Várias vezes éramos sobrevoados. E dificilmente imagino
situação mais assustadora. Num segundo o pânico domina-nos por completo. O som
dos aviões a rasgar os céus transforma o nosso estado de espirito num click...
Os primeiros a ouvir estas máquinas de guerra saíam a gritar por todo o
hospital: “ MIG, MIG, MIG!!” lançando o alerta para recolher ao bunker... mas
bem pior é quando são helicópteros... é muito mais intenso e assustador... o
som é ensurdecedor, a percepção de proximidade das nossas cabeças é muito
maior, e o tempo que demora parece infinito... São segundos que parecem horas
de medo e inquietação. “Será que é em cima de nós que este piloto vai largar o
seu terror?”... é o pensamento que me domina. Penso muitas vezes sobre o que se
passará na cabeça destes pilotos, que ao carregar no botão deixam rios de
sangue e sofrimento... Como será a sensação de ver e ouvir o seu próprio povo a
ser esmagado e esquartejado, em directo ao vivo e a cores, consequência directa
e imediata das suas acções... Apontamos sempre o dedo aos decisores
superiores... Mas será mais culpado o que dá a ordem ou o que prime o gatilho?
Num dia em que estávamos algures nos corredores gélidos do
hospital somos invadidos pelo som das hélices de um helicóptero!.... É
agoniante... O nosso cérebro congela de medo e agimos por automatismos...
Recolhemos todos ao bunker largando tudo o que estamos a fazer (desde que não
seja de vida ou de morte, vezes houve que fiquei no bloco operatório numa
decisão consciente de não deixar o doente morrer) e ajudamos todos os doentes
que conseguem deambular a entrar na porta estreitinha do bunker... inclusive
mulheres em trabalho de parto aos gritos de dores pelas contrações, vão
entrando a custo neste bunker, que é um corredor de paredes reforçadas gélido,
húmido e quase sem luz... E é neste buraco negro que imagino se será naquele
dia, que aquele homem dentro do cockpit do helicóptero decidirá deixar cair as
suas bombas em cima das nossas cabeças... Entenda-se que a ida para o bunker é
apenas uma questão probabilística... Diminui em alguma medida o risco... mas se
formos bombardeados directamente, de nada nos serve.
Ficamos dentro do bunker alguns minutos... desconhecemos por
completo quais as intenções deste pássaro maldoso... e vamos ouvindo e afastar
e aproximar do barulho, até que começamos a ouvir as bombas a cair! Caiem mais
perto do que qualquer um gostaria, mas longe o suficiente para saber que não
eram para nós... O estrondo é brutal, e sentimos a vibração do chão a tremer...
Pela intensidade do som conseguimos mais ou menos aferir a que distância de nós
foram largadas estas bombas... e quanto tempo demorarão a chegar os feridos
destes ataques impiedosos... E assim foi... à medida que deixamos de ouvir o
helicóptero, vamos saindo do bunker e começamos a preparar-nos para receber um
grande número de feridos... e cerca de 20 minutos depois começam a chegar... as
bombas caíram a 5 kms de nós numa vila onde a maioria do nosso staff vivia...
Nunca se está preparado para isto, embora já tenha vivido
algumas situações desta intensidade, é sempre difícil... é uma situação de
catástrofe pura e dura! O hospital começa a ser invadido por feridos
ensanguentados e cheios de pó das casas destruídas... Os gritos tornam-se a
bando sonora deste filme de terror... O staff Sírio do hospital, ainda que
tenha visto mais vezes este tipo de situações do que eu, está em pânico... É o
seu povo, a sua gente, alguns até seus conhecidos.... e absorvem cada palavra
do seu sofrimento. Eu sou “protegido” por não compreender Árabe e talvez também
por algumas características que me são inatas, em termos da frieza com que consigo
gerir as minhas emoções no imediato... Eu sinto-me uma máquina desprovida de
emoções... Neste tipo de situações temos de tomar decisões difíceis... e o pior
são os casos que pela gravidade e complexidade das lesões não vamos sequer
tentar tratar... ou seja vamos literalmente deixar morrer pessoas que ainda
estão vivas, mas que consideramos ser demasiado tarde... O lema é salvar o
maior número de vidas, e como só temos uma equipa cirúrgica, apostar tudo num
doente demasiado grave pode significar perder 3 cuja vida conseguiríamos salvar...
Explicar este raciocínio a quem não tem o mesmo treino clínico é muito difícil,
e totalmente impossível de o explicar aos familiares dos doentes que gritam
desesperados... Não há palavras para descrever a intensidade emotiva destes
momentos, mais ainda quando há homens com armas dentro do hospital a tentar
pressionar as nossas decisões... Mas eu sinto-me uma máquina, frio como uma
pedra.... muito calmo... e a tentar passar essa calma que é vital para estas
situações de stress... Nunca corro, não falo alto... sou assertivo mas sem
gritar... e sempre que posso olho todos o staff médico nos olhos e digo: “tenham
calma”....
A arte do diagnóstico aqui passa para segundo plano, a
primeira prioridade é estabelecer o nível de gravidade de cada doente... fazer
a triagem... Eu não tomo nenhuma decisão sem ver todos os doentes que vão
chegando... E friamente quero ter um overview da situação antes de ir para a
acção propriamente dita... Há uma certa tentação de ir para o bloco operatório
com o primeiro que terá indicação... mas temos que inibir esse instinto... Quando
tudo à minha volta parece estar a andar em fast forward, em tenho que
lentificar o meu pensamento e não deixar entrar as emoções... A primeira
decisão é muito triste, mas fácil em termos clínicos.... deixo morrer 2
doentes... não tenho dúvidas que o esforço seria infrutífero, mas claro num
cenário em que não tivesse mais nenhum iria tentar salvar um deles... mas não é
o caso. Ao comunicar a decisão ao staff Sírio que está à volta deles, sinto
alguns olhares acusatórios de quem quer dar tudo por todos.... é normal, mas eu
tenho que sobreviver também a esses olhares para poder gerir esta situação
tentando salvar o máximo de doentes possível... Não errei, os 2 morrem em
minutos...seria inevitável.... O “possível”
aqui é uma palavra chave... e que varia imenso com diversos factores: o meu
raciocínio clínico, o número de vítimas, os nossos recursos e as alternativas
possíveis (p.e. transferir para outros hospitais).
A segunda decisão é bem mais difícil.... o terceiro doente a
merecer a minha atenção está inconsciente por um Traumatismo Cranio-Encefálico
(TCE) Grave (Glasgow 6-7) , eu para fazer tudo o que tenho a fazer por ele
implica algum tempo e depois transferi-lo para a Turquia... Vou fazer um ponto
da situação dos outros doentes que precisarão de tratamento cirúrgico, e da sua
gravidade... Juntamente com o cirurgião que era fantástico a todos os níveis, concluímos
que eu devia tentar salvar este homem com o TCE... ou seja que 1 a 2 horas que
eu iria estar sem poder ir ao bloco não seriam cruciais para os 3 ou 4 doentes
que planeávamos levar ao bloco... E se não fizesse nada por este homem ele iria
por certo morrer...
Este é o momento em que eu arregaço as mangas e me atiro
para cima deste doente.... Tenho que me certificar que não há mais nenhuma
outra lesão grave para além do TCE, e não há. Para fazer o que tem que ser
feito este doente precisa de TAC, Neurocirurgia e Cuidados Intensivos... 3
coisas que nós não temos e por isso tenho que o transferir para a Turquia...
que é uma pequena aventura... O que eu posso fazer por ele, é tentar minimizar
os danos cerebrais, induzindo a anestesia geral e para isso tenho que o
ventilar artificialmente com um tubo na traqueia... Isto é o ABC para um
anestesista, e o dia a dia de um intensivista... e como tal esta é a parte
mecânica, que faço com naturalidade... O problema é que os 20 a 30 minutos até
à fronteira com a Turquia, são também cruciais... e como tal eu tenho que ir na
ambulância... pois esta responsabilidade de gerir anestésicos gerais,
relaxantes musculares e ventilação artificial, eu não a posso passar a
ninguém... A minha chefe autoriza, fazem-se os contactos com os serviços de
emergência turcos para um médico estar na fronteira para receber o doente e eu
preparo-me com o tradutor para esta curta, mas perigosa viagem...
Nestes preparativos, lembro-me da importância de pôr a
família do doente a par da situação... Até porque ninguém pode passar a
fronteira a não ser o doente... e a família pode ficar sem saber nada dele
durante muito tempo... Pergunto quem é, e descubro o pai no meio da multidão
que está fora do hospital... Faço o senhor entrar para conversar com um pouco
de privacidade... Este senhor já tem uma certa idade, um fácies sofrido e
também ele coberto em pó dos pés à cabeça... Percebo que estava na mesma casa
que o filho a quando dos bombardeamentos... mas teve a sorte de não ter sido
atingido pelas explosões... Toda esta conversa é feita com um tradutor, pois eu
não falo Árabe e o senhor não fala Inglês... o senhor está ao meu lado, mas não
olha para mim, pois para ele a conversa vem apenas do tradutor e eu fico como
que eu narrador ou observador... Tento explicar o que se está a passar, o
porquê de ir para a Turquia, que o filho tem um TCE grave ... e sou
transparente no que diz respeito à gravidade/prognóstico (ainda que de uma
forma precoce com os dados que tenho) .... digo que há uma grande probabilidade
de ele vir a morrer...
O senhor começa a chorar... sem gritos, sem mais nenhuma
palavra... naquele choro de quem quer mas não segura as lágrimas que lhe caem
pela cara... e eu choro ali à frente dele também... talvez porque me sinto um
observador da conversa e não dentro dela... Já dei más noticias centenas de
vezes na minha vida profissional e nunca tinha chorado... mas naquele momento
não aguentei! Naquelas lágrimas eu não vi só um pai que perdia um filho... vi
um povo que perdia a sua amada pátria.... a esvair-se em sangue....
(continua)
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