Estava em Bangui há cerca de uma semana, ainda era tudo
fresco e novidade para mim, quando todos recebemos a convocatória para as
celebrações do Dia Internacional da Mulher, na sede dos Médicos Sem Fronteiras
(MSF). Em primeira análise até me pareceu ridículo, que me tirassem uma tarde
de trabalho para assistir não sei bem a quê. Meio contrariado, mas de cara
alegre lá fui, mais que não seja pelo espírito de equipa que é fundamental...
A grande vantagem, é que é tudo ao ar livre e com um clima
maravilhoso... A enorme palhota onde se iam desenrolar os acontecimentos é
completamente aberta para todos os lados... só nos protege da chuva, que quando
cai é sempre um diluvio, e do sol que é abrasador... Mesmo que fosse aborrecido
a envolvência é agradável.
Começam os discursos. Eu estava preparado para tudo e para
nada, mas não estava certamente à espera disto. São palavras vindas do fundo da
alma, nascidas no coração de África e de quem sabe o que fala e sente cada
palavra que diz. A audiência somos todos nós dos MSF, sem rádios ou televisões,
o dia é delas, mulheres centro-africanas... e eu derretia-me ao ouvir das
intervenções mais simples, sentidas, profundas, simbólicas e inspiradoras que
ouvi até hoje...
Abertamente se falou da vida da mulher africana... Da
fragilidade imposta pela sociedade, da forma como eram preteridas para ir à
escola, da forma como são exploradas em trabalhos árduos do acordar ao deitar,
da quantidade de mulheres que morre pelo país fora a dar à luz, do facto de
serem as principais vítimas desta guerra terrível, dos medos constantes de
serem violadas, das mortes por abortos clandestinos, das vítimas de violência extrema
por tiros e por machetes, e na forma e na quantidade brutal de mulheres que de
uma forma ou de outra já foi usada como objecto sexual à força... Palavras
vindas do fundo da alma, de quem fala em seu nome e por todas as mulheres de um
país e porque não dizer de uma grande fatia de um continente? Palavras vindas
de quem sente a dimensão e complexidade do problema, mas também dedica todos os
seus esforços e trabalho em prol da solução, ao acreditar com unhas e dentes na
importância do trabalho dos MSF que aqui em Bangui, salvam centenas e milhares de
mulheres do que seria a história natural desta gente, se não fosse todo o
esforço e dedicação dos que fazem os MSF acontecer.
Eu fiquei com os olhos vidrados e húmidos de comoção. Fiquei
paralisado nas minhas reflexões, ao viajar nas palavras destas mulheres, sobre
mulheres do seu país do seu continente que carregam às costas muito mais do que
crianças e fardos pesados... Carregam o estigma da fragilidade feminina que é
explorada pela crueldade do homem na sua ambição plena, que é recheada de
maldade, ignorância e total indiferença pelo sofrimento de cada mulher... Para
mim foi um banho de realidade, que faz sentir gratidão pelo privilégio de colaborar
numa missão tão nobre. E se dúvidas houvesse, nestes momentos em que o coração
tem via aberta para o cérebro, encontro a plenitude da motivação para fazer o
que faço e estar onde estou. “É por isto que deixo tudo para trás!” ... era a
frase que ressaltava nos meus pensamentos, ao absorver a pureza e a emoção das
palavras que se faziam ouvir naquela palhota...
E depois canta-se... para que o corpo, a alma e o coração
entrem em ebulição... E para quem nada percebe da língua, é hipnotizado pela
sua imaginação...
E depois partilha-se uma cerveja, que se tivermos sorte está
fresca... e dança-se forte à boa maneira africana... como se não houvesse
amanhã... porque por vezes, não há!
É uma honra enorme que não sei medir, ser companheiro de
trabalho de toda esta gente...
E que significado mais importante poderia ter o Dia
Internacional da Mulher?
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