Penso que o que mais me marcou no conflito Sírio ao
conhecê-lo “por dentro”, para além da intensidade e da dureza desta guerra, foi
o quanto me identifiquei com a sua gente. Nós achamos que estamos muito longe
de que tal nos aconteça, e assim espero... mas só assim será se olharmos “para
o lado” com uma preocupação genuína, para que por um lado possamos ajudar quem
precisa e não menos importante a aprendizagem contínua para não cairmos nos
mesmos erros que levam a uma desgraça humana literalmente imensurável...
E como se explica que um país de repente, rebente de norte a
sul, este a oeste... em tiros e explosões? Há sempre uma explicação política,
de análise nacional e internacional, dos últimos 10, 20 e 100 anos... e por aí
fora. E pese estas leituras serem obviamente cruciais, invariavelmente
levam-nos a fugir do que devia ser sempre o epicentro da discussão: as pessoas.
Porque as análises políticas são quase sempre desumanizadas.
Imaginem agora que de repente Portugal se racha ao meio numa
guerra civil. Nós que gostamos de bater no peito, quando vemos a seleção.
Imaginem ver o nosso país a sangrar. Imaginem verem a vossa querida cidade a
ser bombardeada, com edifícios a caírem em destroços. Imaginem os vossos
ente-queridos a serem esquartejados perante a vossa impotência. Imaginem serem
obrigados a pegar numa arma, para matar os vossos compatriotas, por vezes até
familiares. Imaginem as vossas crianças a morrer à fome. Imaginem mulheres a
morrer por falta de uma cesariana. Imaginem verem-se a viver numa tenda de
plástico num inverno de neve rigoroso, com pessoas ao vosso lado a morrer ao
frio. Imaginem terem que escolher matar ou morrer. Imaginem não saber se vão
viver o dia de amanhã!
Foi isto que eu imaginei todos os dias.
E senti esta proximidade emotiva porque as pessoas que
trabalhavam comigo me o fizeram sentir. Por terem vidas iguais às nossas, agora
adaptadas à mais triste realidade. Porque perder a nossa pátria será como todos
perdermos a nossa mãe ao mesmo tempo... E é muito intenso sentirmos tão perto o
que este povo está a sentir. Lutam pelo que amam. Uns com armas e outros apenas
com a alma.
Não sei em que circunstâncias o faria, ou se poderei dizer
com certeza: eu nunca pegaria numa arma. Mas de uma coisa tenho a certeza,
muitos dos que pegaram são iguais a mim.
Quando soube que aos domingos havia futebol na vila onde eu
vivia, não descansei até conseguir “representar” o nosso querido Portugal com
uns toques na bola. Perguntei a tudo e todos, como, onde e quando era esse
jogo, para que não corresse o risco de não jogar... Chegado o dia parecia uma
criança na manhã do Natal, tal era o excitamento para mandar uns chutos numa
bola. Pois é. A felicidade das pequenas coisas. Fui com uma companheiro de
trabalho sírio, e para que não houvesse vacilo cheguei para aí uma hora mais
cedo. Era numa escola, onde se podia ver buracos nas paredes de alguns edifícios
bem desenhados pelas bombas que as atravessaram. Aperta-nos o coração. E
aquelas paredes já não ouvem aulas desde o início da guerra. E assim a pior
doença do planeta se perpectua: a ignorância. Mas o dia era de bola. O campo é
de pedra/cimento, torto, irregular e pequeno... mas há balizas, e a bola é
redonda. E eu não tardo a começar a brincar com a dita. À medida que os outros
jogadores vão chegando, a coisa começa a ganhar forma. E eu como não percebo
nada de Árabe, não sei sobre o que se fala, e só quero é que o jogo comece...
Quase ninguém diz mais do que duas palavras em Inglês... e por isso eu
esforço-me para trocar sorrisos... E quando me perguntam “Where from?” , eu
solto um rugido e bato no peito com força: “ Poooorrttuuuuggaaallllllllll”.
E assim começa o jogo. É sempre complicado jogar sem falar a
língua, principalmente para quem tem um bocado de mau feitio como eu J . O campo é muito
curto para o número de jogadores, e por isso há muito contacto, muito luta,
muita intensidade em todos os momentos do jogo... Eu grito, protesto...
primeiro em inglês, mas como não me percebem e não, mudo para o português...
Para pedir bola, pedir faltas, e dar as minhas visões tácticas deste grande
jogo... Devo parecer maluco, mas não consigo ser de outra forma... Agarro, e agarram-me.
Uso muito o corpo, vou ao choque no ar e pelo chão... Irrito-me quando as
coisas não saem bem à minha equipa, e festejo os golos aos gritos e abraços
como se estivesse a jogar o campeonato do mundo... Não os conheço, mas naquele
momento é como se os conhecesse desde toda a vida... E isso é lindo!
Chega a vez de dar o meu lugar para outros jogarem... e de
pernas doridas e coração cheio sento-me todo transpirado encostado à parede a
ver a continuação deste jogo banal, que para mim significa o mundo. À medida
que o coração se vai desacelerando, vou observando e analisando todos os que
ali estão... E apercebo-me que há ainda gente a chegar quer para ver, quer para
jogar.... e muitos trazem uma Kalashnikov. Fico sempre desconfortável com a presença de
metralhadoras, embora já tenho estado no meio delas muitas vezes... Mas o que me
leva o pensamento é imaginar que estes rapazes que como eu sonham em jogar
futebol ao domingo trazem consigo uma Kalashnikov, que estiveram e estarão bem
perto de matar e morrer. E são gente normal. Não são militares no verdadeiro
sentido da palavra. São miúdos, alguns deles ainda sem barba na cara que por
circunstâncias da vida, lhes foi roubada a inocência. E ali estava eu a jogar
futebol com Free Syrian Army, sem saber... e a pensar na sorte que tenho de ter
um país em paz, e a pensar quem seria eu se tivesse nascido neste bonito local
na ponta do mediterrâneo nesta fase triste da sua história?
Pegar ou não pegar numa arma é uma questão que revoluciona o
meu interior. Ser ou não ser violento? Por norma, nunca. Mas todos sabemos que
infelizmente este nunca é recheado de utopia. E então num mundo real, em que
circunstâncias estaríamos dispostos a matar? Qualquer pessoa minimamente
inteligente terá sempre mais perguntas que respostas...
E porque falamos de pessoas, as que mais me inspiraram até
hoje foram aquelas com quem trabalhei lado a lado no hospital. Gente que
decidiu lutar sem armas. Amar o seu país até à última gota de sangue mas sem
nunca fazer mal a ninguém. Antes pelo contrário: salvando vidas, interrompendo
ou comprometendo as suas vidas para sempre. Todos aqueles que connosco
trabalhavam no Hospital dos Médicos Sem Fronteiras, por todos os motivos e mais
algum são para mim verdadeiros heróis. Alguns resgatados de uma universidade
interrompida pelas bombas, apressaram-se a fazer o papel de médicos e
enfermeiros, e com a prática tornaram-se muito competentes. O que eu vi é
arrebatador. Uma motivação diária que já se arrastava há uns anos, de quem dá
tudo a cada gesto, a cada suspiro, de quem luta para salvar o seu país... sem
nunca levantar uma arma, mas salvando vidas... E com isso aquecer os corações
dos milhões que estão ao mercê de uma máquina de terror e vulneráveis a todos
os tipos de doenças... Uma vontade de trabalhar que arrepia quem vê. Passamos
dias e dias a trabalhar e algumas noites. Sempre ávidos a aprender, sempre com
um sorriso na cara, sempre agradecidos, com uma garra inigualável se entregavam
a todos e a cada um dos doentes, celebrando cada vitória como sendo mais uma
chama na esperança de manter a sua queria e amada pátria viva e de boa saúde,
quando tudo parece apontar para o contrário. Mas eles não. Recusam-se a aceitar
que o sofrimento e dor, seja a única tinta que escreve a história do seu povo.
E dia-a-dia não se cansaram de me provar que no meio da merda, há pessoas
absolutamente mágicas e inspiradoras. Que lição de vida!
Alguns passavam as noites na nossa casa, de forma a estar em
stand-by para ir ao hospital no caso de aparecerem urgências, e faziam-no com o
orgulho de quem recebe uma medalha nos jogos olímpicos... e para mim a energia
que me transmitiam valia mais que todo o ouro neste mundo! Gente que luta sem
armas... que palavras existirão que possam caber em homens e mulheres tão
grandes.
O que mais me doeu na alma nos meses que passei no meio
destas pessoas extraordinárias, foi quando víamos televisão numa noite
qualquer. Como o frio era de morrer, e só tínhamos uns fogareiros rudimentares
em algumas divisões, à noite juntávamo-nos todos na sala para estarmos mais
quentes e de quando em vez com a televisão ligada, ora no Al-Arabia, Al-Jazeera
ou France24, ora em em Inglês ora em árabe consoante quem estivesse mais atento
entre os muitos Sírios e estrageiros que ali passavam a noite. E por essa
altura houve um encontro em Genebra a propósito da “paz na Síria”. E durante
uns dias, ministros, presidentes, daqui e dali discutiram a paz na Síria... E
com regozijo todos se congratularam pelo enorme sucesso deste encontro, em que
as soluções estavam encontradas para o fim deste terrível conflito. Mas de
olhos na televisão, algures no meio da Europa, à nossa volta as bombas
continuavam a cair... E eu via as caras dos políticos de celebração, e muito
timidamente passavam os olhos nas caras dos meus companheiros e amigos sírios,
e nunca os tinha visto tão tristes... A falarem deles, das vidas deles e do
país deles. E no entanto, palavras ocas, nuas, desprovidas de conteúdo, sem
qualquer ponta de verdade.
Na televisão passava em rodapé a letras gordas: “Paz na
Síria”... e nós a ouvir os bombardeamentos... Eu não tive coragem de dizer
nenhuma palavra... Limitei-me a sofrer em silêncio.
Era com os tradutores com quem eu mais falava. Porque eram
eles a nossa sombra do nosso dia-a-dia no hospital para nos permitirem
interagir com os doentes, e porque a qualidade do seu Inglês nos permitia
aprofundar mais as conversas. Tinham formações bastante diferentes, desde
professores, engenheiros, empresários, etc... a quem a guerra desfez por
completo a vida. Foram todos encostados à parede pelo regime para se juntar ao
exército e matar os seus, e perante a recusa de o fazer, foram obrigados a
fugir e desertar ficando sem documentos e muitas vezes com as famílias do lado
de lá das linhas de conflito. Muito moderados e abertos na sua visão da
cultura, religião e mundo. Falávamos de tudo e de nada. Sonhos interrompidos
pela guerra, sem notícias das suas famílias, e limitados pela falta de documentos.
Ouvíamos música, fumávamos shisha, falávamos da vida... e quando a situação no
hospital apertava, não se inibiam a nos ajudar, metendo as mãos em doentes
ensanguentados...
Lembro-me uma vez, quando recebemos dezenas de feridos ao
mesmo tempo, e todo o staff do hospital entrou em alvoroço... e eu numa voz forte
e firme várias vezes lhes disse a todos: “Calma, calma... vamos trabalhar com
calma!” É difícil ter calma, quando as pessoas estão aos gritos e a morrer nas
nossas mãos... mas é isso que temos que fazer para salvar o maior número de
vidas possível. E muitas horas mais tarde quando a situação já estava sobre
controlo, depois alguns mortos e outros salvos... um dos tradutores vem ter
comigo e diz-me: “ Você nem imagina o quão importante é para nós nestas
situações ouvir os seus apelos à calma... Já tivemos outro médico há uns tempos
que nos dizia a mesma coisa, e faz toda a diferença. Sentimo-nos apoiados,
protegidos pelo vosso discernimento e pela vossa experiência... Nós sabemos que
temos que ter calma, mas é difícil. Já vimos muita gente a morrer, e não
estamos preparados para isso. Eu era um empresário bem sucedido, e agora sou
tradutor porque vos quero ajudar a salvar a minha gente, a salvar o meu país...
Mas nós não estamos preparados, e já vimos demasiada gente a morrer. São a
nossa gente. Obrigado por nos vir ajudar.”
Eu olhei para ele, e engoli em seco... não chorei ali... chorei
mais tarde. Às vezes precisamos de pessoas francamente inspiradoras para que
nos mostrem aquilo que estamos a fazer...
E são muitas destas pessoas que agora vemos a morrer nos
barcos, atrás de arames farpados, enjaulados e tratados como lixo... são estes
a quem chamados de refugiados. Alguns deles meus amigos, alguns deles uma fonte
de inspiração eterna para mim...
Verdadeiros Heróis.
Sem comentários:
Enviar um comentário