RCA 4.0 - Dia Internacional da Mulher

Estava em Bangui há cerca de uma semana, ainda era tudo fresco e novidade para mim, quando todos recebemos a convocatória para as celebrações do Dia Internacional da Mulher, na sede dos Médicos Sem Fronteiras (MSF). Em primeira análise até me pareceu ridículo, que me tirassem uma tarde de trabalho para assistir não sei bem a quê. Meio contrariado, mas de cara alegre lá fui, mais que não seja pelo espírito de equipa que é fundamental...



A grande vantagem, é que é tudo ao ar livre e com um clima maravilhoso... A enorme palhota onde se iam desenrolar os acontecimentos é completamente aberta para todos os lados... só nos protege da chuva, que quando cai é sempre um diluvio, e do sol que é abrasador... Mesmo que fosse aborrecido a envolvência é agradável.

Os colaboradores dos Médicos Sem Fronteiras vão chegando... São na sua grande maioria mulheres... Enfermeiras, enfermeiras-parteiras, psicólogas, promotoras de saúde, e também de muitas áreas não médicas... E neste desfile de entrada de gente eu estou maravilhado com a exposição a céu aberto de alta costura... Diga-se que tenho uma sensibilidade para a moda de um calhau. Mas aqui é diferente. As cores são vivas. E eu adoro cor. Os tecidos são todos bem típicos, bem africanos. Há todas as cores do arco-íris, e todas bem fortes, cheias de garra. E eu admiro que mantenham sempre a sua identidade. As linhas do corpo são bem moldadas e as curvas são muitas. Os chapéus são ousados, vistosos, espampanantes e de recorte fino... Não há como não ficar encantado pela beleza deste espetáculo que começa a amarrar as minhas atenções e aí vai crescendo um friozinho na barriga e um calor no coração... Não há dúvida que são mulheres bem africanas, orgulhosas do que representam e empenhadas por mostrar a tudo e todos o profundo simbolismo deste dia.

Não vou esconder que este dia sempre me passou um bocado ao lado, assim como tantos outros “dias mundiais de”... O que faz de mim bastante ignorante. E talvez a única vantagem de ser ignorante é o prazer de aprender e abraçar emoções virgens com espírito aberto para nosso crescimento pessoal... A nossa ignorância é a nossa zona mágica, para onde devemos viajar, para onde devemos olhar com atenção... porque o que já sabemos interessa muito menos, já não nos vai ensinar nada, apenas nos torna fechados, prepotentes e incapazes de crescer... E aí estava eu a abrir a minha mente, disponível para ser surpreendido, com vontade de aprender sobre o mundo e sobre as pessoas... mais precisamente, sobre as mulheres.

Começam os discursos. Eu estava preparado para tudo e para nada, mas não estava certamente à espera disto. São palavras vindas do fundo da alma, nascidas no coração de África e de quem sabe o que fala e sente cada palavra que diz. A audiência somos todos nós dos MSF, sem rádios ou televisões, o dia é delas, mulheres centro-africanas... e eu derretia-me ao ouvir das intervenções mais simples, sentidas, profundas, simbólicas e inspiradoras que ouvi até hoje...
Abertamente se falou da vida da mulher africana... Da fragilidade imposta pela sociedade, da forma como eram preteridas para ir à escola, da forma como são exploradas em trabalhos árduos do acordar ao deitar, da quantidade de mulheres que morre pelo país fora a dar à luz, do facto de serem as principais vítimas desta guerra terrível, dos medos constantes de serem violadas, das mortes por abortos clandestinos, das vítimas de violência extrema por tiros e por machetes, e na forma e na quantidade brutal de mulheres que de uma forma ou de outra já foi usada como objecto sexual à força... Palavras vindas do fundo da alma, de quem fala em seu nome e por todas as mulheres de um país e porque não dizer de uma grande fatia de um continente? Palavras vindas de quem sente a dimensão e complexidade do problema, mas também dedica todos os seus esforços e trabalho em prol da solução, ao acreditar com unhas e dentes na importância do trabalho dos MSF que aqui em Bangui, salvam centenas e milhares de mulheres do que seria a história natural desta gente, se não fosse todo o esforço e dedicação dos que fazem os MSF acontecer.

Eu fiquei com os olhos vidrados e húmidos de comoção. Fiquei paralisado nas minhas reflexões, ao viajar nas palavras destas mulheres, sobre mulheres do seu país do seu continente que carregam às costas muito mais do que crianças e fardos pesados... Carregam o estigma da fragilidade feminina que é explorada pela crueldade do homem na sua ambição plena, que é recheada de maldade, ignorância e total indiferença pelo sofrimento de cada mulher... Para mim foi um banho de realidade, que faz sentir gratidão pelo privilégio de colaborar numa missão tão nobre. E se dúvidas houvesse, nestes momentos em que o coração tem via aberta para o cérebro, encontro a plenitude da motivação para fazer o que faço e estar onde estou. “É por isto que deixo tudo para trás!” ... era a frase que ressaltava nos meus pensamentos, ao absorver a pureza e a emoção das palavras que se faziam ouvir naquela palhota...

E depois canta-se... para que o corpo, a alma e o coração entrem em ebulição... E para quem nada percebe da língua, é hipnotizado pela sua imaginação...
E depois partilha-se uma cerveja, que se tivermos sorte está fresca... e dança-se forte à boa maneira africana... como se não houvesse amanhã... porque por vezes, não há!

É uma honra enorme que não sei medir, ser companheiro de trabalho de toda esta gente...


E que significado mais importante poderia ter o Dia Internacional da Mulher?

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