Síria 1.0 - Chegou a Hora

A carga emotiva é tão grande que parece que as ditas vivências da Síria nunca foram suficientemente processadas… Mas chegou a hora de enfrentar o touro pelos cornos, e começar a deitar cá para fora, como sempre sem saber muito o que dai virá…

Foram muitas noites sem dormir, cesarianas a meio das noites gélidas, várias situações de grandes influxos de vítimas dos bombardeamentos, noites passadas com o coração nas mãos a sentir a casa tremer com as bombas a cair…. Ainda assim terá sido nos momentos da entrada e da saída que tive os momentos de maior intensidade neste minha missão no norte da Síria, na província de Idlib, não muito longe de Allepo, bem nas linhas da frente de combate, em finais de 2013 já a guerra caminhava para o 3ºano, e num momento duma viragem catastrófica que nos enche de calafrios até ao dia de hoje…. O aparecimento do Estado Islâmico.

A viagem começa no processo de decisão, e até esse foi doloroso… O ano de 2013, foi o pior ano da minha vida… Por problemas pessoais cuja responsabilidade só posso imputar em mim, sofri horrores…bati muito tempo com a cabeça nas paredes em desespero e tive que ir buscar forças que não sabia que tinha… E como quase sempre, na face de grandes problemas a vontade instinctiva era de fugir… e eu tinha uma fuga muito fácil e que adoro que se chama: Médicos Sem Fronteiras… A tentação de ir, de fugir estava sempre ali tão perto, mas eu fiz-me homem, segurei-me e fiquei, e consolidei a passagem pelo cabo das tormentas, o melhor que soube. Nada disto passa, mas vai passando… E passado um ano, para ter a certeza que nenhuma decisão era tomada a quente, decido mudar de vida… Sair do hospital que me formou e viu crescer como pessoa e como médico durante 15 anos, e oferecer-me para pela 4a vez trabalhar com os MSF… mal podia esperar voltar a sentir o coração a bater na esperança de dar vida, e alimentar a minha…. Tinha chegado a hora, e que alívio que era, sair um pouco da prisão que tinha criado dentro de mim…

Lembro-me com memorias de transparência cristalizada, de ler, e reler, e reler, e reler, e reler outra vez, e quase como um robot automata reli para aí 100 vezes o email que me propunha a próxima missão na Síria – Idlib… Sinto o corpo todo a tremer… e não sei diferenciar ou dosear o enxurrilho de emoções que atravessam o corpo como choques eléctricos, enquanto releio o email já sem o ler… Medo de morrer, vontade de viver… Medo de magoar quem mais gosto, vontade de voltar a voar… Medo de me voltar a perder, vontade de fazer a diferença… Medo que seja cedo, vontade que seja agora… Penso no mal que tenho feito aos que mais gosto, mas tenho que ser honesto com o meu coração… Vejo a minha vida toda em minutos e depois em horas…. Mas a decisão estava tomada à partida… chegou a hora de voltar a ser feliz: eu vou!

Tento sempre estar atento ao que se passa no mundo e acompanhei bem de perto os momentos principais de toda a primavera Àrabe… A história de vida simbólica do vendedor ambulante tunisino que se imolou pelas injustiças de uma sociedade opressora, criou em todos que acreditam na democracia e liberdade, uma força que ficará na história como catalisadora de uma mudança... Ou pelo menos uma tentativa... Vários regimes ditatoriais do mundo árabe abanaram e caíram perante um povo que exigia uma vida mais digna e um mundo melhor... Túnisia, Líbia, Egipto, expulsaram os respectivos líderes e ditadores.... E na Síria um grupo de adolescentes em Março de 2011, escreveu um graffiti na parede da escola : “o próximo és tu, doutor!” (referindo-se a Bashar Al Assad que é médico) .... Estes jovens foram presos, torturados, electrocutados durante semanas.... O povo saiu à rua exigindo que os libertassem.... e a resposta foi à lei da bala por parte do exército Sírio.... estava instalada a revolução, a guerra civil.... das mais mortíferas e maquiavélicas que há memória...

A minha vontade de ir vinha na mesma proporção dos apertos no coração, que as imagens e relatos de sofrimento deste povo me faziam sentir... Já tinha estado em 3 guerras, mas esta adivinhava-se como muito mais impactante na minha história de vida e despertava em mim, um medo que me congelava os pensamentos.... mas que teimei em resistir...

Marcou em mim, um antes e um depois.... a importância desta missão enche-me de orgulho... pois mais do que nunca o propósito dos MSF fazia sentido... Muito mais do que os feridos de guerra, que são muitos, é toda uma população que ficou despida de cuidados de saúde básicos e diferenciados, tornando a mortalidade exponencialmente superior à causada pelas bombas...

Às vezes perguntam-me: “Porque é que vais?” .... eu não digo nada, sorriu em silêncio e respondo para mim: “Como é possível não ir?”


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Chegou a hora de começar a escrever sobre a Síria....


Síria 2.1 - Em Sentido Contrário

Tudo começa naquele local repleto de magia, o aeroporto... Sinto o romper do cordão umbilical ao passar o controle de segurança... Respiro fundo e estou sozinho... Eu contra o mundo! Gosto dessa sensação de que já não posso olhar para trás... é só para a frente que estão concentrados todos os meus pensamentos, nesta missão que me marcará para todo o sempre... Olho à minha volta e sou apenas mais um, mas dentro de mim sinto uma força, uma energia, uma vontade de vencer inabalável... A cada contacto com desconhecidos, há uma voz dentro de mim que me domina: “Se soubesses para onde eu vou?” .... para onde todos querem sair...

E em 3 voos de seguida me ponho em Hatay (ou Antakya) na Turquia, já bem na fronteira com a Síria... e aí pelas caras, pelas roupas dos MSF me apercebo que neste último voo já vinha parte da minha nova família... Aqui já estamos 5 elementos desta futura equipa do hospital do norte da Síria... Não nos conhecemos, mas identificamo-nos de imediato, com expressões e linguagem comportamental semelhantes... um misto de excitação, cansaço, medo, entusiasmo e muita vontade de trabalhar...

O hospital onde eu trabalhei tinha sido encerrado semanas antes pela crescente presença de grupos radicais... que nós hoje chamamos hoje de Estado Islâmico... O Verão de 2013 foi um período de transição/modificação daquela que era a conjectura dos territórios controlados pela oposição ao regime... Esta crescente presença e repressão de grupos radicais, rapidamente criou enormes condicionalismos na população síria, e claro no trabalho dos Médicos Sem Fronteiras.... Mullahs e Imãs na sua maioria vindos do Iraque povoavam as mesquitas da região, alterando as “regras do jogo”, e assim impondo uma versão do Islão altamente repressora e punitiva... algo completamente diferente da práctica da esmagadora população síria, bastante moderada e equilibrada na sua forma de estar na vida... Esta mudança de paradigma, criou tensões e conflictos que obrigaram a evacuar o projecto e encerrar o hospital por falta de condições de segurança... E cabia-nos a nós reabrir o hospital e assim dar de novo alguma esperança aquele enorme pedaço de terra no norte da Síria, totalmente desprovido de estruturas de saúde, não fora os Médicos Sem Fronteiras...

Do aeroporto, vamos directos para o hotel.... e aí nos esperava a nossa chefe. Ela já estava em Hatay, há várias semanas a planear e orquestrar o regresso à Síria, e a reabertura do hospital... Fomos directos para uma reunião no quarto dela.... ainda estava meio desorientado da viagem, e já estava a ser bombardeado com informação... A minha chefe, enfermeira de profissão base e já com uma experiência de MSF absolutamente incrível... De imediato a minha chefe, entre cigarros, começou a abrir mapas por cima das camas dos seu quarto, daquilo que seriam os nossos próximos dias.... Até há pouco tempo atrás a Turquia facilitava a passagem de elementos dos MSF, por uma fronteira improvisada que não era mais que um arame farpado (que eu viria a conhecer mais tarde) e que encurtava bastante o trajecto... Mas com esta opção posta de parte, teríamos que dar uma enorme volta passando pela fronteira oficial na cidade turca de Killis... E o grande problema começa a partir daí quando a minha chefe nos mostra no mapa as inúmeras áreas em que ao fazer os cerca de 300kms por dentro de território sírio até chegar ao destino final, estaremos bastante expostos aos bombardeamentos frequentes.... As estradas são escolhidas minuciosamente na tentativa de serem protegidas pelas montanhas, mas algumas partes sombreadas a lápis cor-de-rosa no mapa, colocam-nos à mercê dos bombardeamentos frequentes do regime sírio.... É difícil, não engolir em seco com a antevisão destes perigos... mas paralelamente a importância da nossa missão parece crescer ao minuto e a vontade de fazer o que me propus assim acompanha....

A cidade de Antakya embora a escassos kilómetros da fronteira com a Síria, parecia ter todo um funcionamento normal.... A sul uma parede de montanhas, separava aquela cidade turca do maior inferno na terra do momento.... a guerra da Síria. Depois da dita reunião fomos beber um copo para descontrair e nos conhecermos... A conversa é boa, mas não consigo parar de pensar no que está a acontecer mesmo a sul, embora pareça tudo tão calmo e normal.... Fui dormir cheio de vontade do dia a seguir.... mas durante toda a noite ouvi bombardeamentos.... ou achei que ouvi, porque pelos visto tinha sido o único.... era tudo da minha imaginação....

A viagem de Antakya até Killis, não me deixou grandes memorias... mas a aproximação da cidade Killis que era mesmo na fronteira com a Síria, começou a abalar a minha estrutura..... Campos e campos e campos de refugiados até perder de vista a nascer por todos os lados... A fuga da guerra, mas a esperança de voltar mal esta acabe estacionou-os logo ali no primeiro ponto possível de quem saíra do norte da Síria em linha recta com Allepo e tantas outras cidades importantes.... É sufocante, asfixiante, desconcertante ver tanta a gente viver em tendas de plástico mais ou menos improvisadas, com condições limítrofes de sobrevivência.... é assustador e revoltante...


Em Killis, o assistente sírio da minha chefe, dá notícia pelo telefone a elementos do hospital na região de Idlib para onde íamos, que já estávamos na fronteira e em breve iríamos reabrir o hospital... Do lado de lá do telemóvel, ouvem-se gritos de alegria que nos aquecem a todos o coração.... Nessa noite dormíamos em Killis, antes de passar a fronteira bem de manhãzinha.... Escusado será dizer que há um “nervoso miudinho” que nos domina antecipando toda uma aventura que ainda nem começou... Vamos beber um copo e fumar shisha ao único bar de Killis que vende álcool, seria o último durante muito, muito tempo, pois na Síria tolerância zero por questões de segurança.... Nesse bar o avançar da conversa, a troca de diferentes sabores de shisha, e a construção de espírito de família de quem ia viver e trabalhar junto dia após dia sem folgas num ambiente de grande stress... é contagiado por um grupo de sírios todos do sexo masculino e com roupas de quem estava bem na vida, que começa a dançar com um ânimo e uma festividade como se celebrassem um casamento... Trocavam sorrisos na nossa direcção e já bem bebidos dançavam como se não houvesse amanhã... Até ai tudo normal, o detalhe que me marcou até hoje foi que começaram a lançar notas para o chão... quanto mais dançavam mais notas atiravam para o mesmo chão onde dançavam... seriam 7 ou 8 de várias idades, e entre abraços, risos, gritos e muita dança aos ritmos hipnotizantes árabes e/ou turcos... Observava-os disfarçadamente, mas dominavam completamente os meus pensamentos. A energia que transmitiam era uma mistura de alegria dum casamento com a tristeza de um funeral... Imagino uma salada de emoções de quem sente alívio por passar a fronteira e fugir a esta guerra estupidamente mortífera com a tristeza de quem deixa para trás a sua amada pátria, sabe-se lá com quantos entes queridos ainda à disposição das atrocidades desta guerra...

Imagino que deixar/desistir da sua pátria e tudo que ela representa será como abandonar para uma morte certa a nossa própria mãe....


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(continua)


Siria 2.2 - Em Sentido Contrário

Por vezes bloqueio… a falta de tempo é claro a principal culpada, mas há uma mistura de incapacidade de encontrar o momento certo, a inspiração certa, para mergulhar bem fundo em memórias que sei que estão lá, que são muito fortes, e que gostava que nunca desaparecessem… pois fazem parte do melhor de mim…
Estou há tanto tempo para escrever sobre a Síria, que fico sempre algo amordaçado, por achar que não estou à altura dos meus pensamentos… E por isso tenho que dizer a mim mesmo, “seja de que maneira for, tem que sair cá para fora “…. A minha escrita boa ou má exige muito de mim, mas também me ajuda a (re)encontrar o foco quando me parece mais preciso…
Nunca me esquecerei desse dia, e de quase nada que nele se passou, pois entrar para dentro (perdoem-me a expressão) de uma Guerra não é todos os dias… Dormi algo em sobressalto, num enorme quarto para os 4 homens da equipa num Hotel muito antigo em Killis… De imediato aquele friozinho na barriga “é hoje!” que me deixou com todos os sentidos muito alerta. Ainda houve tempo para aquele café pensativo, onde vemos a vida toda a passar pela frente, e nos perguntamos algumas vezes: “o que estás aqui a fazer?” …. Mas na verdade, nenhuma hesitação, a determinação domina-me! Fomos de carro até à fronteira, e depois a fronteira propriamente dita terá que ser atravessada a pé. Há fronteiras e fronteiras, atravessar aquela fronteira da Turquia para a Síria é como mergulhar para dentro de um vulcão onde ninguém quer estar…
Mochila às costas mais todos os sacos que conseguíamos levar para o projecto, deixaram-nos a todos muito carregados… Na fronteira Turca, à parte de milhares de refugiados, tudo parecia normal… Carimbo no passaporte de saída do país e pernas ao caminho… Mas ao contrario do normal em que um carimbo leva a outro, aqui não! Era um carimbo para lado nenhum, para nada ou pelo menos para nada normal no que a um país se diz respeito… Pois do outro lado, o “controlo fronteiriço” era feito por uma série de homens armados de barbas longas e túnicas negras, que simplesmente viam quem estava a passar, e intervinham se lhes apetecesse… Naquele momento metiam-me medo, mas depois passou a ser o meu dia-a-dia… ainda mais sabendo que quem controlava esta zona era o Free Syrian Army (oposição moderada ao regime)… gente que via com muito bons olhos a entrada dos Médicos Sem Fronteiras…
Ainda na travessia a pé muito carregado, estava mergulhado pela sensação de estranheza por ir em sentido contrário… Milhares passavam ou tentavam passar esta fronteira para entrar na Turquia, mas ninguém queria/quer entrar na Síria… Muito perturbante absorver os olhares dos que se cruzam por nós no sentido contrário, com tanta dor e sofrimento que carregavam às costas… Por esta altura a Guerra aproximava-se dos 3 anos, e já todos , mas todos têm histórias de famílias desaparecidas, ou familiares mortos, casas destruídas, vidas arruinadas, e uma total luta desesperada pela sobrevivência… E tudo isto em cada olhar de tantos e tantos que passaram por mim, lado a lado, naquela travessia de 1 ou 2 kms… Triste, mas mais ainda me ajudava a reforçar a compreensão do porquê de estar ali…
Já na Síria, com a bandeira do FSA , que em vez do vermelho tem o verde como bandeira do país, nos esperavam carros para darmos início a uma viagem que seria muito longa…
Ainda passamos por um projecto/hospital dos MSF logo ali na fronteira, antes de começarmos a percorrer os muitos Kms que iríamos percorrer por estradas rurais, tentando estar o mais “escondido” possível pelas montanhas, no que diz respeito aos bombardeamentos extremamente frequentes. Pelo menos era isto que me explicavam, pois eu claro que não percebo nem metade do que se está a passar ou porquê!
Esta viagem marcou-me bastante, como não poderia deixar de ser. Estive horas e horas colado à janela do carro, a tentar perceber como é que possível que deixemos chegar uma desgraça a tal dimensão… Quase todas as vilas e aldeias estavam desertas, sem vivalma, sem nada ou ninguém para contar a história, apenas pelas muitas casas semi-destruídas pelas bombas conseguíamos espreitar para dentro, e ver que um dia lá viveu alguém… Demasiado triste ver tantas aldeias desertas, e pensar nas tantas histórias de vida de quem tudo deixou para trás, para fugir das bombas... Haverá tristeza maior do que uma guerra destas?
Pelo caminho passavam várias vezes por nós várias carrinhas todas no mesmo estereótipo... Uma pick-Up com homens com cara de mau, de barba comprida, lenços pretos na cabeça, cheios de metralhadoras e na parte de trás da carrinha uma enorme metralhadora montada com um ou dois homens a grande velocidade, sempre prontas a disparar... As histórias de que grupos radicais islâmicos ganhavam mais e mais preponderância por estas áreas e com uma atitude repressora e ameaçadora para com tudo e todos, deixava-me sempre em sobressalto a cada passagem duma destas pick-ups, nunca sabendo quem é quem, assim como nas muitas paragens em check-points, onde nunca saibamos muito bem o que esperar... Por estes grupos fomos por exemplo proibidos de levar máquinas fotográficas ou de tirar uma fotografia com outro aparelho qualquer...
Ainda nos faltava um pedaço e começou a anoitecer, pelo que tivemos que pernoitar num outro projecto dos MSF, ainda longe do nosso destino... Foi a minha primeira noite na Síria, e como regra a saber, a primeira coisa que nos explicam, é como e para onde fugir no caso das “coisas se complicarem” ... Aqui já há gente e uma pequena cidade que vai funcionando (pq está algo protegida pelas montanhas), já me sinto melhor, pois estou no meio da população, de alguma forma é bom ser apenas mais um... E como não há tempo a perder todos os elementos da equipa médica fazem uma reunião nessa noite, para começarmos a alinhavar a distribuição de funções... Temos que reiniciar um pequeno hospital, os desafios são mais do que muitos, e a vontade de ser útil é enorme...
Dormi muito mais tranquilo e cheio de vontade de começar a trabalhar... E logo cedo nos fizemos à estrada... A parte que faltava de estrada, já era bem mais populada, e assim vou começando a ver/conhecer a gente e o país... Muitos mais também eram os check-points de grupos armados, e eu sempre com a mesma apreensão, não fazendo a mínima ideia sobre quem era quem no momento em que nos param na estrada... depois explicava-nos o nosso tradutor, de quem se tratava e o que tinham dito... Uma ou outra vez preocupei-me ao ver feições europeias em alguns destes homens pois sabia que esses seriam certamente radicais... ainda que as barbas e as vestes fossem as mesmas.
E depois de curvas e mais curvas numa zona bastante montanhosa finalmente chegamos à aldeia que durante uns tempos eu iria chamar de casa... A perplexidade dos locais ao nos verem chegar é indescritível... Imagino eu um misto de agradecimento com incompreensão, de como poderia estar a chegar gente de tão longe àquele inferno... Mas naquele momento os sorrisos e um brilho bem forte nos olhos dominam as suas expressões: “ os Médicos Sem Fronteiras voltaram!” Pelos menos este dia, era um dia bom naquelas vidas...
Pousamos as coisas na nossa nova casa, homens para um lado e mulheres para o outro.... pois era mais uma regra imposta pelos grupos radicais islâmicos... a que os Médicos Sem Fronteiras teriam que respeitar para serem aceites a trabalhar naquela zona.... e depois fomos de seguida para o hospital que ficava 2 ou 3 kms montanha a cima...
O hospital não era mais do que um grande armazém transformado de uma forma muito simples num hospital, com serviço de urgência, bloco operatório, internamento, laboratório e maternidade... e aí como as notícias correm rápido, já nos esperava uma boa parte do nosso staff Sírio! Foi um êxtase, nunca senti uma recepção tão calorosa, ninguém se conhecia , mas a alegria de nos verem era enorme... fomos recebidos com palmas, abraços e sorrisos de quem estava maravilhado de nos ver....
Uns meses antes os MSF tomaram a decisão de evacuar este projecto pela crescente presença e ameaça de grupos radicais islâmicos e com isto “abandonaram” o hospital durante uns meses, suspendendo todas as actividades médicas e com isto certamente morreu muita gente que poderia ter sido salva...
Emoções muito fortes.... ainda não tinha feito nada como médico e já dava a minha missão como recompensadora ao ver a alegria daquele gente ao ver e sentir que iríamos reabrir aquele hospital.... Numa guerra terrível e mortífera, a serem chacinados às centenas de milhares, durante quase 3 anos, e com a crescente ameaça dos grupos radicais, o povo Sírio não tinha muitos motivos para sorrir....

Mas hoje, completamente em sentido contrário, os Médicos Sem Fronteiras voltaram! E eu estava super feliz por ali estar.

Siria 3.0 - Sou um Alvo

A Síria tornou-se no palco de Guerra mais sangrento que há memoria! Imaginam se fosse o vosso país? Imaginem!! Porque eles também não o imaginavam… A tristeza de ter esta ferida tão sangrante e tão aberta faz também com que venha ao de cima o melhor de muitos seres humanos, e encontramos uma motivação para trabalhar que vai muito para além do humanitário… Não há palavras para descrever a dedicação e entrega dos que “lutam” trabalhando arregaçando as mangas, sem armas, salvando vidas pelo seu pais... Trabalhar lado a lado com o povo Sírio foi de longe dos maiores privilégios que tive na minha vida...

E assim durante uns dias, a nossa equipa de expatriados juntamente com a maioria do nosso staff trabalhavam de gás a fundo, para que o hospital voltasse a estar operacional... Com isto, as vidas iam se cruzando, e as histórias de vida de cada um apertavam-nos o coração até não conseguir respirar... A cada passo, mais certeza tinha que mais do que tudo era ali que queria estar... A mim coube-me de início ver se o bloco operatório estava operacional, no que à minha parte de anestesista dizia respeito, assim como à zona de reanimação do recém-nascido... Rapidamente me mostrei disponível para ajudar noutro sítio qualquer pois o nosso bloco tinha tudo e bem organizado... Dei uma mão e uma vista de olhos na esterilização, que por sua vez também funcionava com umas senhoras de muito pouca conversa (em inglês), mas muito rigorosas, metódicas e profissionais ... E depois, enquanto os meus colegas faziam as suas tarefas , nas diferentes áreas do hospital: farmácia, serviço de urgência, maternidade, enfermaria, ambulâncias.... eu fui parar ao laboratório... Quem diz laboratório, diz Banco de Sangue, pois eram as suas funções praticamente exclusivas...

Os MSF com a sua super organização têm um livrinho só sobre transfusão sanguínea... E eu que nada percebia sobre o lado laboratorial do tema, pus-me a estudar esse livrinho de uma ponta à outra... Uma vez no Congo vi uma rapariga de 17 anos a morrer nas minhas mãos porque alguém se tinha enganado na grupagem sanguínea... traumatizou-me bastante esse momento, pois foi daquelas mortes completamente evitáveis, e em frente aos meus olhos... Era pois tudo o que eu não poderia deixar acontecer era que isso acontecesse, e juntamente com alguns locais que já tinham experiência, recapitulamos as regras vezes sem conta.... até termos os passos todos automatizados nas nossas cabeças... No frigorífico estava ainda bastante sangue com meses de colheita.... e tudo teria que ser deitado fora....


E como sempre há muita coisa que fica “lost in translation”, pois o meu árabe só dá para meia dúzia de palavras.... e nestes entretantos, ainda o hospital não estava aberto e já tinham feito correr a palavra que estávamos disponíveis para colher sangue.... Quando eu ponho a cabeça de fora do compartimento que era o laboratório, vejo uma fila interminável de gente, novos e velhos, homens e mulheres.... desejosos para dar sangue! Vieram-me as lágrimas aos olhos, de ver aquela gente, tanta gente, com tanta vontade de “lutar” pelo seu povo mas sem levantar armas... Enquanto se deitavam na cadeira das colheitas, não hesitavam perante a grossura da agulha ou as mãos firmes do enfermeiro, e diziam-me : “tudo farei para salvar a minha pátria” .... “ Não sei se não serei eu a precisar”.... “ Já perdi muitos da minha família por falta de sangue”... E assim ia conhecendo o coração daquela gente e o seu inspirador amor à pátria.... Pediam-me para encher dois sacos, perguntavam quando podiam vir outra vez.... E os que recusávamos por idade avançada, davam meia volta com olhos húmidos por não poderem contribuir para salvar o seu pais.... “Doutor, eu sou forte , eu posso dar sangue!” imploravam-me ainda que se o seu aspecto exterior fosse de quem já não comia há uns dias... Gente humilde com um coração como eu nunca vi... E é lindo sentir isto....

No sangue a correr... eu via a história recente daquele povo e eles viam uma forma corajosa de lutar pelo seu país, pela liberdade e democracia... Para mim a inspiração era a cada segundo, a cada gota de sangue...

E assim enchemos o frigorifico de sangue, verificado para as principais doenças contagiosas, e com o grupo sanguíneo ABO e Rhesus confirmado e reconfirmado... Era uma questão de pouco tempo até reabrirmos o hospital e uma questão de muito pouco tempo até precisarmos de muito sangue... Eu para além de aprender muito sobre a vida, aprendo também sobre muitas áreas da medicina que normalmente me estão demasiado distantes... É agradável a sensação de que se eu precisasse saberia o que é preciso para fazer um banco de sangue...

Já estava bem noite, e bem frio quando acabei o meu dia de trabalho e saí do hospital para respirar profundamente sobre os meus pensamentos... Ao cruzar-me com os guardas do hospital, fico sempre maravilhado pelos seus sorrisos... No entanto, apetecia-me estar sozinho, como tantas outras vezes e dei uns passos em direcção à vista (ainda que nocturna) para as montanhas... E começo a imaginar o tudo e tanto que se passa em redor destas  montanhas ensanguentadas, quando começo a ouvir... primeiro muito ao longe depois bastante mais perto... Não tenho dúvidas, mas como a minha mente já me pregou algumas partidas... dou uns passos a trás no sentido dos guardas do hospital... que claramente lêem nos meus passos, nos meus traços a surpresa de quem está a ouvir aquilo pela primeira vez.... “Sim Doutor, é a música da Síria!!” dizem-me a rir-se.... Bastou-me chegar ao 2º dia para ouvir de bem perto os bombardeamentos... “Pum, pum, pum ... pum, pum, pum !!!” Bem ritmado, bem intenso, bem forte cada estrondo das bombas cair, sei lá onde... Esta era a minha 4a guerra, mas tal nunca tinha ouvido, e bem que me impressionou... Embora o humor resiliente destes amistosos guardas me tenha ajudado de sobremaneira a aliviar o aperto que tinha no coração... “Doutor, o Bashar Al-Asad disse que no final desta guerra só ficarão 6 milhões de Sírios!” num inglês muito básico me faziam referencia à vontade do regime de exterminar os 70% Sírios sunitas.... “Mas nós Doutor, estamos preparados!! .... Por cada um de nós que ela mata, nós fazemos 2 filhos!!” concluíram rindo-se às gargalhadas...

O primeiro dia de muitos, a sentir-me potencial vítima dos bombardeamentos, abriu-me o pensamento para áreas nunca antes viajadas...

Sou um alvo!

E embora goste muito pouco de clichés, esta missão mudou por completo a minha vida....



Síria 4.0 - Céu Limpo



Nunca compreenderei, nem nunca vou deixar de admirar a resiliência de alguns povos. Se acreditar e lutar pela democracia parece algo tão linear, quando nos apontam uma arma a cabeça nunca saberemos até onde tremem as nossas convicções...

Tendo em conta que a minha passagem pelo norte da Síria, coincidiu com o Inverno, vejo no frio dos maiores desafios ao carácter e à resiliência...  Já passei por vários locais com temperaturas muito baixas (Afeganistão p.e. em baixo dos -20ºC muitas vezes), mas nunca tive tanto frio como na Síria. Apesar de dormir numa casa de tijolo, e com alguns aquecedores a lenha... Passei dias e noites a morrer de frio... Estava sempre com frio, sempre! Durante o dia, usava dois pares de calças e trabalhava permanentemente de casaco de penas, e ainda assim quando estava sentado passava o tempo a esfregar as pernas para me aquecer, o que parecia nunca acontecer... De noite dormia com dois fatos de treino, vários pares de meias, dentro de um saco de cama de alta qualidade (tipo subida do Evarest), e ainda com 3 cobertores grossos por cima. De gorro a tapar as orelhas, pouco ficava da minha cara para respirar... De manhã, a temperatura dentro e fora da casa era quase igual, e assim divertia-me com o meu bafo de vapor de água ao acordar, ou então ao abrir o frigorifico a ironia de estar mais quente lá dentro, do que na cozinha.... O chuveiro era quente, e era dos poucos momentos em que me sentia confortável com o meu corpo.... E assim os dias iam passando....  cheio de frio! Mas claro, eu não me podia queixar, tinha condições de vida muita acima da média dos que me rodeavam... E ao fechar os olhos de noite as imagens que dominavam os meus pensamentos eram dos milhares ou milhões, entre refugiados e deslocados, que estavam a passar por este inverno rigorosíssimo, em tendas de plástico congeladas, e sem as condições mínimas de vida... Crianças, mulheres, velhinhos, doentes.... a morrer de frio, sem um pingo de conforto, sem laivos de humanidade... E se da guerra, são as mortes de sangue, que mais nos assustam... estarão certamente muito mais mortes na cruel contagem das consequências indirectas da guerra, como os milhares que morreram de frio, quer na Síria, ou nos países que mais albergam refugiados Sírios, ou até mesmo já na Europa. Milhares morreram de frio ao fugirem das bombas... é triste.


Um dia de manhã, contrastando com os dias quase sempre cinzentos, de frio e neve, estava um céu limpo e um sol radiante... Aquilo a que todos nós chamaríamos de um dia bonito. E assim dentro do carro, que me levava de casa para o hospital, comento com o chafeur: “Que dia tão bonito de sol, finalmente!” A expressão do chafeur quase me disse tudo, mas ainda acrescentou: “Não Doutor, isto não é um dia bonito. O céu está limpo, eles vão voar!” Congelei, sem resposta, engoli em seco a minha gaffe... Fiz o resto do caminho, hipnotizado a olhar para o céu limpo, e este novo sinónimo de dia de sol nesta parte do mundo...


Depois de chegar ao hospital, não tardou muito a sermos sobrevoados... E rapidamente soam os alertas de todos para todos: “ MIG, MIG, MIG!!!” “Avião, Avião, Avião!!” O alerta é claro, e os passos a seguir também são bem conhecidos por todos... Vai tudo para o Bunker! Não há lugar a perguntas ou hesitações. Vai tudo para o Bunker. E assim todo o staff, assim como todos os doentes com condições para se deslocarem, tudo se mete entre as paredes, escuras, frias e grossas do bunker... Algumas grávidas em trabalho de parto, em grandes dificuldades, outras acabadas de ter o bebé ainda muito fracas, com a ajuda das enfermeiras lá iam para o bunker.... assim como muitos outros doentes, cujas doenças ou traumatismos não os impedissem de dar uns passos e ficar de pé... Os outros ficavam no hospital mais vulneráveis... embora na realidade o bunker servisse apenas para diminuir as probabilidades, pois se uma bomba nos caísse em cima já não tinha histórias para contar...

Estes momentos no Bunker do hospital, são estranhos... são frios e húmidos e muitos escuros... reconfortamo-nos uns aos outros, com risos e piadas nervosas, na esperança de não sermos nós os escolhidos para ser o alvo.... Os céus são vastos, e os potenciais alvos daquele dia imensos, mas sabe-se lá o que vai na cabeça daquele piloto, pronto a deixar cair morte, tragédia, sofrimento e destruição... Tenho muita dificuldade em compreender, os líderes raivosos embriagados pela sede poder, responsáveis por tantas mortes, mas também aquele que prime o gatilho... Como pode dormir este homem à noite? Como pode viver com a sua consciência? Chegando a casa, sabendo que largou bombas com mais ou menos critério e matou dezenas ou centenas de inocentes, de mulheres e crianças, e tudo um pouco....ou bastante! Quem são estas pessoas que não se questionam? Só podem estar com o cérebro lavado e paralisado por maldade e ódio...


Uma ou outra vez a sermos sobrevoados, ficamos no bloco operatório, e assumíamos o risco de ficar mais vulneráveis para não deixar morrer o paciente... Parece-me óbvia e inquestionável a opção, mas no entanto algo estranho, apenas nós os envolvidos na cirurgia e os doentes mais graves ficávamos para trás... Probabilidades, é tudo uma questão de probabilidades...

Se os MIG assustavam bastante, pelo menos na minha pele os helicópteros muito mais... E a cada passo que um destes dois se aproximava do hospital, lá íamos todos para o bunker... Talvez por voar mais perto e mais lento, ou por fazer mais barulho, ou até talvez pelas imagens tenebrosas que tinha na cabeça dos helicópteros a deixarem cair “barel bombs”, muitas vezes em mercados, escolas ou hospitais e feitas para destruir no maior raio possível.... Os helicópteros causavam-me particular desconforto... E nestes momentos restava-nos esperar que aquele dia não fosse o nosso dia.... e que aquele que nos sobrevoa, não decidisse premir o gatilho por cima das nossas cabeças....

Dias e dias no entra e sai do bunker, sem saber o que nos esperava... Algumas das vezes acabávamos por ouvir o mega estrondo ao longe, e mais tarde a chegada de dezenas de feridos... Nunca fomos um alvo do regime Sírio de Bashar Al Asad, enquanto eu lá estive, no entanto dados dos MSF atestam que apenas em 2016, pelos menos 70 estruturas de saúde foram alvo do regime Sírio e das forças Russas que o apoiam, fazendo do ataque a hospitais uma declarada forma de guerra... Veremos algum dia, os responsáveis por estes actos hediondos sentados no Tribunal Internacional, a ser julgados por crimes de guerra?

Talvez preferisse o frio e a neve aos dias de...

Céu Limpo!

Síria 5.0 - Estado Islâmico


Como eu o vi. Como eu o senti. Como o povo Sírio me O fez ver. Não pretendendo substituir os grandes conhecedores e especialistas destas temáticas, mas há algo que me leva a ter legitimidade de dizer algo construtivo... EU ESTIVE LÁ! E essa vivência pessoal é insubstituível, incomparável... e pretendo que seja sempre construtiva no meu crescimento pessoal, e também sinto que tenho a responsabilidade de a partilhar.

Há aqui 2 ou 3 questões, que tem que ser passadas ao de leve para que se compreenda como nascem estes movimentos radicais e fundamentalistas. Em 2003 os USA e seus aliados inclusive Portugal (onde foi iniciada a guerra, Base das Lages) decidem invadir o Iraque sob falsos pressupostos de existência de armas químicas... Deposto e morto Sadam Hussein com toda a classe política e executiva do país na sua maioria Sunita. Todos estes sunitas que não foram mortos, foram presos, humilhados e torturados e consequentemente radicalizados contra a nova dominância Xiita e todo o poderio internacional que os subjugou. Ora estes não demoraram muito a se organizar naquilo que se veio a chamar a Alqaeda do Norte do Iraque, região esta de clara maioria Sunita, cujo objectivo principal é de um dia recuperar o poder do país entregue aos Xiitas. Compreender estas duas grandes sub-divisões do Islão, não está na auto-proclamação de cada indivíduo mas sim na forma como quem gosta de brincar às marionetes rótula, aumenta ódios para uma eventual solidez e estabilidade governamental, seja a nível regional, nacional ou internacional. 


ISIS, ISIL, Daesh, Estado Islâmico...são tudo sinónimos para confundir os mais desatentos. Curiosamente a mim foi me apresentado como Dawla (sinónimo de Daesh em Árabe que significa Estado). Ainda nada se sabia, e nada se falava sobre este grupo extremista radical islâmico, que entretanto se demarca da Alqaeda por ter uma agenda diferente e talvez ainda mais radical e maléfica, quando eu entrei no norte da Síria, na região de Idlib. Poucos meses antes da minha/nossa chegada para reabrir este hospital improvisado, o projecto tinha sido evacuado pela crescente pressão dos ditos grupos islâmicos radicais. O facto destes a pouco e pouco dominarem pelo opressão, medo e terror cada vez mais a população local, fez com que regras comportamentais fossem impostas a todos os Sírios e obviamente trabalhadores humanitários da região. Proibição do álcool já há muito se fazia sentir, mas agora também um restrição de comportamentos, vestes (mangas compridas, véus,  burqas, etc) e até mesmo proibição de fumar. Ora um nunca vi um povo que fumasse tanto como o povo Sírio, mas confesso que é preciso que se perceba a involvência para que não se façam juízos de valor instantâneos... Estão bombas a cair todos os dias, em que medida é que os riscos para a saúde do cigarro a longuíssimo prazo, refreiam aquele pequeno prazer da vida, de quem não sabe se passará mais uma noite neste mundo... As mesquitas foram tomadas por Mullahs e Imas radicais que impunham a palavra de deus de uma forma cada vez mais castradora e punitória... E assim um povo que sendo quase todo ele muçulmano, mas com condutas de vida bastante moderadas, se ia transformado e virando para dentro, com caras tapadas, amedrontadas e subjugadas pelo medo que a palavra de deus lhes impunha. E as consequências à desobediência desta nova “lei divina” era terrestre: prisão, tortura e morte.

E foi assim que entramos na Síria, eu e a restante equipa dos Médicos Sem Fronteiras que iria reabrir o hospital, entre uma crescente pressão sufocante de grupos extremistas e a agressividade bélica sempre em crescendo do regime Sírio. Muitas vezes não sei quem é quem, nem tenho que saber... pois eu estou lá é para salvar vidas, e não para análises políticas ou julgar quem quer que seja e por isso esta minha “apresentação” ao Estado Islâmico veio essencialmente de uma forma indirecta, através dos relatos do povo, dos doentes e dos trabalhadores Sírios dos MSF. Para mim era tudo novo, pois no ocidente só se começou a badalar o nome Estado Islâmico após o degolar em directo no youtube do jornalista americano. E ainda bem que desconhecia a sua fama, pois assim não fui dominado pelo medo e pude fazer o meu trabalho com a tranquilidade possível de quem está no meio de uma guerra e com bombas a cair todos os dias.  

O que mais me chamou à atenção foi o terror na cara das pessoas quando se falava no “Dawla” . Dawla, Dawla, Dawla.... As pessoas tremiam de medo, ao ponto que eu pensava que se tratava de uma pessoa em concreto... Sentir, o medo que o povo Sírio sentia é dilacerante, pois para além do medo das bombas, viviam com medo de todo o seu dia-a-dia condicionado com tudo que é proibições...

Determinado dia, um dos motoristas num inglês simples pergunta-me: “Doctor, where from?”... Eu respondo “Portugal”.... E ele continua: “Doctor, Portugal, Whiskey good?” E eu respondo: “Portugal, Whiskey good!”.... E ele continua: “ Dawla, no Whiskey” fazendo caras de reprovação e sinais de vómito como desprezo... Gesticula ainda que tem a barba feita, em sinal de reprovação total às imposições radicais deste grupo de fanáticos... Muitos gestos, poucas palavras, que me chegavam para ler um povo que admiro e me apaixona pela resiliência com que lutam pelos seus ideais... 
Há uma psique colectivamente afectada por traumas psicológicos que vão para além da perda de tantos entes queridos, e de uma pátria amada a sangrar diariamente...

Não sei, nem consigo imaginar o que é viver a todo o momento, o MEDO! Medo das bombas de Bashar Al Asad, medo do sufoco dos grupos extremistas, medo de fugir como refugiado para o desconhecido, medo de tudo e de nada... corrói todo e qualquer descernimento, e desfaz talvez para todo o sempre a estrutura do nosso ser, transformando as nossas gavetas de pensamentos em salas de terror sem fim...

Uma das áreas que me tenho diferenciado é o Ecocardiograma (Ecografia ao Coração), e como tal várias vezes fazia uso do ecógrafo que tínhamos na minha práctica clínica. Certo dia uma das enfermeiras vem ter comigo a dizer que tem problemas no coração. Há aqui várias questões a compreender para que possam ter os olhos e o coração nesta história: Esta enfermeira não fala inglês (e eu não falo Árabe), e fazia parte de muitas (não todas) que se cobria totalmente de preto, deixando apenas à vista uma pequena frincha nos olhos. Ao perceber que eu quase como que por magia conseguia ver o coração através do ecógrafo, pede para ser consultada por mim.... claro está através de uma tradutora, importante que fosse também mulher dada ser um assunto íntimo e sensível... Esta enfermeira tem 20 e poucos anos, e para mim é “uma das que anda de preto”, pois eu não as distingo! É triste, mas é verdade.... Já há muito que me sinto algo formatado para salvar vidas, e questões minor geram em mim pouca atenção... Mais uma vez, é triste, mas é verdade... Através então da tradutora, explica-me os seus sintomas, que são altamente inespecíficos e com uma associação clara a um stress traumático de um dia-a-dia de terror... É nestas fases que preciso de ter uma mente muito plástica para ter uma medicina adaptativa ou se quisermos ser mais honestos inventiva, que não é nada o meu género pois sou um homem da ciência e ultra pragmático.

Aceitei consultá-la e examiná-la e com uma boa dose da conversa “lost in translation”, percebi que para ela era muito importante que eu lhe visse o coração... pois no seu sub-consciente era dali que vinha o problema... Há uma parte de mim, que sabe bem que estou a fazer aquilo para nada, mas dadas as circunstâncias tenho que adaptar a minha “ciência”... Explico-lhe que tem que levantar a roupa e tirar o soutien: DRAMA! Vejo-a chorar e em lamentações com a tradutora que me parece bastante sensata... Até onde chegam os meus conhecimentos e as limitações do ecógrafo (que era básico) o coração da rapariga era perfeitamente normal, tal como era de esperar... Expliquei-lhe isso, em detalhe.... E como os médicos à moda antiga gostam de dizer: “esse coração vai durar para sempre!!”... 

Que fiz uma boa acção e um acto de piedade pareceu-me claro, não sei se lhe dei anos de vida, pois a vida na Síria é uma roleta russa, mas dei-lhe sem dúvida alguma paz de espírito... Mas o que este episódio gravou na minha memória, não na altura onde as minhas preocupações eram de ser médico e salvar vidas, mas mais tarde, foi a infinidade de corações dilacerados que estes conflitos deixam para trás, que nem a ciência consegue ver...    

Síria 6.0 - É Aqui Que Eu Quero Estar!


Por vezes antes de começar a escrever uma história peço inspiração divina para ter a capacidade de melhor retratar os seus principais actores e sentimentos. E a melhor forma de perceber o quanto é que eu gostava de ter essa inspiração, vem do facto de ser a pessoa mais ateia que eu conheço... Gostava muito de ter mais ART para ser fiel à realidade que vivenciei, mas acima de tudo de ter mais HEART, par ser um espelho honesto dos sentimentos tão intensos dos que não têm voz, quando são os que mais deveriam ter...
Ouvimos todos os dias pessoas a falar que não têm grande motivo para ter voz, enquanto há milhões de silenciosos que deveriam ser ouvidos... E por esses falo, e por esses escrevo, por esses peço inspiração!

Nunca haverá um retrato fiel da guerra da Síria, são infinitas histórias vistas de diferentes ângulos, com um exponencial de interpretações maior que o universo... ainda para mais quando quase sempre a razão dá lugar às emoções, a verdade passar a ser um conceito abstracto, intocável, inatingível... Eu vi e vivi um pedaço tão pequenino, quer de tempo quer de espaço, e no entanto as emoções são tão fortes que não tenho dúvidas que, naquele momento,  ali está o centro do mundo... o que sem dúvida me ajuda a reforçar as minhas motivações e a convicção que de todos os lugares do mundo É Ali Que Eu Quero Estar!... no meio da guerra! E porquê? Talvez esta história me ajude a transparecer esse sentimento...

Há bombas a cair todos os dias, e como tal mortos e feridos com todas as histórias possíveis... Eu para além de ser o Anestesista, durante um bom período de tempo era também o médico responsável pelo Serviço de Urgência... E num belo dia chega uma criança à urgência vítima de mais um bombardeamento... Se eu percebi bem a história, a bomba caiu na casa ao lado e este menino de 3 anos caiu com o estremecer da sua casa e bateu com a cabeça no chão... O que nós chamamos na medicina um TCE (Traumatismo Crânio-Encefálico), que pode ir de uma simples “turra”, até a uma elevadíssima causa de mortalidade... O Ahmed chegou-me às mãos já 24 horas depois do sucedido. A família no dia anterior já o tinha levado a um hospital, onde lhe tinham feito exames, e dado alta... Os pais preocuparam-se pois o Ahmed estava a piorar... mais adormecido, com o discurso mais lentificado, com muita dificuldade em se alimentar... e bastante pior do que estava no momento do acidente.... Apesar de não ter nem um arranhão no corpo. Isto para um leigo é difícil de compreender, mas do ponto de vista científico é quase sempre verdade... o processo inflamatório ganha uma vida própria após qualquer que seja a agressão ao nosso corpo, que faz com que inevitavelmente pioremos, antes de melhorar (se for caso disso)....

Por incrível que pareça, o Ahmed no dito hospital no dia anterior fez uma TAC Cerebral, coisa que no nosso hospital não tínhamos... Eu pego no CD do TAC que os pais traziam (sem relatório) e analiso com todo o cuidado. Diga-se que tenho uma experiência razoável com TCE graves e com a interpretação de TAC cerebrais, mas apenas em adultos! E tenho a consciência que transportar esta experiência/conhecimento do adulto para a criança pode ser perigosíssimo na medicina. O TAC é de ontem, o que faz com que hoje possa estar muito diferente o cérebro deste pequenino, ainda assim dá-me bastante informação. Não tem nenhuma hemorragia cerebral, e tem apenas edema difuso, ou seja inflamação, ou seja “está inchado”... No entanto mesmo sem hemorragia, “apenas” o edema pode matar uma criança ou adulto pelo aumento da pressão intra-craniana e consequente não irrigação sanguínea de estruturas nobres no nosso cérebro... 

Eu estou avaliar o Ahmed e a processar toda esta informação, sei que o edema cerebral está ainda numa fase de crescendo e estou francamente preocupado... Neste tipo de situações em que as nossas competências e capacidades estavam ultrapassadas, tínhamos a hipótese de transferir os doentes para a Turquia... Isto na teoria, porque na práctica nem sempre era fácil por uma série de questões... Na minha honestidade intelectual, eu sei que tenho que transferir este miúdo... ainda que talvez o conseguisse tratar. Mas como posso eu lidar com este “talvez”? Converso com o pai, dentro daquilo que é uma conversa super difícil, mais ainda quando há um tradutor pelo meio, cuja qualidade da tradução eu desconheço! Já seria difícil quando se fala a mesma língua, quanto mais traduzido para Árabe?! O pai do Ahmed diz-me que não tem documentos... quando foi chamado para o exército para matar o seu próprio povo a mando do Bashar Al Asad, fugiu/desertou e ficou sem passaporte... e isto faz com que pelo menos no imediato ele não podia passar a fronteira e o Ahmed teria que ir sozinho... A mãe está a amamentar outra criança e a cuidar dos outros filhos... A Turquia nestas situações que era absolutamente excepcionais aceita doentes em casos de vida ou de morte, mas não aceita famílias inteiras para este efeito... O pai do Ahmed faz-me aquelas perguntas que dilaceram o meu coração... eu preferia caminhar sobre brasas a arder a ter que responder a estas perguntas: “O Doutor não consegue salvá-lo?”, “O que lhe acontece se ele ficar aqui?” “Quem é que vai cuidar de um miúdo de 3 anos na Turquia sozinho, onde já estão quase 2 milhões de refugiados Sírios?” Nestes momentos apetece-me chorar e fugir, mas engulo todos esses sentimentos instintivos e faço-me homenzinho! Respondo a todas as perguntas com toda a transparência possível, ainda que eu próprio não saiba qual a melhor decisão. Arriscar tratar o miúdo ou mandá-lo sozinho para a Turquia?! 

Eu tenho que tomar esta decisão, não para salvar a minha consciência, mas sim para a vida desta criança! É um tempestade de dores e angústias, entre a ciência e a ética, tentando pesar a evolução sempre imprevisível do edema cerebral e o que será da vida de uma criança refugiada sozinha talvez para sempre separada da sua família... Parecia-me também cobarde se passa-se essa decisão para as mãos daquele pai, que não tem os conhecimentos que eu tenho e que ficaria assombrado para a vida toda pela sua decisão... 

Eu decido tratar a criança! E assumo a responsabilidade.

O pai agradece-me, o que me rebenta o coração, pois sei lá porquê é que ele me está a agradecer... Explico-lhe que o Ahmed ainda vai piorar, vai ficar mais adormecido, e tudo o que eu posso fazer por ele e hidratá-lo e alimentá-lo quando ele deixar de o poder fazer até que o seu cérebro comece a “desinchar”.... E que isto são dias, e eu não sei quantos são!! E também não sei se ele vai recuperar ao não, e se sim com que sequelas neurológicas... 

O Ahmed vai para o internamento, enrolado em cobertores, porque este hospital improvisado é gelado, e assim fica rodeado de um entra e sai de familiares e de rezas a Allah, sendo que a figura que está lá sempre ao lado é o pai.... Pois a mãe por imposição está mais dedicada às outras crianças... 

A minha vida continua, pois trabalho não me falta e entre o bloco operatório e o serviço de urgência perco a conta aos doentes que me vão passando pelas mãos.... Cesarianas, e mais cesarianas, feridos de guerra, pneumonias, etc, etc....

Volta e meia, vou passando a ver o Ahmed, que entretanto é claro que já não se alimenta e por isso tem catéteres, soros e sonda naso-gástrica. As poucas palavras que dizia já não diz, e já a muito custo abre os olhos quando estimulado... O meu dia continua, e cada vez que passo na porta daquele internamento ouço o pai a estimular o filho: “Ahmed, Ahmed!” De uma forma incansável... Nessa noite tenho que voltar ao hospital, e muito mais audível no silêncio da noite ouço a ecoar por todo o hospital: “Ahmed, Ahmed”... o que me vai assombrando e repisando a minha decisão...

No dia seguinte é claro, a sonolência de Ahmed evolui para um estado de coma. Ele não reage, não abre os olhos e só a estímulos dolorosos mexe os membros de uma forma errática... Na minha cabeça de médico, ouço a minha voz a dizer-me: “tu sabias que era esta a evolução natural deste traumatismo craniano!”... Na minha cabeça de Ser Humano só ouço: “o que é que tu fizeste?” E as dúvidas em mim multiplicam-se, e só vão sendo resfriadas pela enormíssima quantidade de trabalho que vou tendo... 

Quando me aproximo do pai e do Ahmed, o pai olha-me com um olhar de quem tem ainda mais perguntas do que eu, mas não me culpa, não me julga enquanto me mostra a flacidez dos membros de Ahmed e a não resposta às suas chamadas incontáveis...

Eu não tenho TAC, não tenho análises, não tenho nada para acrescentar ao meu raciocínio clínico que cada vez mais se mistura com as emoções e punições de quem já não sabe, se sabe ou não sabe o que está a fazer... Teria sido tão mais fácil mandá-lo para a Turquia...

Passam-se muitas horas, passa-se mais uma noite, e eu revejo na minha ciência possível que a alimentação e hidratação são as adequadas, que a posição da cabeça e do tronco é a indicada para diminuir a pressão intra-craniana... mas o tempo não passa! E se eu estou destroçado pela sensação que tomei uma má decisão, como estará aquele pai? Ele não sai de ao pé dele nem 1 minuto, e insiste à espera de um milagre: “Ahmed, Ahmed”... Mais uma noite que ecoa na minha cabeça este pai a chamar pelo filho... E mais uma noite que Ahmed passa totalmente inconsciente...

Há uma fase de ciência, e depois há uma fase de F#%&%# eu já não sei! É um desespero, é uma angústia, também eu estou a morrer aos pouquinhos... Eu não tenho culpa da guerra, nem dos bombardeamentos mas tomei uma decisão reflectida que tirou a vida a uma criança! E é nestas alturas que eu quero vir embora, não é pelo medo das bombas ou do Estado Islâmico, é por ter falhado.... E nesta profissão os erros pagam-se muito caros, e viver com eles é insuportável!

No dia seguinte, eu já não sei se é real ou do meu imaginário, eu só ouço: “Ahmed, Ahmed!”.... e aproximo-me do quarto do menino, pois nunca fujo às minhas responsabilidades... Examino-o como sempre, e ele volta a esboçar alguns movimentos dos membros... e o meu coração dispara: “há esperança!” O pai lê todos os meus movimentos e expressões faciais e eu não consigo deixar fugir um sorriso, ainda que o meu discurso não lhe dê esperanças, ele sente que eu senti que algo mudou...

E o pai intensifica: “Ahmed, Ahmed”... há 3 dias que ele está inconsciente... E eu sigo o meu trabalho, com uma dose de realismo que me domina sobre o prognóstico da criança. A meio da tarde, os enfermeiros a pedido do pai vieram-me chamar, foi a primeira vez que me chamou... Os olhos do pai brilham a olhar para os meus..... “Ahmed, Ahmed!” E o menino abre os olhos, e dirige o olhar para o pai, o que representa um sinal extremamente positivo de que muitas das funções nobres do seu cérebro estão preservadas... Ainda não é altura de mandar foguetes, mas eu não consigo evitar chorar de uma forma descontrolada ao sentir um vendaval de emoções a entrar e sair do meu corpo...

No dia a seguir o Ahmed voltou a falar e depois a comer, e quando eu o vejo a caminhar pelos corredores do hospital de mão dada ao pai como se fosse uma criança qualquer eu explodi de felicidade!!! O que é que é ganhar o Euromilhões comparado com salvar a vida a uma criança e mantê-la ao lado da sua família? 

E por isso mais do que nunca: É aqui que eu quero estar!

Esta história feliz não apaga os mais de 500.000 que já morreram na guerra da Síria, apenas realça a  importância da vida de cada um deles!