É sempre difícil transmitir uma ideia real, do que é este cenário tão intenso que nos faz sentir que estamos no centro do mundo, onde todas as vivências parecem eternas e todos os momentos têm um potencial descritivo infinito. Estamos a meia dúzia de Kms das linhas da frente, lado a lado com grupos bons e maus de homens bem armados, onde até uma ida ao WC parece ser uma história a contar.
A minha ideia é pôr-vos lá,
levar-vos comigo nesta viagem. Um gajo normal, igual a todos os outros, que por
um motivo ou outro se encontra no meio do inferno, mas também no meio de uma
população muito bonita... e é sobre eles que vos quero escrever.
E é nesta viagem pelas pessoas
que se conhece um país, ou pelo menos parte dele. Foi tudo mau? Não. Tive
momentos incríveis de pura felicidade. Partilhávamos a nossa casa com alguns
guardas (sem armas, claro), motoristas e tradutores para as idas urgentes ao
hospital, e ainda o cozinheiro.
Os Sírios têm muita melodia.
Adoram música, poemas, ditados e anedotas. E eu aguardava pelas alturas em que
os condimentos certos se juntavam, para a mistura ser explosiva. Sou como uma
esponja, pronta a absorver tudo o que me derem... Os guardas que eram os mais
engraçados, os tradutores para que eu percebesse o que se dizia, e o cozinheiro
que além da comida maravilhosa adorava preparar a Shisha, para que a conversa
fosse fumada e perfumada pelos diferentes sabores frutados. E assim ficávamos
horas na cozinha, porque era onde se podia fumar, a debater vários temas
fulcrais para quem está no meio de uma guerra: a comida árabe, música árabe com
videoclips de mulheres de muita pele à mostra, histórias de vida antes da
guerra, os sonhos e de cada um... e anedotas! Cada dia que passa, mais gosto de
ouvir árabe, principalmente pela forma de histórias contadas. E cada vez mais
me encantava o seu sentido poético e humorístico. De sorriso largo e maroto,
com jogos desta língua tão rica, cada história tinha 2 momentos altos... O 1º
decorrente da cadência normal da conversa, e o 2º quando alguém tinha a bondade
de me traduzir em que nos riamos todos outra vez!
A Shisha rola, a conversa flui e
o meu coração cada vez mais se enche de magia, de vivências de um país em
lágrimas de sangue com uma alma bonita e inspiradora. E esta empatia
progressiva de quem mergulha nas histórias das pessoas, leva-nos a uma
conclusão muito óbvia mas que entra com estrondo nas nossas cabeças: Eles são
iguais a mim! E o que difere a Síria do meu querido Portugal para merecer este
fado?
Um dos tradutores que eu adorava,
um dia contou-me uma história que eu por acaso até já tinha ouvido falar...
Semanas antes de eu ter chegado àquele hospital, num belo dia uma mulher
grávida insatisfeita com a opinião de uma enfermeira estrangeira, tira uma arma
das suas saias e aponta à dita enfermeira com ameaças de morte bem claras... E
o que este agora meu amigo sírio fez, foi prontamente pôr-se entre a arma e a
enfermeira... e disse-lhe: “ Se a vais matar, matas-me primeiro a mim....
porque no fundo é isso que estarás a fazer... matar-nos a todos nós, teus
compatriotas!”
Já alguém se meteu à frente de
uma arma por vocês? Conhecem alguém que o faria? Um quase-desconhecido que dava
a vida por vocês, conhecem?
Isto é muito forte! Arrepio-me
cada vez que penso nisto...
São este tipo de pessoas de que
vos falo, que encontram um sentido poético na vida, que lutam com tudo o que
têm mas sem armas, e fazem-no com um sorriso na cara...
Faltarão sempre as palavras, para
descrever este caracter, este código de honra... e um humor tão generoso, que
eu tive o privilégio de absorver aos poucos.
As passagens pelo Bunker são
aqueles momentos em que a capacidade de aceleração do nosso coração, não se
esquece. Mas haviam grandes diferenças do dia para a noite. De dia, no hospital
eram mais curtas, mas mais intensas... quase sempre motivadas pela passagem de
um avião ou helicóptero, em cima das nossas cabeças... o medo era asfixiante,
mas curto. Quando os bichos de metal voadores saiam do alcance dos nossos
ouvidos tudo voltava ao “normal”... De noite eram os bombardeamentos que vinham
do outro lado das linhas de conflito. Se eu bem percebi a ciência dos
bombardeamentos que eram quase diários... não havia muita ciência! De uma forma
que sempre me pareceu aleatória caiam mais perto ou mais longe de nós... em
salvas de muitos...ou alguns... ou às vezes mais... bem, eram salvas de BUM,
BUM, BUM... e quando as paredes estremeciam, começávamos a pensar em descer
para o bunker da casa... e claro aquele friozinho na barriga apertava, embora
aparentasse uma certa calma entre nós...
E ali foi, naquela cave/bunker
gelada ao som da pior música que se podia desejar, que tive alguns dos momentos
mais felizes da minha vida... Pode parecer estranho mas mais do que nunca
estava onde queria estar, e a criar laços com pessoas magníficas... e assim
foram algumas horas que pareceram vidas. E vidas bonitas! Eramos aí uns 20, sem
internet J
... naquele tipo de ambientes, tipo à volta da fogueira no meio do nada...
Embora aqui a fogueira fosse muito grande, e o nada era todo um país... Mas
assim era, conectados apenas pelas pessoas que ali estavam, que ali eram o que
eram, sem maquilhagem... A troca de olhares é mais verdadeira do que nunca, e mesmo
com aqueles que pouco falávamos era como se tudo soubéssemos uns dos outros. É
verdade no seu estado puro. E no meio dos bidões de água e malas de mantimentos
que estão pelo chão, caso ali ficássemos uns dias, lançam-se umas cartas para
que os pensamentos fujam do BUM, BUM, BUM... Mas as cartas não me agarraram
muito tempo, e meio que sem saber como juntei-me ao grupo da cozinha...
Mal entro neste círculo de
malandros descontraídos, os meus sorrisos atropelam-se uns em cima dos
outros... E mesmo quando ninguém se dava ao trabalho de me traduzir esta
alegria atraia-me e contagiava-me... E porque não dizer também que a conquista
do meu sorriso permanente parecia ser para eles um trofeu mais valioso que o
ouro... E isto é mágico! Não se explica! E as bombas continuam a cair ao seu
ritmo. Aleatório. E de história em história, a orientação da conversa parte
para a galhofa pura e dura. Há um dos guardas que não diz uma palavra de
inglês, mas que falava como ninguém a língua dos risos e sorrisos, que se
deixava embalar em jeito de aquecimento até ganhar o palco. Quando ele começava
a falar com o seu teatro facial eu desmachava-me logo a rir... tinha espasmos
abdominais de riso fortíssimos, ao ponto de achar que era mais perigoso rir
assim do que estar perto das bombas ;) . E aquela noite mais do que nunca, vi
que numa guerra também vemos o melhor dos melhores...
Foi uma anedota atrás da outra
com gargalhadas gerais sempre a dois tempos! Pois eu já em árabe estava a
chorar a rir, e mais ainda quando percebia a piada... Mas como nos rimos
dos/com os que se estão a rir por si só, quase que nem precisava de tradução...
E todos eles, à segunda, quando vinha a tradução, se matavam a rir pelo
contágio do que eu me ria, e pelo orgulho das suas piadas árabes que são também
um embaixador da sua bonita cultura e língua! E esse rock star das gargalhadas
deixava réplicas nos dias seguintes das suas estrondosas piadas... Nessa noite
“levantou o estádio” com uma anedota que para minha grande tristeza já não me
lembro, mas sei que envolvia “um burro”, e “ pimenta no rabo”... E lembro-me também
que pimenta em árabe se diz algo como “flifli”... E depois de me levar às
lágrimas sempre a duas velocidades com o “flifli”.... nos dias que seguiram
esta noite mágica sempre que passava por mim, ria-se e repetia “flifli”
apontando para o rabo de alguém! E daí vinham réplicas das gargalhadas
maravilhosas! E por isso (e muito mais) se criou uma amizade na base dos
sorrisos, e sem que saiba o nome dele e sem conseguir ter tido uma conversa...
adoro-o até hoje... e a muitos outros.
Naquela noite, embora me faltassem
horas de sono, havia uma parte de mim que não queria que as bombas deixassem de
cair... assim como há uma parte na guerra que faz sobressair o que de mais
bonito as pessoas têm.
Há uma parte de mim que ficou na
Síria... muitas lágrimas... mas também muitos sorrisos! J
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