Rep. Centro-Africana 9.2 - Gente Boa, Gente Maravilhosa

(... continuando)

Fui para casa a digerir aquela granada. Explodiu com muita gente e explodiu com as minhas emoções num fim de tarde de uma intensidade sem igual... E perdido nos meus pensamentos dominavam-me os olhares assustados daquelas senhoras, que mereciam todo o meu empenho, todo o meu esforço para lhes deixar alguns dos meus saberes...

É a única forma de salvarmos o mundo, é educando, seja em que área for. Apesar de me dar sempre muito trabalho, mais ainda em francês, é das coisas que mais me dá prazer é sentir que estou a deixar um legado de boa medicina, de conhecimentos que se traduzem em vidas, e também esperança e confiança num mundo melhor, a juntar a uma boa dose de autodeterminação...

E aí fui eu todo motivado numa bela tarde qualquer fazer a apresentação na pequena maternidade de PK5... Agora com mais calma e mais tarde umas quantas vezes, nunca me cansei de ficar vidrado com esta transição para “dentro” da zona PK5... A forma como tudo mudava em escassas dezenas de metros nunca esquecerei.

O reencontro foi muito especial. Ao saltar do carro sou recebido com aqueles sorrisos que merecem abraços. Foi muito especial rever estas senhoras no seu estado normal depois de termos tido uma experiência tão forte, tão intensa juntos... E nestes sorrisos africanos que transparecem das almas mais bonitas que já vi na vida, eu reencontro a esperança na humanidade... São humildes mas sábias, são simples mas vividas, muito a aprender mas já salvaram muitas vidas... E o meu amor à primeira vista não parava de crescer... Gente boa, gente maravilhosa. E como se os condimentos já não fossem bons, a juntar a isto está a enfermeira-parteira responsável dos MSF que é uma senhora dos EUA, já com 70 anos, que compensa já alguma dificuldade na locomoção e um francês aos tropeções, com uma simpatia, uma alegria e um calor humano tão genuíno que eu deveria saber como replicá-lo no meu dia-a-dia... Um doce de uma senhora. Uma inspiração para mim vê-la do outro lado do seu mundo, a subir e descer com dificuldades o Land Cruiser dos MSF, com uma humildade e simplicidade ali de mãos dadas com as centro-africanas, a deixar os seus saberes na arte mágica de ajudar as mulheres a ter filhos, e a fazer com que os bebés entrem neste mundo a respirar saúde.

Um computador, um projector, uma apresentação powerpoint, e a vontade mútua de salvar vidas... Falei sobre de que morrem as vítimas de trauma, de critérios de triagem, de choque hemorrágico, de alguns gestos que podem salvar vidas, de quais são os locais do corpo onde pode o ser humano sangrar mais. Falei de quais são os doentes que podemos salvar e aqueles que nada podemos fazer... Tudo é ciência, tudo é organização de ideias, tudo é antecipação e preparação, quando se trata de situações de grande stress, onde o medo impera, e os minutos podem ser vidas... Gente boa, gente maravilhosa que já viu de tudo e mais um pouco, e que atentamente me ouviam a falar sobre ciência. Atentamente ouvi-as eu sobre as suas dúvidas, as questões adaptadas aos seus conhecimentos, experiências e realidade local. A senhora americana teria certamente muito mais para me ensinar que eu a ela, mas ouviu-me com uma atenção deliciosa, de quem transborda bondade e humildade. Não há nada que eu aprecie mais nesta vida do que verdadeiras inspirações... e ali estava eu rodeado de tantas pessoas que me faziam querer ser mais e melhor... Gente boa, gente maravilhosa.
Foi uma tarde saborosa que fazendo parecer que eu estava a ensinar, saí de lá com aprendizagens eternas de humildade, bondade e humanidade.

Passados uns dias, estava eu na maternidade onde tralhava, a meio de uma cesariana numa manhã qualquer, quando ouço a minha chefe a chamar-me no radio: “Gustavo, Gustavo!”
“Estou aqui, que se passa?”
“Granada no PK5, prepara-te!”
Não tinha muito a preparar-me. Chamei um enfermeiro do bloco para vir comigo, e atiramo-nos para dentro do Land Cruiser a todo o gás. E claro, a segunda já não é como a primeira. O coração acelera, mas menos. Sei que o que depender de mim, está na minha cabeça, está bem organizado... Vou na parte de trás do 4x4, que tem bancos corridos e por isso vou a olhar de frente para o enfermeiro centro-africano. Não há grande tempo para preparação psicológica, mas ocorreu-me fazer a pergunta, quase de circunstância: “Estás bem?”... E percebi que ele soltou um “Sim” meio tremido... Se calhar devia ter tido mais cuidado, se calhar fui um bocado bruto... Ele estava nervosíssimo, estava numa ansiedade tremenda... Entrar no PK5 assusta muita gente, entrar no PK5 depois de explodir uma granada, estava a petrificá-lo... Eu às vezes não sei bem o que se passa na cabeça dos locais... e nesta situação claramente que não previa isto... Em Bangui por esta altura era frequente andar tudo aos tiros, o que fazia com que a rotina do “Couché, couché” (deitados), em que toda a gente se atira para o chão, fosse muito frequente... e agora até estava bem mais calmo do que já esteve... Ele já viu muito mais do que eu, e por isso eu não compreendia bem aquela reacção... Mas o que é que sei da vida? Cada uma reage à sua maneira? E os nossos medos são muito variáveis, e relativos às nossas expectativas... Tentei acalmá-lo: “Tranquilo, vai tudo correr bem... eu já fiz isto muitas vezes (o que é só meio verdade)... vens comigo, primeiro vamos olhar para todos os feridos, sem tocar em ninguém para fazer o ponto da situação e depois organizamo-nos!” ... claro que isto é tudo muito bonito de se falar, mas há momentos que parece que o coração nos vai saltar pela boca... Aí vamos nós, mergulhar de cabeça para o olho do furacão...

O cenário à porta da pequena maternidade de PK5 era de grande agitação e confusão... mas parecia-me menos agreste do que da outra vez... E como tal, o maior perigo parecia menor... “Bora, siga!” atirei-me da porta de trás com ele na minha sombra a furar a multidão até à porta... Não sei se sou inocente ou ingénuo, mas parece que a minha cor de pele me dá uma certa imunidade neste tipo de situações... Eu sinto que não tenho espaço para o medo, porque todo eu sou dominado pelo foco em tentar salvar vidas, e ajudar as minhas queridas amigas por quem eu me apaixonei...

É um alívio passar a porta, mas lá dentro não está muito melhor... Não sei bem porquê, mas dentro do recinto estava mais confuso do que na primeira vez, com alguns familiares dos feridos que são o meu maior inimigo nesta fase da triagem das prioridades... Ninguém me deu autoridade, mas eu assumo-a: “É preciso tirar esta gente toda daqui! Assim não podemos trabalhar!”... e percebo que as minhas palavras firmes têm algum efeito... Algum.
Isto é muito duro, são gritos por todo o lado, há mulheres e crianças feridas, poças de sangue que nem percebemos de quem são, e muita gente cheia de estilhaços da explosão da granada... Ainda hoje parece que ouço os gritos...

Quando vou a passar num corredor sou agarrado com muita força por um homem ferido... Desvio olhar na sua direcção e sou invadido por esta imagem terrível de quem perdeu o outro braço na explosão, e tem uma amputação traumática do antebraço feia de se ver... Pode parecer muito frio, mas eu estou focadíssimo na minha missão, na qual só sou eficaz se pensar como um computador sem sentimentos, apenas baseado em ciência... E numa milésima de segundo retirei-lhe a mão que me agarrava pensando... “se tens essa força para me agarrar e levantar o tronco, é porque não perdeste muito sangue... Vais ter que esperar, que eu não toco em ninguém até ver todos”... pensava eu a recentrar-me no meu foco.

Entro no edifício para passar então os meus olhos e algo mais em todos os feridos... Sou recebido pelos olhares das minhas queridas novas amigas, muito assustadas, mas mais confiantes, já não é em pânica que dão cada passo... Preocupadas, mas focadas, e a fazer tudo tal como tínhamos conversado... Tenho um segundo para pensar para comigo: “Incrível, ver isto...” Nada pode substituir anos e anos de estudo, formações, treinos e práctica, mas senti-las mais confiantes, mais orientadas, e claro muito mais eficazes foi um pedaço de magia... Gente boa, gente maravilhosa. Tinham registado todos os sinais vitais, as zonas dos ferimentos, e orientaram-me para os feridos mais preocupantes... Claro que fui vê-los a todos na mesma... mas aqui o mais importante é pensar, se eu não estivesse lá, teriam feito bem a gestão deste pânico de dezenas de feridos... Mantiveram a calma, organizaram a informação clinica e sinalizaram os feridos mais preocupantes... Incrível.

Decisões dificílimas, num clima de caos, mas estas queridas senhoras fizeram a triagem de uma cenário de catástrofe, como poucos médicos que eu conheço saberiam fazer... Isto obviamente traduz-se em potencial, em vidas... eleva-as para um patamar de confiança e tranquilidade para as eventualidades... porque sim, depois de eu lá sair com ou sem a ajuda de outros médicos... o PK5 voltou a explodir, e esta pequena maternidade voltou a transbordar de feridos, e certamente muitas pessoas terá salvo, esta gente boa, gente maravilhosa.

Ao explodir uma granada em Bangui, há também muitos corações que disparam... Os que são atingidos, as famílias de quem perdeu os seus, os dos gritos de revolta e sede de vingança... mas também daqueles que vão contra a maré tentar salvar vidas...

E acreditem no que vos digo... É gente boa, gente maravilhosa.


Eu não sei escrever sem ser na primeira pessoa... Mas isto não é sobre mim, é sobre eles!

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