Rep. Centro-Africana 10.0 - Abortos Clandestinos


O aborto a meu ver é algo de difícil avaliação ética e moral. Eu sou a favor de todo o tipo de liberdades individuais até ao momento em que interferem com a liberdade de outro(s). E do ponto de vista científico tenho muita dificuldade em definir o momento em que duas células ao se juntarem são consideradas uma vida. E por isso resolvo este dilema interior numa teoria de mal menor. Sou tendencialmente a favor, porque não vejo tanto sofrimento ao “matar” um conjunto de células, e vejo bastantes inconvenientes em trazer ao mundo um ser humano não desejado. Mas repito, considero perfeitamente discutível e percebo boa parte dos argumentos de quem tem uma opinião diferente da minha. Considero também que esta mesma questão tem visões e análises diferentes consoante o ponto do planeta em que nos encontramos. No mundo pobre e sub-desenvolvido, a pobreza extrema, a fome infantil, a violência sexual, a ignorância, a fragilidade da mulher, doenças transmissíveis, levam na minha opinião, a que toda esta questão seja mastigada e digerida de uma forma muito diferente.

Acho também importante trazer para análise algo que me parece, pouco discutido na sociedade civil e política mundial. A sobrepopulação do planeta. Num mundo cada vez mais atento ao todo, e ainda bem que assim é, com cada vez mais reflexões ambientais, sobre as alterações climáticas, a  poluição do planeta pelo plástico e por aí fora... questões de uma importância gritante e de extrema urgência. Mas parece-me sub-discutido algo que de alguma forma é o pano de fundo de todos estes problemas. Somos demasiados. E a crescer de uma forma desmedida!

Alguns dados para reflectir:
- Depois da revolução industrial houve um enorme crescimento da população e em 1800, atingimos 1 bilião de pessoas.
- Em 1930, 2 biliões
- Em 1960, 3 biliões,
- Em 1974, 4 biliões,
- Em 1987, 5 biliões,
- Neste momento somos 7,7 biliões
- Em 2055, seremos 10 biliões.

Onde é que eu quero chegar? Este “problema” é uma questão planetária que nos concerne a todos e que tem de ter uma reflexão global, à semelhança das alterações climáticas, até porque a sua inter-relação é evidente. O planeta tem recursos limitados, quer sejamos vegetarianos ou carnívoros, esta pressão demográfica vai sempre conduzir a mais poluição, mais aquecimento, mas tensão entre os povos, guerras, fomes, e por aí fora... E sabemos também que a falta de planeamento familiar está indexada à pobreza e à falta de educação, como é tão evidente em alguns países Africanos que duplicam a população a olhos vistos, e também ligado a algumas questões culturais, onde talvez a Índia seja o maior (pior) exemplo. A mim pouco me interessa, se são brancos, pretos, asiáticos ou misturados... A população desta bolinha azul tem de parar de crescer. Temos que estabilizar, equilibrarmo-nos na educação, na saúde, na riqueza, e na felicidade. Sim, é uma grande utopia. Mas se não é impossível, porque não lutar por isso?

Como quase sempre, tenho mais perguntas do que respostas, mas toda esta reflexão é para falar sobre uma das coisas que mais me impressionou na Rep. Centro-Africana, que foi a quantidade extravagante de abortos clandestinos... Porquê clandestinos? Porque é proibido. Porque é que é proibido? Dogmas da fé que nestes locais do planeta me parecem irresponsáveis. Repito: pela pobreza, porque há milhares de crianças a morrer à fome, porque há infinitas violações, porque a ignorância é asfixiante... e por tudo isto, parece-me que a balança do sofrimento entre as duas posições pende claramente para mais dor a sofrimento ao continuar assim, mais ainda depois de ter visto tudo o que eu vi.

Mal cheguei, no meu primeiro dia de trabalho na maternidade de Bangui, deparei como um caso clínico complicadíssimo. Uma mulher jovem em estado crítico, por consequência de um abortamento clandestino. Perfurou o útero e perfurou o intestino. Submetida a várias cirurgias, com infecções abdominais nunca bem resolvidas, enfraquecida, desnutrida e com uma peritonite por resolver... Acabou por falecer passados uns dias... É sempre complicado tudo perceber quando entramos a meio... mas foi logo a minha primeira derrota.

E durante a minha missão foram umas atrás das outras... Literalmente, perdi a conta. Mas as histórias eram/são todas muito parecidas... Por este motivo ou por aquele, queriam abortar, e pela ilegalidade desta interrupção involuntária da gravidez, introduziam objectos pontiagudos através do canal vaginal de forma a entrar no útero, e terminar com a gravidez indesejada. Por vezes faziam-no mesmo sozinhas, mas quase sempre recorriam a estas “abortadeiras” tradicionais que o faziam sabe-se lá em que condições... Chegavam-me relatos de que, por vezes, seriam feitas sobre anestesia geral, para meu grande espanto... Como? Em que condições? Não faço ideia... Que esterilização terão esses objectos? Quantas não morreram? Quantas não morrem e morrerão? Nunca saberei, nunca saberemos... Num país onde a esmagadora maioria da população não tem electricidade nem água corrente, é difícil de imaginar em que condições eram/são feitos estes abortos... O que eu sei é que foram mesmo muitas as que nos chegaram às mãos com perfurações uterinas várias e no seu extremo algumas com perfurações intestinais... Cirurgias por vezes complexas, e por vezes tarde de mais... E estes relatos são da capital, Bangui... o que se passará pelo país fora, onde quase não há cuidados de saúde, e a educação é ainda mais escassa? O que se passará por tanta desta África profunda? Não há números, não há dados, não há estatística... ma sabemos que são mais do que muitas as mulheres que já morreram neste flagelo...

Estes são os meus relatos, com a maior honestidade que consigo. Não pretendo de forma alguma fazer advocacia desta ou daquela política do aborto... Partilhei a minha posição só por uma questão de transparência e honestidade intelectual... Não pretendo defender ou atacar nenhuma posição ou opinião... Pretendo “apenas” mostrar este mundo, que é tão real como o nosso.

Imagino o desespero de uma mulher que tem a frieza e a loucura de se perfurar, sabendo que pode ser o fim da sua vida... É impossível não causar em mim reflexões muito profundas. Os seus olhares, o seu sofrimento, a sua vergonha, a sua fragilidade, eu teimo em não esquecer...

Nós salvamos muitas destas vidas, destas almas perdidas... mas pouco fazemos em relação aos “porquês”... pouco fazemos para que “isto” deixe de acontecer...



1 comentário:

  1. Gustavo, obrigada por partilhares as tuas histórias...
    Acho que a maioria de nós vive demasiado focado na sua vida, na sua rotina, nos seus problemas e esquece-se de olhar em redor e ter uma visão mais global...olhamos apenas para a superfície dos problemas e opinamos acerca dos conflitos, das guerras, das injustiças sociais...sem perceber que um importante co-fator é o crescimento exponencial da população mundial...isto acontece porque somos egoístas, olhamos primeiro para as nossas necessidades, os nossos projetos...
    Somos demasiado pequenos neste multiverso e a história da humanidade que nos parece tão longa, no fim de contas corresponde a praticamente nada perto da história do nosso universo e do nosso planeta...achamo-nos muito evoluídos, mas a verdade é que cada vez mais destruímos o nosso lar com o nosso egoísmo, com a nossa ganância...fomos construindo a ideia de que TER é SER...somos uma sociedade consumista a caminhar para a sua destruição...Recusamos ver esta realidade, preferimos ignorá-la...porque não dá jeito comprar menos uma jóia, menos um carro, menos uma casa...
    Tal como disseste, a educação é um pilar essencial...é importante informar, dar a conhecer a realidade, não fechar os olhos, querer ver e conhecer...só assim podemos tomar consciência das melhores atitudes a tomar e de como orientarmos a nossa vida...a solução deve passar por isso...educar para a tolerância, compaixão, compreensão, altruísmo...cuidarmos da natureza e cuidarmos uns dos outros..
    Contudo, quando penso em quem mais precisa de ser "educado"...não sei...honestamente...será que precisam mais aqueles que vivem em mundos subdesenvolvidos, enterrados em conflitos/fome/pobreza que os impedem de ter uma consciência mais global ?...ou aqueles que vivem em países ditos desenvolvidos, no mundo consumista, aqueles que têm asseguradas as suas necessidades mais básicas e mesmo assim preferem fechar os olhos e ignorar esta verdade indiscreta?...serão estes ou aqueles que nem sabem se têm o que comer no dia de hoje, que nem sabem se vão sobreviver no dia de amanhã?...
    Acho que termos um sentido de comunidade é perceber que estamos todos juntos, todos interligados neste mundo...e aquilo que fazemos tem implicações nos mais diversos locais do planeta...
    Qual será a solução?...tal como tu não sei...mais perguntas que respostas...
    Não acho que devemos deixar de aproveitar o tempo que temos para viver, mas gostaria que não o fizéssemos sem reconhecer no mínimo a influência que as nossas atitudes têm na vida da nossa grande família azul...
    Não podemos estar num canto do mundo preocupados em reduzir o plástico, os combustíveis fósseis, o consumo de carne...acreditando que tudo ficará melhor, sem perceber que uma grande parte da poluição não vem daqui..vem daqueles países que têm mais com que se preocupar, têm que se preocupar em sobreviver hoje, agora...e portanto o plástico pode esperar...por isso talvez seja mesmo importante pensar globalmente...isso poderá dar-lhes uma hipótese de poderem refletir sobre outras coisas, futuros mais longínquos em que a preocupação com o planeta terra prevaleça para que possamos ter recursos para todos e sermos felizes nesta "bolinha azul"...

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