Por vezes bloqueio… a falta de tempo é claro a principal culpada, mas há uma mistura de incapacidade de encontrar o momento certo, a inspiração certa, para mergulhar bem fundo em memórias que sei que estão lá, que são muito fortes, e que gostava que nunca desaparecessem… pois fazem parte do melhor de mim…
Estou há tanto tempo para escrever sobre a Síria, que fico sempre algo amordaçado, por achar que não estou à altura dos meus pensamentos… E por isso tenho que dizer a mim mesmo, “seja de que maneira for, tem que sair cá para fora “…. A minha escrita boa ou má exige muito de mim, mas também me ajuda a (re)encontrar o foco quando me parece mais preciso…
Nunca me esquecerei desse dia, e de quase nada que nele se passou, pois entrar para dentro (perdoem-me a expressão) de uma Guerra não é todos os dias… Dormi algo em sobressalto, num enorme quarto para os 4 homens da equipa num Hotel muito antigo em Killis… De imediato aquele friozinho na barriga “é hoje!” que me deixou com todos os sentidos muito alerta. Ainda houve tempo para aquele café pensativo, onde vemos a vida toda a passar pela frente, e nos perguntamos algumas vezes: “o que estás aqui a fazer?” …. Mas na verdade, nenhuma hesitação, a determinação domina-me! Fomos de carro até à fronteira, e depois a fronteira propriamente dita terá que ser atravessada a pé. Há fronteiras e fronteiras, atravessar aquela fronteira da Turquia para a Síria é como mergulhar para dentro de um vulcão onde ninguém quer estar…
Mochila às costas mais todos os sacos que conseguíamos levar para o projecto, deixaram-nos a todos muito carregados… Na fronteira Turca, à parte de milhares de refugiados, tudo parecia normal… Carimbo no passaporte de saída do país e pernas ao caminho… Mas ao contrario do normal em que um carimbo leva a outro, aqui não! Era um carimbo para lado nenhum, para nada ou pelo menos para nada normal no que a um país se diz respeito… Pois do outro lado, o “controlo fronteiriço” era feito por uma série de homens armados de barbas longas e túnicas negras, que simplesmente viam quem estava a passar, e intervinham se lhes apetecesse… Naquele momento metiam-me medo, mas depois passou a ser o meu dia-a-dia… ainda mais sabendo que quem controlava esta zona era o Free Syrian Army (oposição moderada ao regime)… gente que via com muito bons olhos a entrada dos Médicos Sem Fronteiras…
Ainda na travessia a pé muito carregado, estava mergulhado pela sensação de estranheza por ir em sentido contrário… Milhares passavam ou tentavam passar esta fronteira para entrar na Turquia, mas ninguém queria/quer entrar na Síria… Muito perturbante absorver os olhares dos que se cruzam por nós no sentido contrário, com tanta dor e sofrimento que carregavam às costas… Por esta altura a Guerra aproximava-se dos 3 anos, e já todos , mas todos têm histórias de famílias desaparecidas, ou familiares mortos, casas destruídas, vidas arruinadas, e uma total luta desesperada pela sobrevivência… E tudo isto em cada olhar de tantos e tantos que passaram por mim, lado a lado, naquela travessia de 1 ou 2 kms… Triste, mas mais ainda me ajudava a reforçar a compreensão do porquê de estar ali…
Já na Síria, com a bandeira do FSA , que em vez do vermelho tem o verde como bandeira do país, nos esperavam carros para darmos início a uma viagem que seria muito longa…
Ainda passamos por um projecto/hospital dos MSF logo ali na fronteira, antes de começarmos a percorrer os muitos Kms que iríamos percorrer por estradas rurais, tentando estar o mais “escondido” possível pelas montanhas, no que diz respeito aos bombardeamentos extremamente frequentes. Pelo menos era isto que me explicavam, pois eu claro que não percebo nem metade do que se está a passar ou porquê!
Esta viagem marcou-me bastante, como não poderia deixar de ser. Estive horas e horas colado à janela do carro, a tentar perceber como é que possível que deixemos chegar uma desgraça a tal dimensão… Quase todas as vilas e aldeias estavam desertas, sem vivalma, sem nada ou ninguém para contar a história, apenas pelas muitas casas semi-destruídas pelas bombas conseguíamos espreitar para dentro, e ver que um dia lá viveu alguém… Demasiado triste ver tantas aldeias desertas, e pensar nas tantas histórias de vida de quem tudo deixou para trás, para fugir das bombas... Haverá tristeza maior do que uma guerra destas?
Pelo caminho passavam várias vezes por nós várias carrinhas todas no mesmo estereótipo... Uma pick-Up com homens com cara de mau, de barba comprida, lenços pretos na cabeça, cheios de metralhadoras e na parte de trás da carrinha uma enorme metralhadora montada com um ou dois homens a grande velocidade, sempre prontas a disparar... As histórias de que grupos radicais islâmicos ganhavam mais e mais preponderância por estas áreas e com uma atitude repressora e ameaçadora para com tudo e todos, deixava-me sempre em sobressalto a cada passagem duma destas pick-ups, nunca sabendo quem é quem, assim como nas muitas paragens em check-points, onde nunca saibamos muito bem o que esperar... Por estes grupos fomos por exemplo proibidos de levar máquinas fotográficas ou de tirar uma fotografia com outro aparelho qualquer...
Ainda nos faltava um pedaço e começou a anoitecer, pelo que tivemos que pernoitar num outro projecto dos MSF, ainda longe do nosso destino... Foi a minha primeira noite na Síria, e como regra a saber, a primeira coisa que nos explicam, é como e para onde fugir no caso das “coisas se complicarem” ... Aqui já há gente e uma pequena cidade que vai funcionando (pq está algo protegida pelas montanhas), já me sinto melhor, pois estou no meio da população, de alguma forma é bom ser apenas mais um... E como não há tempo a perder todos os elementos da equipa médica fazem uma reunião nessa noite, para começarmos a alinhavar a distribuição de funções... Temos que reiniciar um pequeno hospital, os desafios são mais do que muitos, e a vontade de ser útil é enorme...
Dormi muito mais tranquilo e cheio de vontade de começar a trabalhar... E logo cedo nos fizemos à estrada... A parte que faltava de estrada, já era bem mais populada, e assim vou começando a ver/conhecer a gente e o país... Muitos mais também eram os check-points de grupos armados, e eu sempre com a mesma apreensão, não fazendo a mínima ideia sobre quem era quem no momento em que nos param na estrada... depois explicava-nos o nosso tradutor, de quem se tratava e o que tinham dito... Uma ou outra vez preocupei-me ao ver feições europeias em alguns destes homens pois sabia que esses seriam certamente radicais... ainda que as barbas e as vestes fossem as mesmas.
E depois de curvas e mais curvas numa zona bastante montanhosa finalmente chegamos à aldeia que durante uns tempos eu iria chamar de casa... A perplexidade dos locais ao nos verem chegar é indescritível... Imagino eu um misto de agradecimento com incompreensão, de como poderia estar a chegar gente de tão longe àquele inferno... Mas naquele momento os sorrisos e um brilho bem forte nos olhos dominam as suas expressões: “ os Médicos Sem Fronteiras voltaram!” Pelos menos este dia, era um dia bom naquelas vidas...
Pousamos as coisas na nossa nova casa, homens para um lado e mulheres para o outro.... pois era mais uma regra imposta pelos grupos radicais islâmicos... a que os Médicos Sem Fronteiras teriam que respeitar para serem aceites a trabalhar naquela zona.... e depois fomos de seguida para o hospital que ficava 2 ou 3 kms montanha a cima...
O hospital não era mais do que um grande armazém transformado de uma forma muito simples num hospital, com serviço de urgência, bloco operatório, internamento, laboratório e maternidade... e aí como as notícias correm rápido, já nos esperava uma boa parte do nosso staff Sírio! Foi um êxtase, nunca senti uma recepção tão calorosa, ninguém se conhecia , mas a alegria de nos verem era enorme... fomos recebidos com palmas, abraços e sorrisos de quem estava maravilhado de nos ver....
Uns meses antes os MSF tomaram a decisão de evacuar este projecto pela crescente presença e ameaça de grupos radicais islâmicos e com isto “abandonaram” o hospital durante uns meses, suspendendo todas as actividades médicas e com isto certamente morreu muita gente que poderia ter sido salva...
Emoções muito fortes.... ainda não tinha feito nada como médico e já dava a minha missão como recompensadora ao ver a alegria daquele gente ao ver e sentir que iríamos reabrir aquele hospital.... Numa guerra terrível e mortífera, a serem chacinados às centenas de milhares, durante quase 3 anos, e com a crescente ameaça dos grupos radicais, o povo Sírio não tinha muitos motivos para sorrir....
Mas hoje, completamente em sentido contrário, os Médicos Sem Fronteiras voltaram! E eu estava super feliz por ali estar.
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