Rep. Centro-Africana 10.0 - Abortos Clandestinos


O aborto a meu ver é algo de difícil avaliação ética e moral. Eu sou a favor de todo o tipo de liberdades individuais até ao momento em que interferem com a liberdade de outro(s). E do ponto de vista científico tenho muita dificuldade em definir o momento em que duas células ao se juntarem são consideradas uma vida. E por isso resolvo este dilema interior numa teoria de mal menor. Sou tendencialmente a favor, porque não vejo tanto sofrimento ao “matar” um conjunto de células, e vejo bastantes inconvenientes em trazer ao mundo um ser humano não desejado. Mas repito, considero perfeitamente discutível e percebo boa parte dos argumentos de quem tem uma opinião diferente da minha. Considero também que esta mesma questão tem visões e análises diferentes consoante o ponto do planeta em que nos encontramos. No mundo pobre e sub-desenvolvido, a pobreza extrema, a fome infantil, a violência sexual, a ignorância, a fragilidade da mulher, doenças transmissíveis, levam na minha opinião, a que toda esta questão seja mastigada e digerida de uma forma muito diferente.

Acho também importante trazer para análise algo que me parece, pouco discutido na sociedade civil e política mundial. A sobrepopulação do planeta. Num mundo cada vez mais atento ao todo, e ainda bem que assim é, com cada vez mais reflexões ambientais, sobre as alterações climáticas, a  poluição do planeta pelo plástico e por aí fora... questões de uma importância gritante e de extrema urgência. Mas parece-me sub-discutido algo que de alguma forma é o pano de fundo de todos estes problemas. Somos demasiados. E a crescer de uma forma desmedida!

Alguns dados para reflectir:
- Depois da revolução industrial houve um enorme crescimento da população e em 1800, atingimos 1 bilião de pessoas.
- Em 1930, 2 biliões
- Em 1960, 3 biliões,
- Em 1974, 4 biliões,
- Em 1987, 5 biliões,
- Neste momento somos 7,7 biliões
- Em 2055, seremos 10 biliões.

Onde é que eu quero chegar? Este “problema” é uma questão planetária que nos concerne a todos e que tem de ter uma reflexão global, à semelhança das alterações climáticas, até porque a sua inter-relação é evidente. O planeta tem recursos limitados, quer sejamos vegetarianos ou carnívoros, esta pressão demográfica vai sempre conduzir a mais poluição, mais aquecimento, mas tensão entre os povos, guerras, fomes, e por aí fora... E sabemos também que a falta de planeamento familiar está indexada à pobreza e à falta de educação, como é tão evidente em alguns países Africanos que duplicam a população a olhos vistos, e também ligado a algumas questões culturais, onde talvez a Índia seja o maior (pior) exemplo. A mim pouco me interessa, se são brancos, pretos, asiáticos ou misturados... A população desta bolinha azul tem de parar de crescer. Temos que estabilizar, equilibrarmo-nos na educação, na saúde, na riqueza, e na felicidade. Sim, é uma grande utopia. Mas se não é impossível, porque não lutar por isso?

Como quase sempre, tenho mais perguntas do que respostas, mas toda esta reflexão é para falar sobre uma das coisas que mais me impressionou na Rep. Centro-Africana, que foi a quantidade extravagante de abortos clandestinos... Porquê clandestinos? Porque é proibido. Porque é que é proibido? Dogmas da fé que nestes locais do planeta me parecem irresponsáveis. Repito: pela pobreza, porque há milhares de crianças a morrer à fome, porque há infinitas violações, porque a ignorância é asfixiante... e por tudo isto, parece-me que a balança do sofrimento entre as duas posições pende claramente para mais dor a sofrimento ao continuar assim, mais ainda depois de ter visto tudo o que eu vi.

Mal cheguei, no meu primeiro dia de trabalho na maternidade de Bangui, deparei como um caso clínico complicadíssimo. Uma mulher jovem em estado crítico, por consequência de um abortamento clandestino. Perfurou o útero e perfurou o intestino. Submetida a várias cirurgias, com infecções abdominais nunca bem resolvidas, enfraquecida, desnutrida e com uma peritonite por resolver... Acabou por falecer passados uns dias... É sempre complicado tudo perceber quando entramos a meio... mas foi logo a minha primeira derrota.

E durante a minha missão foram umas atrás das outras... Literalmente, perdi a conta. Mas as histórias eram/são todas muito parecidas... Por este motivo ou por aquele, queriam abortar, e pela ilegalidade desta interrupção involuntária da gravidez, introduziam objectos pontiagudos através do canal vaginal de forma a entrar no útero, e terminar com a gravidez indesejada. Por vezes faziam-no mesmo sozinhas, mas quase sempre recorriam a estas “abortadeiras” tradicionais que o faziam sabe-se lá em que condições... Chegavam-me relatos de que, por vezes, seriam feitas sobre anestesia geral, para meu grande espanto... Como? Em que condições? Não faço ideia... Que esterilização terão esses objectos? Quantas não morreram? Quantas não morrem e morrerão? Nunca saberei, nunca saberemos... Num país onde a esmagadora maioria da população não tem electricidade nem água corrente, é difícil de imaginar em que condições eram/são feitos estes abortos... O que eu sei é que foram mesmo muitas as que nos chegaram às mãos com perfurações uterinas várias e no seu extremo algumas com perfurações intestinais... Cirurgias por vezes complexas, e por vezes tarde de mais... E estes relatos são da capital, Bangui... o que se passará pelo país fora, onde quase não há cuidados de saúde, e a educação é ainda mais escassa? O que se passará por tanta desta África profunda? Não há números, não há dados, não há estatística... ma sabemos que são mais do que muitas as mulheres que já morreram neste flagelo...

Estes são os meus relatos, com a maior honestidade que consigo. Não pretendo de forma alguma fazer advocacia desta ou daquela política do aborto... Partilhei a minha posição só por uma questão de transparência e honestidade intelectual... Não pretendo defender ou atacar nenhuma posição ou opinião... Pretendo “apenas” mostrar este mundo, que é tão real como o nosso.

Imagino o desespero de uma mulher que tem a frieza e a loucura de se perfurar, sabendo que pode ser o fim da sua vida... É impossível não causar em mim reflexões muito profundas. Os seus olhares, o seu sofrimento, a sua vergonha, a sua fragilidade, eu teimo em não esquecer...

Nós salvamos muitas destas vidas, destas almas perdidas... mas pouco fazemos em relação aos “porquês”... pouco fazemos para que “isto” deixe de acontecer...



Rep. Centro-Africana 9.2 - Gente Boa, Gente Maravilhosa

(... continuando)

Fui para casa a digerir aquela granada. Explodiu com muita gente e explodiu com as minhas emoções num fim de tarde de uma intensidade sem igual... E perdido nos meus pensamentos dominavam-me os olhares assustados daquelas senhoras, que mereciam todo o meu empenho, todo o meu esforço para lhes deixar alguns dos meus saberes...

É a única forma de salvarmos o mundo, é educando, seja em que área for. Apesar de me dar sempre muito trabalho, mais ainda em francês, é das coisas que mais me dá prazer é sentir que estou a deixar um legado de boa medicina, de conhecimentos que se traduzem em vidas, e também esperança e confiança num mundo melhor, a juntar a uma boa dose de autodeterminação...

E aí fui eu todo motivado numa bela tarde qualquer fazer a apresentação na pequena maternidade de PK5... Agora com mais calma e mais tarde umas quantas vezes, nunca me cansei de ficar vidrado com esta transição para “dentro” da zona PK5... A forma como tudo mudava em escassas dezenas de metros nunca esquecerei.

O reencontro foi muito especial. Ao saltar do carro sou recebido com aqueles sorrisos que merecem abraços. Foi muito especial rever estas senhoras no seu estado normal depois de termos tido uma experiência tão forte, tão intensa juntos... E nestes sorrisos africanos que transparecem das almas mais bonitas que já vi na vida, eu reencontro a esperança na humanidade... São humildes mas sábias, são simples mas vividas, muito a aprender mas já salvaram muitas vidas... E o meu amor à primeira vista não parava de crescer... Gente boa, gente maravilhosa. E como se os condimentos já não fossem bons, a juntar a isto está a enfermeira-parteira responsável dos MSF que é uma senhora dos EUA, já com 70 anos, que compensa já alguma dificuldade na locomoção e um francês aos tropeções, com uma simpatia, uma alegria e um calor humano tão genuíno que eu deveria saber como replicá-lo no meu dia-a-dia... Um doce de uma senhora. Uma inspiração para mim vê-la do outro lado do seu mundo, a subir e descer com dificuldades o Land Cruiser dos MSF, com uma humildade e simplicidade ali de mãos dadas com as centro-africanas, a deixar os seus saberes na arte mágica de ajudar as mulheres a ter filhos, e a fazer com que os bebés entrem neste mundo a respirar saúde.

Um computador, um projector, uma apresentação powerpoint, e a vontade mútua de salvar vidas... Falei sobre de que morrem as vítimas de trauma, de critérios de triagem, de choque hemorrágico, de alguns gestos que podem salvar vidas, de quais são os locais do corpo onde pode o ser humano sangrar mais. Falei de quais são os doentes que podemos salvar e aqueles que nada podemos fazer... Tudo é ciência, tudo é organização de ideias, tudo é antecipação e preparação, quando se trata de situações de grande stress, onde o medo impera, e os minutos podem ser vidas... Gente boa, gente maravilhosa que já viu de tudo e mais um pouco, e que atentamente me ouviam a falar sobre ciência. Atentamente ouvi-as eu sobre as suas dúvidas, as questões adaptadas aos seus conhecimentos, experiências e realidade local. A senhora americana teria certamente muito mais para me ensinar que eu a ela, mas ouviu-me com uma atenção deliciosa, de quem transborda bondade e humildade. Não há nada que eu aprecie mais nesta vida do que verdadeiras inspirações... e ali estava eu rodeado de tantas pessoas que me faziam querer ser mais e melhor... Gente boa, gente maravilhosa.
Foi uma tarde saborosa que fazendo parecer que eu estava a ensinar, saí de lá com aprendizagens eternas de humildade, bondade e humanidade.

Passados uns dias, estava eu na maternidade onde tralhava, a meio de uma cesariana numa manhã qualquer, quando ouço a minha chefe a chamar-me no radio: “Gustavo, Gustavo!”
“Estou aqui, que se passa?”
“Granada no PK5, prepara-te!”
Não tinha muito a preparar-me. Chamei um enfermeiro do bloco para vir comigo, e atiramo-nos para dentro do Land Cruiser a todo o gás. E claro, a segunda já não é como a primeira. O coração acelera, mas menos. Sei que o que depender de mim, está na minha cabeça, está bem organizado... Vou na parte de trás do 4x4, que tem bancos corridos e por isso vou a olhar de frente para o enfermeiro centro-africano. Não há grande tempo para preparação psicológica, mas ocorreu-me fazer a pergunta, quase de circunstância: “Estás bem?”... E percebi que ele soltou um “Sim” meio tremido... Se calhar devia ter tido mais cuidado, se calhar fui um bocado bruto... Ele estava nervosíssimo, estava numa ansiedade tremenda... Entrar no PK5 assusta muita gente, entrar no PK5 depois de explodir uma granada, estava a petrificá-lo... Eu às vezes não sei bem o que se passa na cabeça dos locais... e nesta situação claramente que não previa isto... Em Bangui por esta altura era frequente andar tudo aos tiros, o que fazia com que a rotina do “Couché, couché” (deitados), em que toda a gente se atira para o chão, fosse muito frequente... e agora até estava bem mais calmo do que já esteve... Ele já viu muito mais do que eu, e por isso eu não compreendia bem aquela reacção... Mas o que é que sei da vida? Cada uma reage à sua maneira? E os nossos medos são muito variáveis, e relativos às nossas expectativas... Tentei acalmá-lo: “Tranquilo, vai tudo correr bem... eu já fiz isto muitas vezes (o que é só meio verdade)... vens comigo, primeiro vamos olhar para todos os feridos, sem tocar em ninguém para fazer o ponto da situação e depois organizamo-nos!” ... claro que isto é tudo muito bonito de se falar, mas há momentos que parece que o coração nos vai saltar pela boca... Aí vamos nós, mergulhar de cabeça para o olho do furacão...

O cenário à porta da pequena maternidade de PK5 era de grande agitação e confusão... mas parecia-me menos agreste do que da outra vez... E como tal, o maior perigo parecia menor... “Bora, siga!” atirei-me da porta de trás com ele na minha sombra a furar a multidão até à porta... Não sei se sou inocente ou ingénuo, mas parece que a minha cor de pele me dá uma certa imunidade neste tipo de situações... Eu sinto que não tenho espaço para o medo, porque todo eu sou dominado pelo foco em tentar salvar vidas, e ajudar as minhas queridas amigas por quem eu me apaixonei...

É um alívio passar a porta, mas lá dentro não está muito melhor... Não sei bem porquê, mas dentro do recinto estava mais confuso do que na primeira vez, com alguns familiares dos feridos que são o meu maior inimigo nesta fase da triagem das prioridades... Ninguém me deu autoridade, mas eu assumo-a: “É preciso tirar esta gente toda daqui! Assim não podemos trabalhar!”... e percebo que as minhas palavras firmes têm algum efeito... Algum.
Isto é muito duro, são gritos por todo o lado, há mulheres e crianças feridas, poças de sangue que nem percebemos de quem são, e muita gente cheia de estilhaços da explosão da granada... Ainda hoje parece que ouço os gritos...

Quando vou a passar num corredor sou agarrado com muita força por um homem ferido... Desvio olhar na sua direcção e sou invadido por esta imagem terrível de quem perdeu o outro braço na explosão, e tem uma amputação traumática do antebraço feia de se ver... Pode parecer muito frio, mas eu estou focadíssimo na minha missão, na qual só sou eficaz se pensar como um computador sem sentimentos, apenas baseado em ciência... E numa milésima de segundo retirei-lhe a mão que me agarrava pensando... “se tens essa força para me agarrar e levantar o tronco, é porque não perdeste muito sangue... Vais ter que esperar, que eu não toco em ninguém até ver todos”... pensava eu a recentrar-me no meu foco.

Entro no edifício para passar então os meus olhos e algo mais em todos os feridos... Sou recebido pelos olhares das minhas queridas novas amigas, muito assustadas, mas mais confiantes, já não é em pânica que dão cada passo... Preocupadas, mas focadas, e a fazer tudo tal como tínhamos conversado... Tenho um segundo para pensar para comigo: “Incrível, ver isto...” Nada pode substituir anos e anos de estudo, formações, treinos e práctica, mas senti-las mais confiantes, mais orientadas, e claro muito mais eficazes foi um pedaço de magia... Gente boa, gente maravilhosa. Tinham registado todos os sinais vitais, as zonas dos ferimentos, e orientaram-me para os feridos mais preocupantes... Claro que fui vê-los a todos na mesma... mas aqui o mais importante é pensar, se eu não estivesse lá, teriam feito bem a gestão deste pânico de dezenas de feridos... Mantiveram a calma, organizaram a informação clinica e sinalizaram os feridos mais preocupantes... Incrível.

Decisões dificílimas, num clima de caos, mas estas queridas senhoras fizeram a triagem de uma cenário de catástrofe, como poucos médicos que eu conheço saberiam fazer... Isto obviamente traduz-se em potencial, em vidas... eleva-as para um patamar de confiança e tranquilidade para as eventualidades... porque sim, depois de eu lá sair com ou sem a ajuda de outros médicos... o PK5 voltou a explodir, e esta pequena maternidade voltou a transbordar de feridos, e certamente muitas pessoas terá salvo, esta gente boa, gente maravilhosa.

Ao explodir uma granada em Bangui, há também muitos corações que disparam... Os que são atingidos, as famílias de quem perdeu os seus, os dos gritos de revolta e sede de vingança... mas também daqueles que vão contra a maré tentar salvar vidas...

E acreditem no que vos digo... É gente boa, gente maravilhosa.


Eu não sei escrever sem ser na primeira pessoa... Mas isto não é sobre mim, é sobre eles!

Rep. Centro-Africana 9.1 - Gente Boa, Gente Maravilhosa


Chego ao fim de um dia bem longo. Depois de mais um dia calor intenso, em que já nem sei quantos litros de suor transpirei, sabe bem quando a temperatura começa a amenizar... Na lista da jornada mais uma infinidade de cesarianas, parturientes, crianças a chorar e por aí fora... É dia de reunião de toda a delegação dos Médicos Sem Fronteiras em Bangui. É muita gente. Gente de todos os tamanhos e feitos. Gente de todo o lado do mundo. Gente de muitos ofícios diferentes que se reúne a cada 15 dias para fazer o ponto da situação das operações da cidade e de todo o país... Eu adoro este fim de tarde na palhota gigante em que absorvo com a curiosidade aguçada o que se tem feito e o que se vai fazer em áreas tão diversas, como a construção, água e saneamento, a medicina em todas as suas formas, e claro, a segurança e política de todo o país... Eu adoro esta parte em que ouço quem sabe o que está dizer, sobre a compreensão e evolução de todo o contexto político-militar-humanitário, que é extremamente complexo e interessante... Mais ainda como eu não tenho que falar, estou ali todo contente à espera que comece a exposição de saberes, enquanto digo uns “Salut, comment ça va?” aos que conheço e aos que passo a conhecer... Antes da reunião começar o ambiente é de galhofa, bem mergulhados no coração de África sente-se uma alegria e boa disposição no ar... O dia de trabalho acabou, o calor começa a dar-nos descanso e o cruzamento de mundos deixa qualquer um de bem com a vida... E para alguns já não falta muito para a primeira cerveja bem fresquinha do dia...

Ali estou eu, já sentado, perdido em gargalhadas, quando uma colega pediatra me aborda por trás e me dá um toque nas costas dizendo com ar sério: “acho que precisam de ti!” ... Eu percebo pelo seu olhar que é para mudar o estado de espírito e ligar os mecanismos de atenção máxima... Ela acrescenta: “Uma granada no PK5, muitos feridos, acho que devias ir.”... Nunca estamos preparados para levar este balde de água fria, parece que sinto e ouço e cérebro a abanar e a arrancar os motores... É misto de medo, e de entusiasmo... O medo do desconhecido, dos perigos da guerra, da fúria da população, dos desafios médicos que lá estarão... E o entusiasmo, por poder fazer o que faço melhor, pela adrenalina do momento em que posso pôr em prática anos de estudo e treino para isto, para salvar vidas.

Levanto-me a correr e entro no Land Cruiser já quase em andamento, que só estava à minha espera para sair disparado. Vai o motorista, e um dos responsáveis pela segurança/diálogo com os grupos armados dos Médicos Sem Fronteiras que é uma amigo meu francês, e eu. Nós sabemos para o que é que vamos. Vamos para onde toda a gente quer sair. Vamo-nos atirar para um vulcão em erupção. O bairro PK5 explode com frequência. Explode em todas as dimensões da palavra. É o bairro muçulmano que ainda nos faz ver que o conflito está bem vivo... e onde tudo se resolve em tensão máxima. Ao tiro muitas vezes, ou sei lá bem porquê, a granada está bastante em voga neste ponto do planeta... A divisão da zona de PK5 não é geográfica, mas é bem visível quer pelas vestes dos centro-africanos que mudam completamente, quer pelas zonas fronteiriças que estão abandonadas e com as paredes das casas todas cravadas a tiros. É impressionante.

Ao fim da tarde em Bangui há algum trânsito mas nós vamos a voar. Imagino que cada um dos 3 vá em alerta máximo concentrado nos assuntos respectivos. Eu nem vejo o que se passa à minha volta, vou num processo interior de reflexão, recapitulação e arrefecimento do cérebro que me consome todo o momento. Eu sei o que tenho a fazer, e já o fiz muitas vezes... Mas não sou de ferro. Tenho medo, tenho dúvidas, e não quero morrer. Mas a vontade de ser útil, de ser médico, de ajudar é o meu foco. Mais ainda sabendo que vamos para uma mini-maternidade, que é “satélite” da maternidade onde eu passava os dias, e onde só trabalham enfermeiras-parteiras centro-africanas com capacidades para o básico dos partos sem complicações e pouco mais, mas por ser a única estrutura de saúde de uma ONG no PK5, foi para lá que levaram todos os feridos desta granada. E eu ia em auxílio destas senhoras, que nada sabiam sobre vítimas de guerra.

Estou tenso e calmo ao mesmo tempo. Estou focado.

Quando nos aproximamos da dita pequena maternidade, o cenário é assustador... Estão centenas de pessoas em alvoroço no portão do edifício... Eu só ouço berros e gritos de desespero... É sempre a etapa mais complicada dos cenários com multi-vítimas, a multidão em fúria. Entre os quais sei lá quantos de kalashnikov em punho com os olhos raiados de raiva. O nosso carro aproxima-se até ao portão e pára rodeado pelo povo em ebulição. O meu amigo francês responsável pela segurança, salta da porta da frente do carro e vai directo aos chefes dos grupos armados. Eu sentia que estava a viver numa realidade paralela... uma realidade que me transcende. Se abríssemos o portão para entrar o carro, a multidão invadia o recinto onde estavam os feridos e seriam impossível trabalhar. Eu estou dentro do carro na parte de trás. Não me sinto ameaçado, mas sinto uma tensão no ar de centenas de pessoas que torna tudo imprevisível... Percebo que na conversa lá fora estão a discutir a minha entrada para a maternidade, e sinto que é o momento, respiro fundo a salto lá para fora para o meio da multidão... “Sou médico, deixem-me passar, deixem-me ir trabalhar!” enquanto furo a moldura humana até a uma pequena porta ao lado do portão grande, que se entreabre num ápice, por onde eu furo e mais ninguém... Surpreendentemente dentro do recinto da pequena maternidade não há basicamente ninguém indesejado... Só lá está quem lá trabalha e os feridos. Depois de me sentir “salvo” da multidão em fúria ainda tenho 2 segundos para reflectir: Grande “Chapeau” para os guardas dos MSF, que sem armas conseguiram fazer entrar os feridos sem deixar a multidão entrar pelos portões, tal como mandam as regras, mas na prática é extremamente difícil... Grande “Chapeau”... gente boa, gente maravilhosa.

Entro no edifício e sou invadido pelos olhares destas senhoras indefesas, impreparadas e assustadas com o cenário, com os feridos, com medo de serem atacadas pela multidão a ferver lá fora... No seu olhar vejo um nervosismo desesperado, e um alívio e agradecimento desmedido por me verem ali... Eu primeiro tenho que as “tratar” a elas, tenho que as acalmar, e as orientar nas tarefas... Eu ainda nem olho para as dezenas de feridos espalhados por diferentes quartos, para me dirigir a elas: “tenham calma, tenham calma, eu sou médico... eu vou vos ajudar... vai tudo correr bem” com um sorriso calmo e pacificador... que era basicamente a mascara que eu lhes queria mostrar... porque eu também estava nervoso. Mas é incrível como a responsabilidade nos traz a sensatez de fazer o que tem de ser feito, e a frieza de reacção que jamais imaginaríamos ter... Elas nunca me tinham visto, nem eu a elas... mas eu diria que da minha parte foi amor à primeira vista... É ao sabor dos gritos dos feridos como banda sonora, que eu as conheço... Enfermeiras-parteiras e auxiliares que estão em pânico com tantos feridos sem saber o que lhes fazer... mas que já salvaram a vida a milhares de mulheres e bebés na zona mais problemática da cidade, num dos países mais problemáticos do mundo... gente boa, gente maravilhosa.

Eu fico frio, eu sinto-me uma máquina desprovida de sentimentos tal é o meu estado de alerta para fazer a triagem, estabilizar/tratar, para depois enviar para este ou aquele hospital os feridos mais graves que precisam de cirurgias urgentes... Eu já vi algumas situações do género, o que me ajuda imenso a agir com as normas que fui definindo como sendo as mais correctas. Eu não toco em nenhum ferido até os ver a todos, sem excepção... Tudo isto tem muita ciência, e é adaptado àquilo que eu sei que se pode ou não fazer, nesta capital esquecida pelo mundo...

É incrível a quantidade de informação clínica que eu na primeira fotografia de segundos consigo tirar de cada ferido a quem passo os olhos... A isso acrescento a frequência cardíaca, a frequência respiratória, o nível de consciência, e o local dos ferimentos de cada um... Este tipo de vítimas, podem ser de avaliação muito traiçoeira, pois os estilhaços são imprevisíveis... o que por vezes parece uma ferida punctiforme fez danos internos gravíssimos, e por outro lado um ferimento grande e feio, pode não ter grande importância no prognóstico vital... Mas ainda não é o momento para grandes diagnósticos... Esta fase é apenas para estratificar todos os feridos por níveis de gravidade... Invariavelmente há uns histéricos que roubam muita atenção aos mais inexperientes, mas que não têm nada de especial... Em 10 minutos, já sinto a situação controlada... Não está nenhum ferido para morrer, há 3 que me preocupam e vão exigir uma avaliação mais cuidada da minha parte, há mais 7 que vão precisar de radiografias e cirurgias mas não muito urgentes e mais uns 10 que têm apenas feridas superficiais e que depois de os ver com mais calma talvez dê para irem para casa...

Saio cá para fora para mergulhar novamente na multidão e vou ter com o meu amigo francês e com os homens armados para lhes fazer o ponto da situação... “Está tudo controlado, ninguém vai morrer, há 3 que vou ter que ver com mais calma e que vamos transferir para outro hospital, e mais uns quantos que sem urgência também irão.”
Rapidamente são gritadas palavras de ordem na língua local (Sango) que acalmam a situação e peço ao meu amigo para que se trate dos preparativos para transportar então os doentes mais graves para um hospital... Isto é tudo um assunto muito sensível, pois há gente do PK5 que não passa para os outros lados da cidade
por medo de represálias que são frequentes...

Volto lá para dentro para então re-examinar os 3 mais graves, tratar em conformidade, escrever no dossier, e metê-los na ambulância... Com os outros 7 oriento a estabilização das fracturas, analgésicos, reexamino com tempo e vão seguindo para outros hospitais calmamente... Sobram uns quantos com ferimentos superficiais, muita ansiedade , e depois de uma limpeza, pensos e dois minutos de conversa, vão seguindo para casa... E vamos arrumando a situação... até que nos deparamos com a maternidade com duas mulheres assustadas que estavam a ser vigiadas por estarem numa fase inicial do trabalho de parto.

Eu começo a entrar naquela fase de introspecção, quase a deixar entrar as emoções e a fazer uma leitura dos 360º que me envolvem, quando me deparo novamente com a interacção muda das queridas senhoras que foram sugadas por este fenómeno de violência e emergências médicas, que chocam qualquer mortal. Ultrapassaram largamente a sua área de saberes, foram corajosas, foram valentes... gente boa, gente maravilhosa. Eu não cabia em tanto orgulho e tanta admiração pelo que estas queridas enfermeiras-parteiras africanas acabaram de fazer, tendo em conta os acontecimentos que acabamos de vivenciar... Só me apetecia abraçá-las e enche-las de beijos, mas nós nem nos conhecíamos... e por isso pedi para nos sentarmos a rever os acontecimentos, enquanto percebi que o meu amigo fazia o mesmo com equipa de guardas que esteve irrepreensível...

Sentamo-nos nuns bancos corridos de madeira à porta do edifício já a noite tinha chegado... Com mais calma pude olhá-las nos olhos e sentir as suas emoções... Estavam acima de tudo assustadas, mas também aliviadas e curiosas por compreender o que se passou ali do ponto de vista médico...

Uma granada a explodir, uma multidão volátil, 20 feridos, é muito duro de gerir, a adrenalina nos nossos corpos atinge níveis alucinantes... mais ainda se não se souber o que fazer com eles... Eu desfiz-me em elogios pelo trabalho que elas fizeram, pela forma como me ajudaram a gerir uma situação tão difícil, e disse-lhes: “Vamos combinar um dia, e eu venho cá para vos ensinar!” Os seus olhos caídos ainda a recuperar do choque transformaram-se num sorriso tímido e esperançoso, que serviu para me aquecer o coração e motivar ainda mais para fazer algo mais por este povo que tanto tem sofrido...

Gente Boa, Gente Maravilhosa


(continua...)