intensivos”… que de Cuidados Intensivos, não tinha nada, a não ser enfermeiros com um pouco mais de atenção… Quase que me esquecia do Ahmed… estava mortinho por saber como ele estava…. E quando entro nos Cuidados Intensivos, vejo o Ahmed, com uma compressa a evitar que o queixo caísse!! O que lhe aconteceu??? “MORREU” …. foi a resposta curta e seca, quase desprovida de emoções do enfermeiro que no seu parco inglês me deu… Mas !?! Como !?!?! O que aconteceu!?!? Porque não me chamaram?!?! “ MORREU”…

Dei meia volta e desfiz-me em lágrimas…. estava tão cansado, estava exausto…. e levei um murro no estômago, como poucas vezes na vida… fui para fora do hospital, chorar e pensar na vida… estava gelado e já quase não sentia as mãos… mas não queria que me vissem chorar…. Chorei, chorei, chorei…. limpei a alma até à última gota… Salvei uma vida, perdi outra… ganhei e perdi… E se a rapariga tivesse morrido, talvez eu tivesse salvado a vida ao Ahmed? Será que eu fiz alguma coisa de errado? De que é que ele morreu? Das toxinas da reperfusão do intestino? Não sei!

SERÀ QUE EU PODIA TER FEITO MELHOR?

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