Fechando a página
sobre o Afeganistão. Às vezes tenho que me perguntar e puxar bem atrás as
minhas memórias para que me recorde porque é que eu comecei a escrever... E
talvez misturando e baralhando uma série de sensações eu diria que o ponto em
comum em todo a minha escrita e que acho que me vou mantendo fiel e honesto é
tentar fazer com que possamos ver que todas as vidas deveriam ter o mesmo
valor... Mas passamos todas as nossas vidas numa deturpação emocional, que nos
leva a crer que algumas vidas valem mais do que as outras... e eu gostava de
lutar contra isso! No fundo, no fundo, escrevo para que se tenha mais
honestidade e justiça na forma como olhamos para o mundo... Sabendo que
crescemos por defeito, com medo do desconhecido, e encontramos conforto ao
afastarmo-nos de realidades que desconhecemos, e por isso as desprezamos.... Conseguimos
condenar os terríveis cobardes responsáveis pelo ataque às torres gémeas que
mataram cerca de 3.000 pessoas, mas esquecemo-nos de condenar, moral e
politicamente os que sem saber o que faziam nos levaram para a guerra do Afeganistão, com já mais de
15 anos e cerca de 500.000 mortos... O maior esforço que tenho feito nos
últimos anos, é conter a minha revolta, perante esta falta de honestidade e
justiça.... E tudo isto porque do lado de lá, está um povo que não conhecemos,
que diabolizamos, que nos convém descrever como um monstro, para que consigamos
dormir descansados.... Mas não é verdade... do lado de lá está um povo com
tantas ou mais boas pessoas do que do lado de cá.... E se neste caso a cor até
nem é grande diferenciador.... as vestes, a língua, a cultura e claro, a
religião que professam acoplada a uma enorme dose de sub-desenvolvimento,
resulta num distanciamento emocional enormíssimo.... E por isso escrevo, por
que tive a sorte e o privilégio de lá estar... e não conheço ninguém que lá
tenha estado, com coração aberto e algum sentido de humanidade que não tenha
chegado a conclusões semelhantes às que eu fui construindo na minha cabeça...
Está na altura de antes de fazermos julgamentos ouvirmos a história dos dois
lados... Porque todos sofremos a morte dos nossos entes queridos com a mesma
intensidade....
E num belo dia
uma “bomba” caiu na praça pública! Mas esta é daquelas que explode aos poucos
mas com muita intensidade: Diz-que-disse, que em Bagram, na maior base militar
dos americanos a norte de Kabul, foram vistos vários exemplares do Corão a ser
queimados. Se me perguntarem a mim se queimar um livro é motivo para deixar
alguém furioso, eu diria que não! Mas este livro é sagrado para muitos e penso
que devemos respeitar isso. A explicação por parte dos americanos parecia fazer
sentido.... que os livros queimados estavam a ser usados pelos prisioneiros
para comunicar entre eles, no entanto a fúria do povo afegão fez-se sentir por
todo o país, com manifestações em todas as grandes cidades contra a presença
das forças aliadas no país. Triste
é que quando o povo está assim a fervilhar pela volatilidade e clima de
hostilidade que pairava no ar, nós não podemos sair de casa por questões de
segurança, e é uma dor de alma saber que com esta restrição de movimentos, várias
vidas podem se perder por nós não estarmos no hospital... Foram vários os
telefonemas que os enfermeiros que trabalhavam comigo me iam fazendo para gerir
casos mais difíceis... mas não é a mesma coisa... perdemos algumas vidas, assim
como morreu gente por todo o país nas ditas manifestações que muitas vezes
descambavam em violência, pela imprudência de se terem queimado os Coroes...
E foi isto, e
acima de tudo isto que aprendi ou reaprendi, com a minha vida no Afeganistão...
Algo enojado pela dificuldade que as pessoas têm em empatizar com quem é
diferente... A facilidade com que se deixam manipular por alguns líderes, conspurcados
numa imoral e ignorância que leva grandes e pequenos exércitos a guerras que
deixam rastos de dor na história dos nossos dias... Faço um esforço por não
transparecer nenhuma análise politica... mas às vezes torna-se difícil para
quem acredita que uma vida é uma vida, por vezes torna-se demasiado gritante...
e quando “lá” estamos tudo isto se torna ainda mais evidente.... Porque nós
somos a mesma pessoa, mas por vezes vemos o “teatro” atrás do palco... quando
sentimos o pulso ao povo bem de perto, e ouvimos os ecos das suas emoções...
Quase todos os
dias éramos sobrevoados por máquinas de guerra dos Aliados, e nesses dias
depois do queima dos Corões, foi dia e noite... aprendemos até a distinguir, os
diferentes tipos de aviões e helicópteros, pelo barulho que nos contemplam... Nunca
pensei aprender estas coisas, pois odeio guerra e tudo o que tenha a ver com
guerra... Mas como consigo reconhecer a espectacularidade de qualquer grande
desastre natural... foi no regresso a Kabul no final da minha missão, que fiz
um “pitstop” no aeroporto de Kandahar onde vi dos maiores espectáculos da minha
vida... O aeroporto de Kandahar, era em conjunto civil e militar o que em boa
verdade quer dizer nesta fase do campeonato que é 99% militar. O nosso pequeno
avião, teve que aqui parar e fazer troca de mercadoria, e os cerca de 15
passageiros tiveram que sair do avião e ficar na borda da pista à espera de
seguir viagem... Foi cerca de uma hora, em que eu estive embasbacado a ver
aquele festival de aviação militar, jactos, caças, grandes, pequenos,
helicópteros de todos os tamanhos e feitios, drones em bandos.... levantavam e
aterravam de seguida sem parar, em grupos ou isolados.... absolutamente
incrível... De olhos bem arregalados, pois as regras de segurança são rigorosíssimas
proibindo qualquer captação de imagem, e assim tive que guardar tudo na minha
memoria.... Mas na minha memória ficaram também os sentimentos que aquela
maravilha da tecnologia militar me fez sentir... Enquanto os drones aterravam
aos bandos alinhados em V, eu perguntava-lhes(me): Quantos mataram hoje? Correu
vos bem o dia? Quantos Taliban mataram? E quantos inocentes? Quantos ficaram
para a estatística dos “danos colaterais”? Dos “Ooooppsss enganamo-nos no
alvo”? E mulheres e crianças quantas mataram? Será que mataram algum amigo meu
que trabalhava no hospital? Será que mataram algum dos meus doentes que me
custou tanto a salvar? Mas não tive respostas....
Em Kabul ainda
estive uns dias, a tratar da burocracia do visto de saída.... Deu ainda para me
fazer de útil num pequeno hospital dos MSF, e para umas pitadas de
“sightseeing” que confirmou o meu primeiro “feeling” inicial: Kabul é das
cidades mais bonitas, magníficas e histórica e culturalmente interessantes que
já vi... Imponente arquitectura milenar, com um dos Bazars mais antigos do
mundo, conta bem aquele que foi o cruzamento de tantas culturas, e tudo isto
rodeado por uma cadeia de montanhas a 360º, ladeando e circundando aquela que
será das capitais mais imponentes que conheci até hoje...
Tinha saudades de
todo o meu mundo, da minha família, amigos e da minha ex, que neste momento me
esperava na Índia para umas merecidas férias.... e o meu voo era já no dia
seguinte... mas alguém não me queria facilitar a vida....
(imagens reais do Massacre de Kandahar) |
(imagens reais do
Massacre de Kandahar)
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(A casa dos MSF no dia do Adeus)
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Sem incidentes
cheguei ao aeroporto, que não deixa dúvidas que estamos em guerra e já
preparados para os dias de confrontos que se avizinhavam.... Homens armados,
tanques de guerra, são a face do aeroporto de Kabul. Perdi a conta aos “checkpoints”
de segurança, cães, detectores de metais, Rx.... tudo, várias vezes! Esperei
uma hora a mais para entrar no avião por causa do nevão... e dentro do avião
esperamos ainda mais... Dúvidas quanto à possibilidade do avião levantar... e
cada vez nevava mais... Passou-me a vida toda pela cabeça. Se eu não levantasse
ficava retido no aeroporto, talvez uns dias, sabe-se lá.... Parecia que a
guerra que estava a sugar-me para dentro dela e de lá não me queria deixar
sair..... ufffff.... que tensão! Amei aquele país e quero muito lá voltar, mas
naquele momento só queria sair dali... E quando passado 2 ou 3 horas de espera
dentro do avião este se começou a dirigir para a pista de descolagem,
ouviram-se gritos de alegria de muitos como eu... Ao descolar, a despedida que
faço para comigo desde país que despertou em mim tantas emoções, misturadas com
uma vontade louca de ir ter com quem eu gosto, e com o alivio de ver a guerra
pelas costas.... chorei como se tivesse perdido a minha família toda... é muito
intenso! Fica muita coisa acumulada no peito, e aquele era o momento de o
libertar...
(quando dei uma "ajudinha" num hospital em Kabul) |
Já nas maravilhas
da Índia assisti atento, às consequências do caso do Massacre de Kandahar...
embora apenas como um comum espectador que lê as notícias, sentia que ainda
tinha deixado para trás um pedaço de mim, que sofria em aperto as dores daquele
povo de quem tanto gosto... e morreu muita gente que se manifestava contra a
presença dos Aliados no seu país...
E 5 anos passados
ainda lá tenho esse pedaço de mim, com a promessa que um dia vou lá voltar....
deixar outro pedaço...
E agora é tempo
de respirar bem fundo e começar a escrever sobre a Síria...
Dr. Gustavo, o mundo seria um sítio muito melhor para se viver se mais gente ( muito mais gente ) pensasse como o Doutor! Não querendo correr o risco de me repetir, mas repetindo-me assim mesmo, tenho uma imensa admiração por si, pelos sentimentos que escreve, pela honestidade e humildade com que escreve! Identifico-me bastante com o seu modo de pensar! Um enorme bem haja para si e continue sempre a ser esse ser humano magnífico que foi até hoje!
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