Acho que é preciso uma certa coragem para
escrever esta história, da mesma forma que será necessário alguma coragem para
a ler. Isto é apenas uma história de muitas, do dia-a-dia de uma África que
poucos imaginam que exista. É não é de um passado longínquo... é de ontem, de
hoje, e infelizmente de amanhã...
Já muito vi eu, mas como a história desta
rapariga nada parecido tinha cruzado a minha vida de médico.
Vou-lhe chamar Maria. A Maria tinha 22 anos
quando a conheci, e chegou-nos à maternidade de Bangui em circunstâncias muito
especiais. A razão pela qual a Maria nos foi enviada para a maternidade de
Bangui, foi para fazer um aborto. O aborto é ilegal na Rep.
Centro-Africana. O assunto é sensível, e
na minha opinião eticamente discutível... mas dadas as circunstâncias na minha
humilde opinião, o caso da Maria não me leva sequer a pestanejar sobre a
decisão. A Maria foi raptada por um grupo armado durante meses. É um dos grupos
mais famosos em África, o Lord Resistance Army (LRA) do Joseph Kony... que deu
origem a uma campanha americanizada chamada Kony 2012. Têm as suas raízes
ideológicas no Uganda, mas desde há muito que espalham o terror pelo RDCongo,
Rep. Centro-Africana e Sudão do Sul... Queimam aldeias, roubam crianças para o
seu exército, espalham uma violência de contornos que nem os filmes mais
sensacionalistas são capazes de descrever... A Maria foi raptada pelo LRA no
leste da Rep. Centro-Africana e ficou em cativeiro ambulante durante meses...
Foi violada uma e outra vez... por um, por dois, por todos... uma e outra
vez.... vezes sem conta, até a despejarem algures, nas condições em que eu a
conheci.
A violência sexual nestas zonas de conflito
deveria ser combatida como prioridade máxima da humanidade. Percebermos o que
estas mulheres passam, faz parecer a morte algo de bonito. É difícil perceber
em que momento das nossas vidas é que nós deixamos que isto aconteça, sem nos
levantarmos em revolta... E por mais difícil que nos pareça a solução... ela
existe. Tem que existir.
A Maria parecia ter perdido a expressão
humana. Não ria, não chorava, parecia desprovida de emoções... O olhar era
vazio, talvez de desistência, talvez de trauma profundo, talvez de revolta,
certamente de tudo um pouco. A Maria estava altamente desnutrida, não teria
menos de 1,65 m e pesada 19 quilos. Se me contassem, eu diria que esta história
era mentira, mas não é. Infelizmente não é. Estranho é, como é que do ponto de
vista médico foi possível que ela engravidasse num estado de desnutrição tão
grave. Estaria grávida de 8-10 semanas, com um útero minúsculo mas que
sobressaía num abdómen espalmado de pele e osso. Talvez as últimas semanas
tivessem sido mais agrestes em termos do mau tratamento que lhe deram... Muita
coisa eu não sei, muita coisa ninguém perguntava... Até porque a Maria mal
falava, não se segurava de pé e o pouco que sabíamos, que era já muito, era-nos
contado pelo marido. Sim, pelo marido.
Eu confesso que já há muito tempo na minha
prática médica que é quase sempre através dos familiares que levo as maiores
chapadas emocionais... Talvez por ter abraçado campos da medicina, com doentes
demasiado críticos, com quem eu nunca falo ou que morrem... e por isso, é
através dos familiares que vejo a humanidade, a pessoa que está por “de trás”
daquele doente para mim.
A história da Maria e o seu estado clínico
dilaceravam-me o coração... mas o marido, eu nem sei bem explicar... Eu não
conseguia sequer olhá-lo nos olhos, sem desatar a chorar, sem ser agredido pela
violência que aquela rapariga passou, sem levar com o ricochete dos tormentos
que este homem estava a passar... Até porque as histórias típicas destas zonas
do planeta das raparigas que são violadas, é a exclusão imediata da sua
comunidade. Como se não bastasse o sofrimento que passaram, ainda são ostracizadas
e abandonadas por todos... Mas o marido da Maria estava ali ao lado. Estava
sempre ali ao lado, interessado, preocupado e a ajudar em tudo o que era
preciso... que era bastante, porque a Maria nem conseguia comer ou beber
sozinha, tal era a debilidade da sua condição física.
Há coisas que não estão escritas em livro
nenhum de medicina. O que fazer com esta rapariga? Ninguém sabia muito bem se
era seguro fazer um aborto farmacológico num estado de desnutrição tão grave. O
objectivo era salvar-lhe a vida, claro está. E pareceu-nos que o mais sensato
era alimentá-la uns dias para que o seu organismo estivesse mais capaz de
suportar aquilo que é sempre disruptivo em termos fisiológicos e hormonais, a
“bomba” que é a interrupção voluntária da gravidez.
A minha vida continua, pois tenho muitas
doentes/parturientes... mas sempre assombrado com esta história... Não consigo
parar de pensar naquilo que esta rapariga passou. Acho que esta história marcou
um antes e um depois na minha vida... E a grande razão pela qual escrevo é a
vontade de ser fiel à revolta intensa que o sofrimento desta e de tantas outras
raparigas, causou em mim...
Cada vez que ao longo do dia passava para ver
como a Maria estava, sentia o estômago às voltas... Cada vez que o marido me
pedia para lhe fazer o ponto da situação, eu segurava as lágrimas com toda a
força, para depois as deixar sair em jacto num canto qualquer... As pessoas que
faziam o necessário acompanhamento psicológico estavam destruídas. Acho que a
história da Maria destruiu a vida a muita gente, mas deveria tirar o sono a
muitas mais...
E o ponto que dominava toda esta história era
o medo de perguntar. O medo de saber. Ajudar o mais possível, mas tentando
saber o menos possível... Ninguém estava preparado para saber tudo. Eu não
estava e ainda não estou. O pouco que soube tirou-me muitas noites de sono. O
que aconteceria se tudo soubesse?
Passaram uns dias, e a Maria parecia estar a
restabelecer algumas das suas forças... aos poucos parecia ter expressão
facial, ia-se alimentando aos poucos cada vez melhor, mas para minha grande
surpresa, numa das manhãs que chego ao hospital dizem-me que ela terá tido
crises epiléticas. Eu não tenho muita experiência com desnutrição grave, mas
não percebia o substrato cientifico para aquilo estar a acontecer... Tenho
sempre uma reacção de dúvida constructiva... As descrições e interpretações por
vezes são inconsistentes, e inespecíficas... e há sempre muito que se perde nas
passagens de turno e nas barreiras linguísticas. Nestas circunstâncias mais do
que nunca é preciso ver para crer. Até que vi mesmo. E vi várias vezes, algo
que realmente era estranho, pois tinha movimentos rítmicos mas frustres e também
alteração de consciência, mas como não estava bem consciente era difícil de avaliar...
Mas concordei com a interpretação das crises epilépticas e tratamos em
conformidade... Mais uma grande indecisão médica a acrescentar a todas as
outras que eu já tinha. O que é que se estava a passar? Que anti-epilético? Que
dose? A falta de exames laboratoriais exponenciam as minhas dúvidas ao
infinito... A epilepsia não é uma doença, é um sintoma. É preciso compreender o
porquê. E eu não compreendia, embora teorias hipotéticas, claro que tinha
algumas. Tratei como me pareceu adequado e as crises diminuíram bastante.
Apesar desta complicação incompreendida, ela
estava a melhorar lentamente, e optamos por avançar com a aborto. Foi um
momento sensível. Foi uma decisão dolorosa do ponto de vista médico... mas tudo
decorreu sem percalços. Uma pequena perda de sangue vaginal e a confirmação
ecográfica e clínica de que está terminada esta gravidez.
O seu estado geral não piorou, e ela parecia
aos poucos estar a voltar a ser uma pessoa... Aquilo que eram gemidos, agora já
pareciam ser palavras, uma ou outra vez conseguia arrancar-se um sorriso da
Maria, e com alguma ajuda já se aguentava em pé por uns segundos... A barómetro
das melhorias, era o sorriso do marido qua ganhava dimensão dia após dia... Mas
o caminho ainda era longo. Talvez até infinito.
E agora o que fazer com a Maria? A razão pela
qual veio para a maternidade tinha terminado... E começaram a falar em
transferi-la para outro hospital. Eu detesto esta conversa, porque acho sempre
que nestes locais estamos a mandar os doentes para um buraco negro... Começam a
convencer-me que num hospital geral há medicina interna, e neurologia, e até
lhe podiam fazer um electroencefalograma (EEG), e por aí fora... Eu torci o
nariz. Torço sempre nestes casos. Eu tenho um mundo infinito de coisas para
aprender na medicina, e um mar de ignorância... mas comigo eu sei com o que é
que eu posso contar. Mas a verdade é que uma maternidade não era o local para
ela estar, e passados uns dias de contactos para a transferência, fui eu mesmo
levar a Maria para o outro hospital.
E fiz as coisas à minha maneira, à maneira que
me ensinaram, à maneira das boas práticas médicas. O “normal” seria despejar a doente
na urgência com uns papeis e vir embora. E quando cheguei ao dito hospital o
sistema, se é que há algum sistema, quase que me obriga a fazer o “normal”. Mas
eu esta não ia deixar passar... Chateei toda a gente que consegui para passar a
informação ao vivo e a cores ao médico que me parecesse mais bem preparado para
a receber... Missão difícil. Tive que ser bruto, tive que puxar dos galões ao
pedir em cascata que me chamassem alguém mais qualificado, até que cheguei ao
chefe de Medicina Interna. A facto de ser branco leva a que seja tolerável um
certo grau de loucura e excentricidade, que foi o que toda a gente pensou de
mim ao furar pela urgência e pelo hospital a dentro... E ainda assim eu sabia
bem porque é que torcia o nariz a esta transferência... Não sei como dizer isto
de uma forma bonita. Estes hospitais são muito maus, a medicina é muito
fraca... Falamos uma linguagem médica muito diferente, e o problema não está no
meu francês.
Sentei-me sem ser convidado no gabinete do
chefe de Medicina Interna, e expliquei tudo o que sabia e o que não sabia sobre
o estado clínico da Maria. E não saí de lá até ter a sensação que o grosso da
informação tinha passado, até lhe ter entregue os papeis da transferência em
mãos, lidos em conjunto e até lhe “passar” a Maria à minha frente. Fiz o que
pude. O meu desconforto era gigante, mas fiz o que pude.
Passados uns dias, chega-me a informação de
que a Maria fez um electroencefalograma (EEG) e que não tinha epilepsia. E eu
pensei logo: Foda-se, isto vai dar merda. Fazer um EEG é como tirar uma
fotografia de um momento. Não se pode negar o diagnóstico sem a interpretação
da clínica que eu tinha explicado em detalhe... E com este exame “negativo”
tirar-lhe os anti-epiléticos.
Passados mais uns dias, a Maria morreu.
Quem é que matou a Maria?
Foram os animais que a violaram? Foi a
ganância de quem alimenta esta guerra? Fui eu que devia ter sido mais teimoso e
ficado com ela? Foi a pobreza da medicina da Rep. Centro-Africana? Ou fomos
todos nós?
A Maria.
Grande murro no estômago. Obrigada pela sua coragem e pela sua partilha. Não podemos calar isto.
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