RCA 3.0 - O que a vida vale aqui e aí



Faltam-me conhecer algumas das capitais mais problemáticas do mundo, assim de repente estou a pensar em Juba e Mogadishu, mas arrisco-me a dizer que Bangui é a capital mais pobre, e mais subdesenvolvida do mundo no que à medicina diz respeito, quer em termos de infraestruturas, quer em termos de recursos humanos. Não há nada! O que faz com que as ONGs sejam praticamente as únicas estruturas de saúde em funcionamento com alguma qualidade e gratuitidade... Eu tive o desprazer de me cruzar em circunstâncias diferentes com algumas estruturas do ministério da saúde, e é assustador ver a carência de tudo, ver a corrupção, ver a falta de qualidade e a sub-preparação dos diferentes profissionais... doí na alma imaginarmos a quantidade de gente que morre que não “teria” que morrer.

E por isso uma das prioridades dos Médicos Sem Fronteiras foi tomar conta da maternidade principal de Bangui. Aqui a palavra “principal” pode ser muito ilusória, pois esta maternidade de Bangui tinha/tem infraestruturas muito simples, pequenas e limitadas. Mas como sempre o selo de qualidade dos MSF faz com que, quase como que por magia se faça muito com pouco... Muito, pois a casuística de partos e cesarianas está acima de alguns hospitais de referência do Porto e de Lisboa, e com pouco, porque com meia dúzia de salas se faz, um bloco operatório, salas de partos, neonatologia, salas de internamento, laboratório, cozinha, lavandaria, etc, etc... e estávamos ainda preparados para um grande influxo de feridos pois estávamos situados numa das zonas mais perigosas e voláteis da cidade.

Acho que todos já ouvimos falar do tempo em que as mulheres morriam no parto... Não sabemos bem a que distância esse triste fenómeno está da nossa existência. Serão histórias de avós de avós, ou de filmes da época em que a medicina estava a dar os seus primeiros passos como ciência... “Dantes morria-se no parto”, “A criança nasceu bem, mas a mãe morreu”... são frases que nós sabemos que já foram de uso comum... Mas felizmente são verdades de outros tempos... É raríssimo hoje em dia uma morte materna... Tão raro, tão raro que se torna difícil fazer estatística sobre o assunto, e que bom que assim o é! Em cerca de 14-15 anos de Anestesista e depois Intensivista em hospitais centrais acho que só morreu 1 mulher, e eu nem sequer vi, simplesmente ouvi falar por ter sido no hospital onde eu trabalhava... e muita reflexão se fez sobre esta catástrofe que no caso, foi uma complicação raríssima (Embolia de Líquido Amniótico). Não é por acaso que se diz que as especialidades médicas que mais evoluíram em termos de segurança nas últimas décadas foram a Anestesia e a Obstetrícia, e que alegria poder dizer que a probabilidade de uma mulher morrer no parto é quase nula! ... Excepto no mundo dos pobres! Nos países subdesenvolvidos a probabilidade de uma mulher morrer no período peri-parto é elevadíssima... Gravidezes não vigiadas, a multiparidade, mas acima de tudo uma ausência de acesso a cuidados de saúde explica esta disparidade de mundos tão gritante. E assim estão os MSF em Bangui a lutar contra a corrente da injustiça e da indiferença, num dos pontos do planeta mais necessitados dos nossos dias...

A maternidade fazia cerca de 400 partos por mês... é imenso! E já sabia que era uma questão estatística até me vir parar às mãos uma jovem em estado grave... E este dia, foi o dia. Foi a minha primeira doente “a doer”, o meu primeiro grande desafio...

Chamam-me à sala de partos (eu normalmente estou no bloco operatório) para ver uma doente com uma Pré-Eclâmpsia chegada há pouco, que levanta preocupações...  
A sala de partos impressiona os mais sensíveis... Não existem epidurais, não existe analgesia de parto... O que faz com que os gritos das contrações ecoem pelas paredes da sala ganhando o estatuto de banda sonora que embala qualquer pensamento que possamos estar a ter naquela envolvência.

Eu vou-lhe chamar Brigitte. A Brigitte tem 3 filhos. A Brigitte tinha uns kilos a mais, mesmo tendo em conta que estava no fim da sua gravidez. Estava em trabalho de parto de um feto morto. É triste, mas é frequente nesta realidade. E como tal, o meu coração nem um batimento acelera com esta informação. Foi-lhe diagnosticado Pré-Eclâmpsia por ter hipertensão arterial, embora não muito aumentada 150/100 MmHg, proteínas na urina (medidas com teste rápido) e os edemas eram frustres ou mesmo ausentes, que seria o 3º elemento da Tríade Diagnóstica desta doença hipertensiva da gravidez. Não se compreende ao detalhe esta patologia, mas sabe-se que é a inserção da placenta que causa este síndrome que tem um espectro de gravidade muito variável, mas é com frequência fatal se não tratado, e o tratamento é o parto e a retirada da placenta. Eu já vi muitas mulheres a morrerem por Pré-Eclâmpsia nas minhas missões pelo mundo. E não queria que a Brigitte fosse mais uma. Há sinais que me preocupam de imediato na primeira “vista de olhos... Em termos de neurológicos, ou seja, de comportamento, é difícil destrinçar entre uma mulher que está com dores e algo traumatizada, e aquilo que me parecia ser uma agitação, desorientação, confusão difíceis de concretizar mais ainda não percebendo a língua... O facto de não ter edemas pode deixar descansados os mais desatentos, mais já fiz muitas reflexões sobre o assunto, e na minha cabeça fica a incógnita da gravidade desta doença versus o nível de desidratação... Que se vem a confirmar pela coloração e quantidade da urina.... Eu abro as perfusões de fluídos no máximo para compensar a desidratação grave, e parto para o bloco acompanhado das minhas reflexões clínicas, na preparação de toda a equipa do bloco operatório para a cesariana que se adivinhava.  

E assim foi. O expectro de preocupação da Pré-Eclâmpsia juntamente com uma evolução lenta do trabalho de parto de um feto morto, levaram-nos a decidir rapidamente por uma cesariana. Já no bloco numa avaliação mais cuidada, continuo preocupado com as alterações de comportamento, e com os sinais de icterícia na esclera ocular... Durante a cirurgia o meu estado de alerta aumenta... A tensão arterial começa a baixar e há uma percepção de coagulopatia (alterações da coagulação que aumentam a hemorragia)... Sai o feto morto que é sempre algo de visualmente muito doloroso, e com o feto sai também um grito silencioso de revolta para comigo próprio “que mundo é este que me faz pensar que aqui, isto é normal?!”

Terminamos a cirurgia preocupados... A tensão relativamente baixa (mais preocupante ainda depois de ter estado hipertensa), pequenas hemorragias em diferentes locais... Vaginais pela não contração totalmente eficaz do útero, na cicatriz abdominal cirúrgica, e em alguns pontos onde eu coloquei cateteres para as perfusões de fluídos... Em particular uma pequena hemorragia de um cateter que teve no pescoço que teima em não parar... A diurese está sofrível nos limites inferiores do normal, e os pulmões começam a dar sinais de líquidos a mais...

Temos uma Pré-Eclâmpsia com vários sinais de preocupação, eventualmente agravada por um síndrome de HEELP (“hemolysis, elevated liver enzyme levels, and low platelet levels”) o tratamento principal é o parto e está feito. Agora eu tenho de a “aguentar” 24 a 48 horas, que é o tempo que normalmente leva a todo este síndrome se reverter e normalizar... E neste “aguentar” está a nobreza do trabalho de uma anestesista, e com recursos muito limitados tenho que reflectir sobre as funções dos órgãos mais nobres: cérebro, coração, pulmões, rins, fígado e as interacções entre eles... E uma grande vontade de lutar contra o normal desta zona de África, na batalha contra a natureza que nos proporciona enormíssimos desafios clínicos...

Fiquei no hospital tantas horas quanto pude, para partilhar com todos as minhas preocupações, as minhas orientações médicas, para esta gestão dificílima de tensão arterial baixa, pulmões encharcados, diurese no limite, grande agitação psico-motora alternada com sonolência e uma provável insuficiência hepática... Não temos ventilador, nem a possibilidade de usar uma seringa perfusora para a perfusão de adrenalina (ou uma das suas primas) que estaria claramente indicada nesta situação... A falta de exames de diagnóstico também deixam muitas perguntas por responder...

Vou para casa com o telemóvel numa mão e o coração na outra... Pego nos dois e ligo para o hospital passado umas horas... Tudo na mesma. Mal, mas estável... Preocupante, mas sem se degradar... E na minha cabeça gira a fisiopatologia destes síndromes e a sua evolução temporal expectável... Resta-me a convicção de que a natureza fará também o seu papel na recuperação.

Na manhã seguinte vou a voar para a sala de recobro onde a Brigitte se encontrava, com o medo de que a Brigitte não tivesse sobrevivido aos perigos da noite... Só respiro fundo quando a vejo... Trocado por miúdos, igual. Mal, mas estável, não pior. Talvez fossem boas notícias tendo em conta que ainda nem 24 horas tinham passado, desde o parto... Isto sou eu a animar-me, porque bom, bom era que ela estivesse melhor. E não estava. Ao longo do dia o meu optimismo ia desvanecendo... E a doente ia piorando... Mais sonolenta e não colaborante, tensão arterial a descer, assim como a diurese, e os pulmões a não me deixarem dar mais fluídos... Ao longo do dia desdobro os meus pensamentos em todas as peças, vejo e revejo os documentos de tratamento das minhas diferentes hipóteses diagnósticas... e mergulho em dúvidas sobre o que fazer. Começo uma perfusão de adrenalina correndo o risco de o fazer sem uma seringa perfusora, o que pode ser perigoso. Repito e insisto nos cuidados a ter com este tipo de tratamento a todos os enfermeiros que comigo trabalham... É como encontrar o equilíbrio em cima de um arame, em que a queda é fatal... Sem o cateter apropriado, se a adrenalina deixar de entrar a tensão arterial baixa e o doente pode morrer... Se alguém se distrair e entrar demasiada adrenalina o doente pode também morrer por arritmia (ou outros)... Não é boa ideia começar estratégias desconhecidas para os demais e com tantos riscos... Mas no meu entender, já não tinha outra hipótese... O panorama geral melhor após a adrenalina, mas a minha inquietude mantem-se... e o tempo joga contra mim e contra a Brigitte.

Mais uma noite a dormir com o coração nas mãos entre telefonemas para repetir orientações, e absorver toda a informação que me ajudasse a salvar a vida a esta mulher... Seria tão fácil pensar que é “apenas” mais uma a morrer no meio de África e dormir descansado... Mas o que me leva a atravessar continentes e oceanos é a vontade de fazer por todos o que gostaria que fizessem por mim e pelos meus...

Dormi muito mal... e muito mal continua a doente. Sem grandes intercorrências, mas já era tempo de estar a melhorar... Os meus fusíveis científicos já não escondem a incompreensão. Do ponto de vista hemodinâmico sem grandes novidades, continua a precisar da adrenalina para ter uma tensão arterial e uma diurese aceitáveis... e está practicamente em coma... Começo a pensar se não há aqui um diagnóstico que me está a escapar... E à primeira vez que tem uma hipoglicemia, tocam-se sinos na minha cabeça: “É o Fígado!”... Volto a estudar mais a fundo alguns documentos orientados por esta pista nova... Sendo ou não verdade o meu raciocínio até agora, pois teve provavelmente uma Pré-Eclâmpsia, terá provavelmente um Fígado Gordo da Gravidez, uma doença muito rara (que eu nunca tinha visto) que pode complicar o final da gravidez... com encefalopatia, icterícia e hipoglicemias... A ciência na minha cabeça ajusta-se à nova leitura, embora não haja nenhum tratamento específico, a não ser o transplante hepático nos casos mais graves... e que para nós era tão possível como viajar até ao sol.

Entre outras doentes que vamos operando, estou com a Brigitte a toda a hora, fazendo questão de tudo explicar e re-explicar... pelo interesse em salvar a vida à Brigitte, e pela vontade de deixar um legado de formação e conhecimento in loco, que será sempre a grande solução para as disparidades do nosso mundo, o ensino! Vamos corrigindo as hipoglicemias, gerindo a perfusão de adrenalina e até tentando alimentá-la por uma sonda naso-gástrica tendo em conta que ela está em estado comatoso.

Vou para casa com a mesma preocupação e muitas perguntas por responder... Vários telefonemas até ir dormir... Nada de novo.

O passar dos dias, já vai fazer 72 horas, leva a uma diminuição do stress por habituação... E entro no hospital com mais calma para reavaliar a Brigitte... Mas levo uma grande chapada da primeira pessoa que encontro: “A Brigitte morreu!”... Fúria, revolta, incompreensão... Porquê? Como? Porque não me ligaram? Não sei até hoje o que realmente a levou à morte em última análise, mas vamos assumir que foi a natureza que a matou, sem fugir nem um centímetro à minha total responsabilidade... Não sei o que poderia ter feito melhor...

Eu queria voltar para casa e poder olhar para o espelho e dizer: “comigo elas não morrem!”... mas não é verdade!

Desculpa Brigitte, as mulheres ainda morrerem no parto! Desculpa o mundo (ainda) não querer saber que morram milhares de mulheres durante o parto todos os dias, pintando a sangue um rasto de sofrimento inimaginável nos filhos que crescem sem as mães...

Desculpa Brigitte, a vida não ter o mesmo valor aqui e aí! Desculpa por os teus filhos terem de viver sem mãe! Desculpa por não veres os teus filhos a crescer. Desculpa.




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