Faltam-me conhecer algumas das capitais mais problemáticas do mundo, assim de repente estou a pensar em Juba e Mogadishu, mas arrisco-me a dizer que Bangui é a capital mais pobre, e mais subdesenvolvida do mundo no que à medicina diz respeito, quer em termos de infraestruturas, quer em termos de recursos humanos. Não há nada! O que faz com que as ONGs sejam praticamente as únicas estruturas de saúde em funcionamento com alguma qualidade e gratuitidade... Eu tive o desprazer de me cruzar em circunstâncias diferentes com algumas estruturas do ministério da saúde, e é assustador ver a carência de tudo, ver a corrupção, ver a falta de qualidade e a sub-preparação dos diferentes profissionais... doí na alma imaginarmos a quantidade de gente que morre que não “teria” que morrer.
E por isso uma das prioridades dos Médicos Sem Fronteiras
foi tomar conta da maternidade principal de Bangui. Aqui a palavra “principal”
pode ser muito ilusória, pois esta maternidade de Bangui tinha/tem infraestruturas
muito simples, pequenas e limitadas. Mas como sempre o selo de qualidade dos
MSF faz com que, quase como que por magia se faça muito com pouco... Muito,
pois a casuística de partos e cesarianas está acima de alguns hospitais de
referência do Porto e de Lisboa, e com pouco, porque com meia dúzia de salas se
faz, um bloco operatório, salas de partos, neonatologia, salas de internamento,
laboratório, cozinha, lavandaria, etc, etc... e estávamos ainda preparados para
um grande influxo de feridos pois estávamos situados numa das zonas mais
perigosas e voláteis da cidade.
Acho que todos já ouvimos falar do tempo em que as mulheres
morriam no parto... Não sabemos bem a que distância esse triste fenómeno está
da nossa existência. Serão histórias de avós de avós, ou de filmes da época em
que a medicina estava a dar os seus primeiros passos como ciência... “Dantes
morria-se no parto”, “A criança nasceu bem, mas a mãe morreu”... são frases que
nós sabemos que já foram de uso comum... Mas felizmente são verdades de outros
tempos... É raríssimo hoje em dia uma morte materna... Tão raro, tão raro que
se torna difícil fazer estatística sobre o assunto, e que bom que assim o é! Em
cerca de 14-15 anos de Anestesista e depois Intensivista em hospitais centrais
acho que só morreu 1 mulher, e eu nem sequer vi, simplesmente ouvi falar por
ter sido no hospital onde eu trabalhava... e muita reflexão se fez sobre esta
catástrofe que no caso, foi uma complicação raríssima (Embolia de Líquido
Amniótico). Não é por acaso que se diz que as especialidades médicas que mais evoluíram
em termos de segurança nas últimas décadas foram a Anestesia e a Obstetrícia, e
que alegria poder dizer que a probabilidade de uma mulher morrer no parto é quase
nula! ... Excepto no mundo dos pobres! Nos países subdesenvolvidos a
probabilidade de uma mulher morrer no período peri-parto é elevadíssima... Gravidezes
não vigiadas, a multiparidade, mas acima de tudo uma ausência de acesso a cuidados
de saúde explica esta disparidade de mundos tão gritante. E assim estão os MSF
em Bangui a lutar contra a corrente da injustiça e da indiferença, num dos
pontos do planeta mais necessitados dos nossos dias...
A maternidade fazia cerca de 400 partos por mês... é imenso!
E já sabia que era uma questão estatística até me vir parar às mãos uma jovem
em estado grave... E este dia, foi o dia. Foi a minha primeira doente “a doer”,
o meu primeiro grande desafio...
Chamam-me à sala de partos (eu normalmente estou no bloco
operatório) para ver uma doente com uma Pré-Eclâmpsia chegada há pouco, que
levanta preocupações...
A sala de partos impressiona os mais sensíveis... Não
existem epidurais, não existe analgesia de parto... O que faz com que os gritos
das contrações ecoem pelas paredes da sala ganhando o estatuto de banda sonora
que embala qualquer pensamento que possamos estar a ter naquela envolvência.
Eu vou-lhe chamar Brigitte. A Brigitte tem 3 filhos. A
Brigitte tinha uns kilos a mais, mesmo tendo em conta que estava no fim da sua
gravidez. Estava em trabalho de parto de um feto morto. É triste, mas é
frequente nesta realidade. E como tal, o meu coração nem um batimento acelera
com esta informação. Foi-lhe diagnosticado Pré-Eclâmpsia por ter hipertensão arterial,
embora não muito aumentada 150/100 MmHg, proteínas na urina (medidas com teste
rápido) e os edemas eram frustres ou mesmo ausentes, que seria o 3º elemento da
Tríade Diagnóstica desta doença hipertensiva da gravidez. Não se compreende ao
detalhe esta patologia, mas sabe-se que é a inserção da placenta que causa este
síndrome que tem um espectro de gravidade muito variável, mas é com frequência
fatal se não tratado, e o tratamento é o parto e a retirada da placenta. Eu já
vi muitas mulheres a morrerem por Pré-Eclâmpsia nas minhas missões pelo mundo.
E não queria que a Brigitte fosse mais uma. Há sinais que me preocupam de
imediato na primeira “vista de olhos... Em termos de neurológicos, ou seja, de
comportamento, é difícil destrinçar entre uma mulher que está com dores e algo
traumatizada, e aquilo que me parecia ser uma agitação, desorientação, confusão
difíceis de concretizar mais ainda não percebendo a língua... O facto de não
ter edemas pode deixar descansados os mais desatentos, mais já fiz muitas
reflexões sobre o assunto, e na minha cabeça fica a incógnita da gravidade
desta doença versus o nível de desidratação... Que se vem a confirmar pela
coloração e quantidade da urina.... Eu abro as perfusões de fluídos no máximo
para compensar a desidratação grave, e parto para o bloco acompanhado das
minhas reflexões clínicas, na preparação de toda a equipa do bloco operatório
para a cesariana que se adivinhava.
E assim foi. O expectro de preocupação da Pré-Eclâmpsia
juntamente com uma evolução lenta do trabalho de parto de um feto morto,
levaram-nos a decidir rapidamente por uma cesariana. Já no bloco numa avaliação
mais cuidada, continuo preocupado com as alterações de comportamento, e com os
sinais de icterícia na esclera ocular... Durante a cirurgia o meu estado de
alerta aumenta... A tensão arterial começa a baixar e há uma percepção de
coagulopatia (alterações da coagulação que aumentam a hemorragia)... Sai o feto
morto que é sempre algo de visualmente muito doloroso, e com o feto sai também
um grito silencioso de revolta para comigo próprio “que mundo é este que me faz
pensar que aqui, isto é normal?!”
Terminamos a cirurgia preocupados... A tensão relativamente
baixa (mais preocupante ainda depois de ter estado hipertensa), pequenas
hemorragias em diferentes locais... Vaginais pela não contração totalmente eficaz
do útero, na cicatriz abdominal cirúrgica, e em alguns pontos onde eu coloquei
cateteres para as perfusões de fluídos... Em particular uma pequena hemorragia
de um cateter que teve no pescoço que teima em não parar... A diurese está
sofrível nos limites inferiores do normal, e os pulmões começam a dar sinais de
líquidos a mais...
Temos uma Pré-Eclâmpsia com vários sinais de preocupação,
eventualmente agravada por um síndrome de HEELP (“hemolysis, elevated liver enzyme levels, and low
platelet levels”) o tratamento principal é o parto e está feito. Agora eu tenho
de a “aguentar” 24 a 48 horas, que é o tempo que normalmente leva a todo este
síndrome se reverter e normalizar... E neste “aguentar” está a nobreza do
trabalho de uma anestesista, e com recursos muito limitados tenho que reflectir
sobre as funções dos órgãos mais nobres: cérebro, coração, pulmões, rins,
fígado e as interacções entre eles... E uma grande vontade de lutar contra o
normal desta zona de África, na batalha contra a natureza que nos proporciona
enormíssimos desafios clínicos...
Fiquei
no hospital tantas horas quanto pude, para partilhar com todos as minhas
preocupações, as minhas orientações médicas, para esta gestão dificílima de
tensão arterial baixa, pulmões encharcados, diurese no limite, grande agitação
psico-motora alternada com sonolência e uma provável insuficiência hepática...
Não temos ventilador, nem a possibilidade de usar uma seringa perfusora para a
perfusão de adrenalina (ou uma das suas primas) que estaria claramente indicada
nesta situação... A falta de exames de diagnóstico também deixam muitas
perguntas por responder...
Vou
para casa com o telemóvel numa mão e o coração na outra... Pego nos dois e ligo
para o hospital passado umas horas... Tudo na mesma. Mal, mas estável... Preocupante,
mas sem se degradar... E na minha cabeça gira a fisiopatologia destes síndromes
e a sua evolução temporal expectável... Resta-me a convicção de que a natureza
fará também o seu papel na recuperação.
Na
manhã seguinte vou a voar para a sala de recobro onde a Brigitte se encontrava,
com o medo de que a Brigitte não tivesse sobrevivido aos perigos da noite... Só
respiro fundo quando a vejo... Trocado por miúdos, igual. Mal, mas estável, não
pior. Talvez fossem boas notícias tendo em conta que ainda nem 24 horas tinham
passado, desde o parto... Isto sou eu a animar-me, porque bom, bom era que ela
estivesse melhor. E não estava. Ao longo do dia o meu optimismo ia desvanecendo...
E a doente ia piorando... Mais sonolenta e não colaborante, tensão arterial a
descer, assim como a diurese, e os pulmões a não me deixarem dar mais
fluídos... Ao longo do dia desdobro os meus pensamentos em todas as peças, vejo
e revejo os documentos de tratamento das minhas diferentes hipóteses
diagnósticas... e mergulho em dúvidas sobre o que fazer. Começo uma perfusão de
adrenalina correndo o risco de o fazer sem uma seringa perfusora, o que pode
ser perigoso. Repito e insisto nos cuidados a ter com este tipo de tratamento a
todos os enfermeiros que comigo trabalham... É como encontrar o equilíbrio em
cima de um arame, em que a queda é fatal... Sem o cateter apropriado, se a
adrenalina deixar de entrar a tensão arterial baixa e o doente pode morrer... Se
alguém se distrair e entrar demasiada adrenalina o doente pode também morrer
por arritmia (ou outros)... Não é boa ideia começar estratégias desconhecidas
para os demais e com tantos riscos... Mas no meu entender, já não tinha outra
hipótese... O panorama geral melhor após a adrenalina, mas a minha inquietude mantem-se...
e o tempo joga contra mim e contra a Brigitte.
Mais
uma noite a dormir com o coração nas mãos entre telefonemas para repetir orientações,
e absorver toda a informação que me ajudasse a salvar a vida a esta mulher...
Seria tão fácil pensar que é “apenas” mais uma a morrer no meio de África e dormir
descansado... Mas o que me leva a atravessar continentes e oceanos é a vontade
de fazer por todos o que gostaria que fizessem por mim e pelos meus...
Dormi
muito mal... e muito mal continua a doente. Sem grandes intercorrências, mas já
era tempo de estar a melhorar... Os meus fusíveis científicos já não escondem a
incompreensão. Do ponto de vista hemodinâmico sem grandes novidades, continua a
precisar da adrenalina para ter uma tensão arterial e uma diurese aceitáveis...
e está practicamente em coma... Começo a pensar se não há aqui um diagnóstico
que me está a escapar... E à primeira vez que tem uma hipoglicemia, tocam-se
sinos na minha cabeça: “É o Fígado!”... Volto a estudar mais a fundo alguns
documentos orientados por esta pista nova... Sendo ou não verdade o meu
raciocínio até agora, pois teve provavelmente uma Pré-Eclâmpsia, terá
provavelmente um Fígado Gordo da Gravidez, uma doença muito rara (que eu nunca
tinha visto) que pode complicar o final da gravidez... com encefalopatia,
icterícia e hipoglicemias... A ciência na minha cabeça ajusta-se à nova
leitura, embora não haja nenhum tratamento específico, a não ser o transplante
hepático nos casos mais graves... e que para nós era tão possível como viajar
até ao sol.
Entre
outras doentes que vamos operando, estou com a Brigitte a toda a hora, fazendo
questão de tudo explicar e re-explicar... pelo interesse em salvar a vida à
Brigitte, e pela vontade de deixar um legado de formação e conhecimento in
loco, que será sempre a grande solução para as disparidades do nosso mundo, o
ensino! Vamos corrigindo as hipoglicemias, gerindo a perfusão de adrenalina e
até tentando alimentá-la por uma sonda naso-gástrica tendo em conta que ela
está em estado comatoso.
Vou
para casa com a mesma preocupação e muitas perguntas por responder... Vários
telefonemas até ir dormir... Nada de novo.
O
passar dos dias, já vai fazer 72 horas, leva a uma diminuição do stress por
habituação... E entro no hospital com mais calma para reavaliar a Brigitte...
Mas levo uma grande chapada da primeira pessoa que encontro: “A Brigitte
morreu!”... Fúria, revolta, incompreensão... Porquê? Como? Porque não me
ligaram? Não sei até hoje o que realmente a levou à morte em última análise,
mas vamos assumir que foi a natureza que a matou, sem fugir nem um centímetro à
minha total responsabilidade... Não sei o que poderia ter feito melhor...
Eu
queria voltar para casa e poder olhar para o espelho e dizer: “comigo elas não
morrem!”... mas não é verdade!
Desculpa
Brigitte, as mulheres ainda morrerem no parto! Desculpa o mundo (ainda) não
querer saber que morram milhares de mulheres durante o parto todos os dias,
pintando a sangue um rasto de sofrimento inimaginável nos filhos que crescem
sem as mães...
Desculpa
Brigitte, a vida não ter o mesmo valor aqui e aí! Desculpa por os teus filhos
terem de viver sem mãe! Desculpa por não veres os teus filhos a crescer.
Desculpa.
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