Desistir ou Lutar com Mais Força – De Mãe para Mãe
Foram 10 minutos que mudaram a minha vida… Entre o amor e ódio, entre o
desistir ou lutar com mais força… uma lição de vida…. uma inspiração sustentada
em tristes e felizes circunstâncias do acaso... porque a vida é mesmo assim,
cabe-nos a nós aprender a (melhor possível) lição...
Talvez a história mais forte da minha vida, mais que não seja porque
dediquei e dedico à minha mãe...
Espero ter a arte de deixar o meu coração falar, uma linguagem que
transpareça o que me vai na alma...
Foi há 4 anos, em 2012, que tive o privilégio de viver uns meses no
Afeganistão... já a guerra tinha quase 11 anos, se começarmos a contar desde a
invasão dos Aliados... mas para este povo Afegão, a vivência de guerra vem desde
o início dos anos 70, altura em que o rei Sah foi deposto e forçado ao exílio,
em 1973. Várias influências externas, tentaram controlar o futuro do
Afeganistão, alimentando disputas sangrentas, deste incrível povo e país, cujo
carácter sempre me impressionou, e nunca se deixou verdadeiramente dominar...
Uma viragem à esquerda do poder em 1978, levou a um apoio que de dissimulado
passou a controlo no terreno por parte da União Soviética. O controlo/ocupação
soviética conveniente para quem os convidou, nunca foi aceite por grande parte
do povo Afegão, que não se deixa vergar... e assim guerrearam até
1992.....vários grupos de Mujahideen (guerreiros da Jihad), contra os super
poderosos da União Soviética.
A guerra contra a ocupação soviética é dos períodos da nossa história
recente que mais influência tem na compreensão de grandes problemáticas
actuais. Pois estes vários e diferentes grupos de Mujahideen, legitimamente
(digo eu), queriam ver-se livres da ocupação externa de um povo imperialista e
opressor, os Soviéticos... e para isso foram buscar forças a quem estava
disposto a ajudá-los na sua causa... E assim em jeito de guerra fria
planetária, receberam o “patrocínio”, dos USA, que injectavam dinheiro, por
intermédio dos ISI (serviços secretos Paquistaneses), com o propósito apenas e
só de tornar os Soviéticos mais fracos na luta pelo controlo do planeta.... Mas
mais importante ainda foi o apoio de países Islâmicos Sunitas, essencialmente
da península arábica, à causa afegã. Numa atitude conhecida como “ a dollar for
a dollar”, a defesa por solo Islâmico, por parte destes países cobria “no
mínimo” o apoio dos USA, a cada dollar, quase por uma questão de orgulho, na
luta para que o solo Islâmico permanecesse Islâmico.... dinheiro este entregue a
pessoas como Osama Bin Laden, e muitos outros, que faziam questão de o
“aplicar” bem no terreno na guerra contra os soviéticos... e assim nasce aquilo
a que nós hoje chamamos de Islão radical, ou politico, ou armado, etc... Al
Qaeda!
O Afeganistão, país com um património cultural e histórico de uma riqueza
inimaginável, um país lindo de morrer, feito de pessoas de um carácter impar,
nunca se deixou dominar... e a história podia servir para aprendermos qualquer
coisa... mas não aprendemos! No sec. XIX foi a zona tampão no “Great Game”,
entre império Britânico e Soviético, em que nem um nem outro super-Impérios os
conseguiu dominar, assim como não o conseguiram os super-poderosos Soviéticos no
fim do séc. XX, e como também não conseguiram, nem conseguirão os USA e seus
aliados controlar este povo que não se deixa vergar.... E com isto, são mais de
40 anos de guerra, o que é mais ou menos a esperança média de vida deste país.
É triste pensarmos que na sua esmagadora maioria, o povo afegão não sabe o que
é viver sem guerra... O que eu vivi, quase 3 meses e me destruiu o coração.... é
a “vida” para esta nobre gente...
Como sempre, tenho mais perguntas que respostas, mas fico triste e sinto-me
culpado e envergonhado, por ser ocidental e português, e nessas condições ter
fomentado esta guerra pós-9/11, que só veio deixar mais morte e sofrimento, a
um povo que já tinha a sua dose... A obsessão, ao jeito de “western americano”
pela morte de Bin Laden, era e foi obviamente um enorme erro, que só veio
exponenciar ódios, alimentar as fontes de discórdia, e tornar o extremismo e o
terrorismo (das duas partes) mais vincado e violento...
Desde 2001:
-100.000 vitimas de guerra (30.000 civis)
-360.000 mortos por causas indirectas à
guerra (fome, doenças, etc)
Quase meio milhão de pessoas morreram, desde que o mundo assistiu em
concordância à invasão do Afeganistão.... porquê??....para quê??
Mas o que é que eu sei? Sou apenas um médico, que gosta de olhar para o
mundo, tentando ser imparcial na valorização da vida humana...
O que me leva à minha história...
Dia após dia, a tentar fazer o melhor que posso e sei, ia para o hospital,
na esperança de fazer o que um médico faz: salvar vidas, e/ou melhorar a
qualidade de vida das pessoas... Nas minhas funções de anestesista e
intensivista, tinha como funções, formar os enfermeiros do bloco que faziam
anestesia, assim como gerir a unidade de cuidados intensivos, que ficava com os
doentes médicos, cirúrgicos e obstétricos em estado critico... O que me levou a
ter o desprazer de comprar inúmeras guerras com diversas áreas do hospital... A
minha formação e experiência por esta altura, levava-me a estar bastante
confortável e qualificado, na gestão de diferentes tipos de doentes, com
diferentes tipos de doenças, e isso é sem dúvida o que me dá mais prazer... sentir-me
útil a tratar doentes... no entanto, nem tudo funciona num cenário romântico que
nós imaginamos...
Este hospital, no sul do Afeganistão, na província de Helmand, era o hospital
principal da zona, num raio de centenas de Kms.... e funcionava numa parceria
Médicos Sem Fronteiras – Ministério da Saúde Afegão... e este bonito casamento,
tem tanto de necessário, como de complicado... e no meu caso o que mais me condicionava
e asfixiava, na busca dos objectivos a que me propus (salvar vidas), era a
relação complicada que por vezes tinha com os médicos afegãos deste hospital...
A qualidade da medicina praticada por eles era péssima, sustentada numa
medicina da idade da pedra, cheia de dogmas ridículos sem fundamento
cientifico, e com uma arrogância e orgulho na sua sabedoria (ignorância)
assustadores... que várias vezes me levavam à loucura e raiva, que eu tinha que
digerir em silêncio, se tinha esperança de poder contribuir para melhorar
alguma coisa, naquele hospital e no (pouco) saber daqueles médicos... Não os
condeno pela ignorância, pois alguns estudaram medicina no tempo dos Taliban,
onde não se podia ter imagens do corpo humano nos livros de medicina, e estavam
perdidos no meio da pobreza e da guerra, com muito pouco acesso a informação e
formação... mas a arrogância, sustentada num orgulho cego, era próprios das
características de um povo que para o melhor para o pior, tem na sua honra e
carácter, características muito difíceis de contornar...
O facto de ser um rapaz novo, não me dava muita credibilidade, e juntamente
com a incompreensão do que é um médico anestesista e intensivista, algo que não
existe naquelas bandas, levava a que principalmente os médicos mais velhos
desprezassem por completo as minhas mais valias e conhecimento... e foi ai, que
eu quase, quase encontrei o meu limite...
Todas as manhãs, antes de ir para o bloco operatório passava visita com os
médicos, cirurgiões, internistas, e obstetras, no que diz respeito aos
respectivos doentes que estavam nos Cuidados Intensivos... diga-se que eram
cuidados intensivos muito, muito básicos, que apenas ofereciam cuidados de
enfermagem num melhor ratio, e com monitorização dos sinais vitais mais
cuidada. E foi numa dessas manhãs, em que assistia/participava na observação de
um doente bastante grave... que eu explodi! Era um homem novo, que estava em
coma de etiologia desconhecida... E aqui começa o caminho para o meu abismo...
Deixem-me apresentar o vilão desta história, o Professor de Medicina
Interna.... um homem magro, de cabelo e barba longa completamente brancos, nos
seus 60-70 anos, e que de professor nada tinha, e ao que se diz nem a
especialidade de medicina interna teria, mas aqui, a idade é um posto, e do
alto da sua arrogância ela podia dizer o que quisesse que ninguém o questionava.... nunca
tinha visto um pensamento médico tão desconexo, sustentado em montagens de
conhecimentos mal compreendidas, e perigosamente utilizados... Atirava
diagnósticos pior do que ao acaso, e tratáva-os em (des)conformidade... Aquilo
que nunca fazia era assumir que não sabe... de resto valia tudo! E se no mundo
da medicina moderna, com tudo à disposição há tanta coisa que não sabemos, ou
não compreendemos em primeira análise, imaginem no meio da guerra do
Afeganistão.... Já sabia da sua arrogância e prepotência, mas nunca pensei que
me afectasse de tal forma...
Este doente estava inconsciente, tinha cerca de 30 anos, e do pouco que eu
sabia da história clínica, quer porque ninguém sabia explicar, e /ou “lost in
translation” , juntamente com a clínica do doente, levava-me a várias hipóteses
diagnósticas mas sem nenhuma certeza aproximada do que se estava a passar: Epilepsia,
Hemorragia Cerebral, Meningo-Encefalite.... era o que pairava nos meus
pensamentos... mas o Professor em poucos segundos de profunda reflexão fez um
diagnóstico brilhante: Intoxicação por Organofosforados (que é um veneno,
pesticida, herbicida).... e relativamente frequente por estas bandas... Mas
este diagnóstico, não fazia qualquer sentido, porque o doente estava bastante
taquicárdico (FC 140 bpm) e com as pupilas midriáticas (grandes) .... e os
Organofosforados fazem exactamente o oposto...
Por isso quando o Professor “atira” o diagnóstico, com os médicos mais
novos todos a acenar a cabeça, eu vejo-me obrigado a opinar.... e muito educadamente
com o máximo de diplomacia possível, digo:
“Desculpe Professor, mas a Intoxicação por Organofosforados, provoca bradicardia
e pupilas mióticas.”
E ele, que não está habituado a sequer ser questionado, responde-me curto e
grosso, com um sorrisinho irónico e ar de ofendido: “Provoca TAQUICARDIA” .... e
eu no auge da minha ingenuidade achei que a ciência poderia ser unificadora, e
expliquei:
”Os Organofosforados inibem as acetilcolinesterases, e levam a acumulação
de acetilcolina que provoca BRADICARDIA” .... mas a ciência não chegou, para
iniciar qualquer diálogo... o respeitado Professor, desprezou-me, não
respondeu, virou-me literalmente as costas, e disse qualquer coisa em Pashtun,
que fez rir os seus discípulos da ignorância e prescreveu o tratamento (atropina)!) para um
diagnóstico sem nexo, que poderia até matar o doente...
Fiquei revoltado! Senti-me humilhado por um homem mau, orgulhoso da sua
ignorância... e senti-me completamente impotente! Impotente para tentar salvar
a vida a este homem, mas que provavelmente também não poderia fazer nada por
ele, mas acima de tudo frustrado, pela sensação de inutilidade e incapacidade
de lutar pelos objectivos a que me propus: salvar vidas...
E por motivos que jamais pensei que fossem ser os grandes limitadores, de
fazer com que este sofrido povo tivesse uma medicina com um pouco mais de
qualidade... via que o meu esforço era completamente em vão... Que ignorância!
Que arrogância! Que imbecil! Que assassino! Estupor! Tudo! Apetecia-me
esganá-lo, pelo que me estava a fazer sentir.... e o que me veio à cabeça foi;
se não sou útil, vou-me embora para Portugal. Se deixei a minha querida mãe com
lágrimas no aeroporto, é para fazer a diferença.... não é para estar aqui a
passar o tempo.... Num minuto, estava decidido, também eu fui derrotado pelo
Afeganistão:
Quero-me ir embora!
Incrível quando olho para trás e no meio de uma guerra, com bombas a
explodir, o que me fez querer desistir e vir embora, foi a frustração de não
ser medicamente útil....
DESISTO, já imaginava a conversa que iria ter com o meu chefe... quando
entra de rompante, o enfermeiro responsável do bloco, com cara de pânico e
apreensão e me diz; “Rápido, a Dra. Anja, está a chamá-lo com urgência no
serviço de Urgência!!”
Larguei tudo e fui a correr...
(continua)