Rep. Centro-Africana 9.1 - Gente Boa, Gente Maravilhosa


Chego ao fim de um dia bem longo. Depois de mais um dia calor intenso, em que já nem sei quantos litros de suor transpirei, sabe bem quando a temperatura começa a amenizar... Na lista da jornada mais uma infinidade de cesarianas, parturientes, crianças a chorar e por aí fora... É dia de reunião de toda a delegação dos Médicos Sem Fronteiras em Bangui. É muita gente. Gente de todos os tamanhos e feitos. Gente de todo o lado do mundo. Gente de muitos ofícios diferentes que se reúne a cada 15 dias para fazer o ponto da situação das operações da cidade e de todo o país... Eu adoro este fim de tarde na palhota gigante em que absorvo com a curiosidade aguçada o que se tem feito e o que se vai fazer em áreas tão diversas, como a construção, água e saneamento, a medicina em todas as suas formas, e claro, a segurança e política de todo o país... Eu adoro esta parte em que ouço quem sabe o que está dizer, sobre a compreensão e evolução de todo o contexto político-militar-humanitário, que é extremamente complexo e interessante... Mais ainda como eu não tenho que falar, estou ali todo contente à espera que comece a exposição de saberes, enquanto digo uns “Salut, comment ça va?” aos que conheço e aos que passo a conhecer... Antes da reunião começar o ambiente é de galhofa, bem mergulhados no coração de África sente-se uma alegria e boa disposição no ar... O dia de trabalho acabou, o calor começa a dar-nos descanso e o cruzamento de mundos deixa qualquer um de bem com a vida... E para alguns já não falta muito para a primeira cerveja bem fresquinha do dia...

Ali estou eu, já sentado, perdido em gargalhadas, quando uma colega pediatra me aborda por trás e me dá um toque nas costas dizendo com ar sério: “acho que precisam de ti!” ... Eu percebo pelo seu olhar que é para mudar o estado de espírito e ligar os mecanismos de atenção máxima... Ela acrescenta: “Uma granada no PK5, muitos feridos, acho que devias ir.”... Nunca estamos preparados para levar este balde de água fria, parece que sinto e ouço e cérebro a abanar e a arrancar os motores... É misto de medo, e de entusiasmo... O medo do desconhecido, dos perigos da guerra, da fúria da população, dos desafios médicos que lá estarão... E o entusiasmo, por poder fazer o que faço melhor, pela adrenalina do momento em que posso pôr em prática anos de estudo e treino para isto, para salvar vidas.

Levanto-me a correr e entro no Land Cruiser já quase em andamento, que só estava à minha espera para sair disparado. Vai o motorista, e um dos responsáveis pela segurança/diálogo com os grupos armados dos Médicos Sem Fronteiras que é uma amigo meu francês, e eu. Nós sabemos para o que é que vamos. Vamos para onde toda a gente quer sair. Vamo-nos atirar para um vulcão em erupção. O bairro PK5 explode com frequência. Explode em todas as dimensões da palavra. É o bairro muçulmano que ainda nos faz ver que o conflito está bem vivo... e onde tudo se resolve em tensão máxima. Ao tiro muitas vezes, ou sei lá bem porquê, a granada está bastante em voga neste ponto do planeta... A divisão da zona de PK5 não é geográfica, mas é bem visível quer pelas vestes dos centro-africanos que mudam completamente, quer pelas zonas fronteiriças que estão abandonadas e com as paredes das casas todas cravadas a tiros. É impressionante.

Ao fim da tarde em Bangui há algum trânsito mas nós vamos a voar. Imagino que cada um dos 3 vá em alerta máximo concentrado nos assuntos respectivos. Eu nem vejo o que se passa à minha volta, vou num processo interior de reflexão, recapitulação e arrefecimento do cérebro que me consome todo o momento. Eu sei o que tenho a fazer, e já o fiz muitas vezes... Mas não sou de ferro. Tenho medo, tenho dúvidas, e não quero morrer. Mas a vontade de ser útil, de ser médico, de ajudar é o meu foco. Mais ainda sabendo que vamos para uma mini-maternidade, que é “satélite” da maternidade onde eu passava os dias, e onde só trabalham enfermeiras-parteiras centro-africanas com capacidades para o básico dos partos sem complicações e pouco mais, mas por ser a única estrutura de saúde de uma ONG no PK5, foi para lá que levaram todos os feridos desta granada. E eu ia em auxílio destas senhoras, que nada sabiam sobre vítimas de guerra.

Estou tenso e calmo ao mesmo tempo. Estou focado.

Quando nos aproximamos da dita pequena maternidade, o cenário é assustador... Estão centenas de pessoas em alvoroço no portão do edifício... Eu só ouço berros e gritos de desespero... É sempre a etapa mais complicada dos cenários com multi-vítimas, a multidão em fúria. Entre os quais sei lá quantos de kalashnikov em punho com os olhos raiados de raiva. O nosso carro aproxima-se até ao portão e pára rodeado pelo povo em ebulição. O meu amigo francês responsável pela segurança, salta da porta da frente do carro e vai directo aos chefes dos grupos armados. Eu sentia que estava a viver numa realidade paralela... uma realidade que me transcende. Se abríssemos o portão para entrar o carro, a multidão invadia o recinto onde estavam os feridos e seriam impossível trabalhar. Eu estou dentro do carro na parte de trás. Não me sinto ameaçado, mas sinto uma tensão no ar de centenas de pessoas que torna tudo imprevisível... Percebo que na conversa lá fora estão a discutir a minha entrada para a maternidade, e sinto que é o momento, respiro fundo a salto lá para fora para o meio da multidão... “Sou médico, deixem-me passar, deixem-me ir trabalhar!” enquanto furo a moldura humana até a uma pequena porta ao lado do portão grande, que se entreabre num ápice, por onde eu furo e mais ninguém... Surpreendentemente dentro do recinto da pequena maternidade não há basicamente ninguém indesejado... Só lá está quem lá trabalha e os feridos. Depois de me sentir “salvo” da multidão em fúria ainda tenho 2 segundos para reflectir: Grande “Chapeau” para os guardas dos MSF, que sem armas conseguiram fazer entrar os feridos sem deixar a multidão entrar pelos portões, tal como mandam as regras, mas na prática é extremamente difícil... Grande “Chapeau”... gente boa, gente maravilhosa.

Entro no edifício e sou invadido pelos olhares destas senhoras indefesas, impreparadas e assustadas com o cenário, com os feridos, com medo de serem atacadas pela multidão a ferver lá fora... No seu olhar vejo um nervosismo desesperado, e um alívio e agradecimento desmedido por me verem ali... Eu primeiro tenho que as “tratar” a elas, tenho que as acalmar, e as orientar nas tarefas... Eu ainda nem olho para as dezenas de feridos espalhados por diferentes quartos, para me dirigir a elas: “tenham calma, tenham calma, eu sou médico... eu vou vos ajudar... vai tudo correr bem” com um sorriso calmo e pacificador... que era basicamente a mascara que eu lhes queria mostrar... porque eu também estava nervoso. Mas é incrível como a responsabilidade nos traz a sensatez de fazer o que tem de ser feito, e a frieza de reacção que jamais imaginaríamos ter... Elas nunca me tinham visto, nem eu a elas... mas eu diria que da minha parte foi amor à primeira vista... É ao sabor dos gritos dos feridos como banda sonora, que eu as conheço... Enfermeiras-parteiras e auxiliares que estão em pânico com tantos feridos sem saber o que lhes fazer... mas que já salvaram a vida a milhares de mulheres e bebés na zona mais problemática da cidade, num dos países mais problemáticos do mundo... gente boa, gente maravilhosa.

Eu fico frio, eu sinto-me uma máquina desprovida de sentimentos tal é o meu estado de alerta para fazer a triagem, estabilizar/tratar, para depois enviar para este ou aquele hospital os feridos mais graves que precisam de cirurgias urgentes... Eu já vi algumas situações do género, o que me ajuda imenso a agir com as normas que fui definindo como sendo as mais correctas. Eu não toco em nenhum ferido até os ver a todos, sem excepção... Tudo isto tem muita ciência, e é adaptado àquilo que eu sei que se pode ou não fazer, nesta capital esquecida pelo mundo...

É incrível a quantidade de informação clínica que eu na primeira fotografia de segundos consigo tirar de cada ferido a quem passo os olhos... A isso acrescento a frequência cardíaca, a frequência respiratória, o nível de consciência, e o local dos ferimentos de cada um... Este tipo de vítimas, podem ser de avaliação muito traiçoeira, pois os estilhaços são imprevisíveis... o que por vezes parece uma ferida punctiforme fez danos internos gravíssimos, e por outro lado um ferimento grande e feio, pode não ter grande importância no prognóstico vital... Mas ainda não é o momento para grandes diagnósticos... Esta fase é apenas para estratificar todos os feridos por níveis de gravidade... Invariavelmente há uns histéricos que roubam muita atenção aos mais inexperientes, mas que não têm nada de especial... Em 10 minutos, já sinto a situação controlada... Não está nenhum ferido para morrer, há 3 que me preocupam e vão exigir uma avaliação mais cuidada da minha parte, há mais 7 que vão precisar de radiografias e cirurgias mas não muito urgentes e mais uns 10 que têm apenas feridas superficiais e que depois de os ver com mais calma talvez dê para irem para casa...

Saio cá para fora para mergulhar novamente na multidão e vou ter com o meu amigo francês e com os homens armados para lhes fazer o ponto da situação... “Está tudo controlado, ninguém vai morrer, há 3 que vou ter que ver com mais calma e que vamos transferir para outro hospital, e mais uns quantos que sem urgência também irão.”
Rapidamente são gritadas palavras de ordem na língua local (Sango) que acalmam a situação e peço ao meu amigo para que se trate dos preparativos para transportar então os doentes mais graves para um hospital... Isto é tudo um assunto muito sensível, pois há gente do PK5 que não passa para os outros lados da cidade
por medo de represálias que são frequentes...

Volto lá para dentro para então re-examinar os 3 mais graves, tratar em conformidade, escrever no dossier, e metê-los na ambulância... Com os outros 7 oriento a estabilização das fracturas, analgésicos, reexamino com tempo e vão seguindo para outros hospitais calmamente... Sobram uns quantos com ferimentos superficiais, muita ansiedade , e depois de uma limpeza, pensos e dois minutos de conversa, vão seguindo para casa... E vamos arrumando a situação... até que nos deparamos com a maternidade com duas mulheres assustadas que estavam a ser vigiadas por estarem numa fase inicial do trabalho de parto.

Eu começo a entrar naquela fase de introspecção, quase a deixar entrar as emoções e a fazer uma leitura dos 360º que me envolvem, quando me deparo novamente com a interacção muda das queridas senhoras que foram sugadas por este fenómeno de violência e emergências médicas, que chocam qualquer mortal. Ultrapassaram largamente a sua área de saberes, foram corajosas, foram valentes... gente boa, gente maravilhosa. Eu não cabia em tanto orgulho e tanta admiração pelo que estas queridas enfermeiras-parteiras africanas acabaram de fazer, tendo em conta os acontecimentos que acabamos de vivenciar... Só me apetecia abraçá-las e enche-las de beijos, mas nós nem nos conhecíamos... e por isso pedi para nos sentarmos a rever os acontecimentos, enquanto percebi que o meu amigo fazia o mesmo com equipa de guardas que esteve irrepreensível...

Sentamo-nos nuns bancos corridos de madeira à porta do edifício já a noite tinha chegado... Com mais calma pude olhá-las nos olhos e sentir as suas emoções... Estavam acima de tudo assustadas, mas também aliviadas e curiosas por compreender o que se passou ali do ponto de vista médico...

Uma granada a explodir, uma multidão volátil, 20 feridos, é muito duro de gerir, a adrenalina nos nossos corpos atinge níveis alucinantes... mais ainda se não se souber o que fazer com eles... Eu desfiz-me em elogios pelo trabalho que elas fizeram, pela forma como me ajudaram a gerir uma situação tão difícil, e disse-lhes: “Vamos combinar um dia, e eu venho cá para vos ensinar!” Os seus olhos caídos ainda a recuperar do choque transformaram-se num sorriso tímido e esperançoso, que serviu para me aquecer o coração e motivar ainda mais para fazer algo mais por este povo que tanto tem sofrido...

Gente Boa, Gente Maravilhosa


(continua...)

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